100 anos da Revolução Russa em seus artistas (I): Dmitri Shostakovich

100 anos da Revolução Russa em seus artistas (I): Dmitri Shostakovich

Talvez não tenha existido um artista mais representativo do que o foi o Século XX, com todos os seus paradoxos, vanguardismos, violências, guerras e desvios, do que Dmitri Shostakovich (1906-1975). Ele foi exaltado e massacrado pelo poder, censurado e novamente elogiado. Foi presidente da Associação dos Compositores da URSS e depois não podia mais ver executada sua música no país. Talentosíssimo, foi moderno, adequou-se ao realismo socialista e voltou a ser moderno. Escreveu coisas da mais completa alegria, do mais completo sarcasmo, da mais acabada grandiosidade dramática e refletiu a morte e a depressão como poucos artistas.

Dmitri Shostakovich

E foi um herói para muita gente. Por ter sido covarde quando não havia como ser diferente e por ter sido (muito) ousado quando lhe deram frestas. Como escreveu o romancista inglês Julian Barnes, “Shostakovich pagou a César o que lhe era devido — e César era muito exigente naqueles dias –, protegeu a sua família, esperou por dias melhores e desesperou-se enquanto produzia uma obra verdadeiramente sofrida e brilhante. Há mais formas de heroísmo do que as óbvias”.

Sua vida já começou complicada. Exemplo? Bem, ele era considerado o primeiro grande artista revelado pela Revolução. Era saudado pelo poder. Criou sua Primeira Sinfonia em 1926. Tinha 19 anos e estava entusiasmado com o ambiente russo. A Sinfonia obteve repercussão mundial. Tudo era sucesso, mas três anos depois, a pessoa a quem a obra era dedicada foi presa e fuzilada.

Muitíssimas vezes, quando ouvimos a música de Shostakovich, sentimos certa estranheza, notamos intenções, torna-se palpável a ironia, a revolta e o desconforto do autor. Outras vezes, fica claro seu enorme sarcasmo. O poder que as notas escritas por ele têm de comunicar é miraculoso. Percebe-se claramente o drama e os contrastes vividos pelo compositor, sejam eles de ordem pessoal ou não. Em contato com essas obras firmemente assentadas sobre os ombros de Bach, Beethoven, Mahler, Tchaikovsky e Mussorgsky, somos, de alguma forma muito particular, solicitados a conhecer mais das circunstâncias em que foram compostas.

Há três pontos importantes para a compreensão do homem que foi Shostakovich. O Ocidente costumava simplificar os fatos, conferindo ao autor uma condição simples de mártir e dissidente do regime. Tais enganos datam dos tempos da guerra fria e persistem até hoje.

O Comunista: Shostakovich foi um comunista sincero, não obstante suas divergências com uma doutrina oficial que nem sempre seguiu um caminho retilíneo. Sem seu engajamento nítido em favor dos princípios originais que criaram a União Soviética, seria impossível inventar o sopro lírico e épico que atravessa algumas de suas composições. Mas há o verdadeiro e o forçado, ou o espontâneo e a encomenda. No início de sua carreira de compositor, Shostakovich tinha aquele entusiasmo que foi próprio de uma geração de criadores que — como Eisenstein e Maiakovski — , em determinado momento, acreditou ser para amanhã o paraíso terrestre. Depois, lentamente, as coisas foram mudando e o trio renunciou a suas esperanças, às vezes de forma trágica.

Shostakovich foi bombeiro durante a Segunda Guerra Mundial

Não obstante o que era dito durante a Guerra Fria, Shostakovich não esteva preso à União Soviética e teve inúmeras oportunidades de se retirar do país. Quando sua doença começou a prejudicá-lo como intérprete, ele estava fora da URSS. Também esteve algumas vezes com Britten na Inglaterra em alegres visitas. Ou seja, Shostakovich teve numerosas oportunidades para emigrar, não o fazendo nunca. Houve declarações anti-soviéticas? Mas é claro, ele foi massacrado por Stálin e depois, mas jamais foi o dissidente típico. Seus problemas sempre foram relativos às arbitrariedades dos dirigentes do país, que muitas vezes tratou de ridicularizar.

