Uma metáfora fora do lugar?

Quem sou eu para criticar Aleksandr Sokúrov, o novo mestre do cinema russo, continuador — segundo nove entre dez capas de DVDs — de Eisenstein e Tarkovski?, pergunta Milton Ribeiro antes de criticá-lo. Pois uma coisa em Sonata para Viola, filme que Sokúrov dedicou à memória e vida de Dmitri Shostakovich, me incomoda muito. Na cena final, o cineasta mostra alternadamente Leonard Bernstein e Yevgeny Mravinsky regendo o último movimento da 5ª Sinfonia de Shosta. A diferença é enorme. Bernstein dá um andamento rápido e literalmente se escabela, entusiasmado, frente à orquestra. A coisa toda é heróica. Já Mravinsky apenas indica o tempo, um tempo bem mais arrastado que o do americano. Parece, e é, fúnebre. O significado é óbvio: a liberdade e a alegria X a opressão e a tristeza. Porém, é justo aí que estão dois problemas: (1) Mravinsky é um regente tão grande quanto Bernstein foi e sua desqualificação artística é absolutamente imerecida e (2) Mravinsky interpreta o Allegro non troppo da 5ª Sinfonia rigorosamente dentro daquilo que foi solicitado por… Shostakovich, na época um amigo seu. Era música fúnebre mesmo. Claro que Sokúrov deve ter mil explicações para ter finalizado seu filme desta forma, mas, para mim, o grande problema de Sonata para Viola é sua metáfora final.

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Quando o discípulo revela o mestre

A meu amigo Luiz Blasi, que adora David Oistrakh

Otto Maria Carpeaux foi um intelectual muito importante na vida cultural brasileira do século passado. Foi respeitadíssimo e com merecimento. Não apenas foi o autor de uma imensa História da Literatura Ocidental em 8 volumes, como foi importante crítico literário. Escreveu também livros de crônicas, foi colunista em revistas, enfim, teve a popularidade possível a quem de dedica seriamente à cultura; ou seja, quase nenhuma. Carpeaux tinha algo de incomum: uma infalível sensibilidade para identificar já na estreia quem se tornaria destaque literário em nosso país. Mas tantos méritos lhe davam crédito para cometer erros imensos e raros em outros lugares, principalmente na tal História da Literatura. A forma como descartou alguns escritores — como, por exemplo, Laurence Sterne — certamente lhe causa problemas póstumos.

Lá pelo final dos anos 50, Carpeaux escreveu uma Nova História da Música. É um livro utilíssimo para quem está começando a gostar de música erudita, pois traz um vasto painel cronológico da evolução da música desde a época medieval, mas é curioso como as pessoas que avançam no conhecimento do assunto, passam a rejeitar o livro como se fosse um mero Eu e a Música. E com razão. Em sua história da música, ele foi bastante agressivo com alguns compositores que detestava e muito indulgente com quem adorava. (Neste minuto, penso que minha devoção à Bach e Bartók deve-se em boa parte a ele). Sua avaliação de Tchaikovski é simples. Em mais ou menos duas páginas, Carpeaux detona o famoso russo. Tchaikovski era mau orquestrador, desrespeitava algumas convenções, “jogava fora” temas de uma forma meio incompreensível — por que Tchai não retoma o motivo das quatro notas iniciais de seu Concerto Nº 1 para Piano e Orquestra?, aquilo é um achado!

E nos anos 70 eu era um adolescente e lia Carpeaux. Por inexperiência, assumia todos os seus gostos. Como Carpeaux escrevia maravilhosamente e era inteligente, sedutor, radical na medida certa e sofisticado para a época, a leitura da Nova História parecia uma forma de criar uma ponte sobre minha vasta insegurança. Obviamente, assumi seu desprezo por Tchaikovski.