A Morte: Shostakovitch era, por natureza, um grande pessimista: as fotografias em que aparece sorrindo são raríssimas. Além do que, ele parecia obcecado — como seu ilustre predecessor Mussorgski — pela ideia da morte.  Não devemos colocar toda a sua psicologia na conta do geopolítico. Ele possuía muito daqueles niilistas russos do século XIX, tão bem retratados nos romances de Dostoiévski. Há algo de Kirilov nele… Confundir isso com as torturas morais causadas pelos comissários políticos soviéticos é aplainar a grandiosa obra do compositor e é fatal para quem queira compreendê-lo. Obras como o Quarteto Nº 8,  Trio Nº. 2,  Sonata para viola e piano, Op. 147, de 1975 ou a Sinfonia Nº 15, de 1974, todas com suas “Canções da Morte”, são inequívocas, assim como a Sinfonia Nº 14. As trevas sem fim que emanam destas composições e sua melancolia por vezes desesperada só podem surgir de uma personalidade permeável a pensamentos macabros. Porém, até hoje, costuma-se esquecer demais da história pessoal de Shostakovich e colocar todos os seus momentos de depressão como causados pelas pressões das autoridades soviéticas.

O Artista: como os verdadeiros artistas e, principalmente, os músicos, Shostakovich pensava que o estatuto particular de sua arte desobrigava-o a seguir palavras de ordem como aquelas que eram impostas aos operários, aos mineiros ou aos camponeses da URSS. Sob este aspecto, estava muito enganado. Os sucessivos dirigentes jamais esqueceram de intervir diretamente nas orientações estéticas a serem seguidas por pintores, escritores, cineastas e músicos. Sempre esteve fora das cogitações governamentais a existência de uma vanguarda artística na União Soviética, pelo menos após a morte de Lênin.

Apesar de todo o prestígio de que gozou como compositor, nem por isso foi menos perseguido como resultado dos ditames ideológicos dos dirigentes políticos e culturais de seu país — em 1936, o próprio Stálin advertiu-o; em 1948 houve o “Relatório Jdanov”; em 1962, a Sinfonia n° 13, que se apoiava no grande poema Baby Yar de Evgueni Evtuchenko, foi executada sob oposição oficial.

1936 pode ter sido um ano péssimo para ele, porém há detalhes jocosos. Ele havia composto sua segunda e última ópera — a primeira fora O Nariz, baseada no conto de Gógol — quando Stálin foi assisti-la. Stálin achou-a um horror e chamou Lady Macbeth de Mtsensk — cujo tema foi retirado da esplêndida novela de Nikolai Leskov — de “pornofonia”. Desta forma, ela foi banida de todos os teatros soviéticos. Foi preciso esperar 27 anos para retornar à cena e, ainda assim, com a supressão do episódio orquestral que descrevia uma cena de sexo. É curioso que as eructações, flatulências e gargarejos de O Nariz nunca tenham sido alvo de censuras.

Para se recuperar, Shostakovich compôs em 1937 a Sinfonia Nº 5, clássica, grandiosa, linda e bem comportada, que este ano tem sido muito executada por completar 80 anos. E foi perdoado. Poucos anos depois, Shostakovich comporia o símbolo da resistência da União Soviética ao invasor, sua Sinfonia Nº 7, Leningrado. Depois de realizada a primeira audição na União Soviética em 5 de março de 1942, a partitura microfilmada da sinfonia atravessou as linhas de combate, chegando até Nova York, onde Toscanini a fez ouvir em julho do mesmo ano. Em agosto, a Sétima de Shostakovitch ressou na própria Leningrado, sob o cerco dos alemães e transmitida para eles pelo rádio em execução memorável, com os músicos e a população famintas.

Durante a guerra, Shostakovich foi levado para um local seguro, longe dos combates. Estava de amores com o governo e este temia que ele morresse.