Muitas águas passaram e, anos depois, me apaixonei pela música de Shostakovich. Quem acompanha meu blog talvez lembre da série que escrevi em 2006, ano do centenário de Shosta. (A propósito, um dia juntei tudo aquilo, deu 36 folhas A4…).  Bem, mas digo isso apenas para deixar claro que eu tenho suficiente vivência com a obra de Shosta para reouvir com atenção algumas obras de Tchaikovski e cair do cavalo.

Pois hoje sei que o compositor Dmitri Shostakovich, tal como o conhecemos, não existiria sem Piotr Tchaikovski. Pois as ideias que aparecem prontas em Shosta nasceram em Tchai. Pois Shosta só pode ser tão, mas tão emocional, colorido e maluco porque Tchai fez quase o mesmo antes. Pois Tchai era o aval para Shosta ser tão expressivo e exagerado, principalmente nas Sinfonias.

Relendo muitas entrevistas de Shostakovich, li o que antes pensara ser mera manifestação de ufanismo: ele conhecia minuciosamente a obra de Tchaikovski. Grande parte daquilo que Shosta desenvolveu em suas sinfonias estão em Tchai, nas sinfonias e Abertura de Romeu e Julieta. Há ali todo um Shostakovich a ser amadurecido, ali está a alma russa e as melodias russas segundo Shostakovich. Resultado: não falo mais mal de Tchaikovski. Passou a ser, da noite para o dia, um compositor fundamental… Confiram! Ouçam a Abertura Romeu e Julieta e digam-me se não há nela um Shosta mais meloso, mais delicado. Hein? Hein? Nunca o amor de Shosta por Tchai foi tão tangível para mim antes de ouvir a citada Abertura. É um tapa na cara, é estupefaciente.

Abaixo, mostro um dos melhores vídeos de todo o YouTube. Trata-se de uma gravação do Concerto Nº 1 para Violino e Orquestra de Shostakovich. O violinista é David Oistrakh, a quem o concerto é dedicado. Há várias versões no YouTube. A que escolhi está completa, mas o que me interessa mostrar começa aos 4 minutos do vídeo abaixo (o 3º de cinco). É o terceiro movimento do concerto e seu segundo movimento lento. Começa altamente dramático e, aos seis minutos, torna-se perfeitamente tchaikovskiano,

e abaixo (1min50) começará a longa cadenza do mesmo movimento, notem a inversão em relação ao habitual: o movimento que começa arrebatado termina tristíssimo. Puro Shostakovich em continuidade a Tchai.

E aqui começa o típico finale de Shostakovich. Espetacular e emocionado como aquele Capricho Italiano.

Este concerto, como já disse, foi dedicado a David Oistrakh, o violinista desta gravação que vocês viram, se viram. Existe o registro do telefonema que Oistrakh fez para Shosta logo após a estreia. O tom da conversa é de amizade formal, respeitosa. O compositor diz que o concerto foi melhorado. David começa a se desculpar por ter acelerado aqui e ali, faz algumas perguntas, nota-se que está constrangido, que entendeu a resposta de Shostakovich como uma ironia e que aceitará a reprimenda. Ouve Shosta dizer:

— O concerto é teu, estava tudo certo, cada andamento. Eu não sabia que era tão bom, sabe? Você iluminou a partitura, ouvi coisas que não imaginara.
— Mas não incluí nada, Dmitri…
— Claro que não, David. Eu fiquei muito feliz, você entendeu a música melhor do que eu.

E deve ser verdade. Shostakovich foi um tremendo compositor, mas sabemos que o um grande executante pode fazer por uma música. Quem ouviu o vídeo pode comprovar.

(A gravação desta conversa — que transcrevi de memória sujeita a chuvas e trovoadas — é o último som que se ouve no filme de Alesandr Sokurov, dedicado a Shostakovich, Sonata para Viola).

Então, o título do post se manteve: Shosta revelou Tchai para mim e talvez para outros e Oistrakh revelou o Concerto para Violino e Orquestra a Shostakovich. Não, eu não revelei nada de Carpeaux.

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