Sua carreira foi gloriosa e constantemente posta em questão, repleta de honrarias oficiais e de inclusões em index não menos oficiais. Shostakovitch amargou todos os dissabores de sua condição, a ponto de por vezes ter imaginado que a melhor solução só poderia ser o suicídio. Nem por isso faltou-lhe coragem para seguir incansavelmente, com uma regularidade sem falhas. Até sua morte, em 1975, criou uma obra prolífica e amplamente regeneradora para todo o povo soviético, ao qual Shostakovitch esteve sempre ligado. “A música pode ser amarga, mas jamais pode ser cínica”, dizia o compositor.

A maioria de minhas sinfonias são monumentos funerários. Gente demais, entre nós, morreu não se sabe onde. E ninguém sabe onde os corpos foram enterrados. Mesmo os que eram mais chegados a eles não sabem. Isso aconteceu a uma porção de amigos meus. Onde se pode erguer um monumento a Meyerhold ou a Tukatchevski? Somente a música pode fazê-lo. Estou disposto a dedicar uma obra a cada uma das vítimas. Infelizmente, é impossível. Dedico-lhes, então, toda a minha música.

Em 1948 foi baixada uma resolução do Comitê Central do Partido Comunista Soviético que depois foi conhecida por “Relatório Jdanov”. Jdanov colocava no mesmo saco Prokofiev, Khatchaturian, Shostakovich e quase todos os artistas do país. Shostakovich foi o mais atingido, pois negara-se a fazer de sua Sinfonia Nº 9 um elogio a Stálin e ao Exército Vermelho, publicando em seu lugar uma piada musical, que foi recebida com alegria e aplausos no Ocidente, tendo em Leonard Bernstein seu maior divulgador. O que Bernstein só soube depois é que a nona sinfonia deixara Stálin novamente furibundo com Shostakovich, ao ver suas ordens desobedecidas. Como resultado, suas peças sumiram novamente do repertório.

Mas ele seguiu produzindo e, quando Stalin morreu, em 1953, Shostakovich tinha as gavetas lotadas de novidades. Havia, inclusive uma vingança contra o grande líder. O segundo movimento da espetacular Sinfonia Nº 10, especialmente raivoso, seria um retrato de Stálin.

(Já o terceiro movimento é uma valsa onde Shostakovich assina seu nome no ar. Em meio ao movimento, a orquestra silencia para ouvir as notas D-S-C-H (ré-mi bemol-dó-si), a partir da transliteração alemã de seu nome, D. Schostakowitsch. O motivo é ouvido de forma ostensiva também no quarto movimento. Parece dizer: “Stálin, ainda estou aqui, sobrevivi”).

O terceiro e maior desentendimento aconteceu em 1962. Neste ano, aparecia a Sinfonia Nº 13, para solo de baixo, coro masculino e orquestra. Os textos cantados vinham do poema Babi Yar, de Evgueni Ievtuchenko (1932-2017) e, em lugar de cantar o porvir, o poema denunciava os crimes nazistas cometidos naquela cidade perto de Kiev, onde 34 mil judeus foram assassinados. Denunciar crimes nazistas não seria um problema, mas o poema de Ievtuchenko fala na colaboração soviética durante o episódio. Hoje, há certeza de que houve colaboração na mortandade de judeus. Ele e Ievtuchenko, celebridades internacionais, foram fortemente repreendidos pelas autoridades, que exigiram a substituição completa dos textos, sob pena de a música não vir a ser executada. A Sinfonia nunca foi alterada e mais foi estreada na forma original sob a regência do lendário e corajoso maestro Kiril Kondráshin.

Shostakovich finalizou sua obra escrevendo prelúdios e fugas ao estilo de Bach e fazendo referências à Beethoven em sua música. Essa dupla escolha levada a efeito pelo compositor não deve ser encarada como casual, tanto mais que Shostakovich escreveu suas últimas obras no leito de morte. Os alemães não eram bem vistos no país não apenas devido à Guerra, mas desde o século XIX. As mentalidades coletivas russas e soviéticas sempre foram hostis aos alemães, que aparecem frequentemente como personagens ridículos nos romances clássicos russos. E, desde o surgimento de uma consciência musical nacional, as referências à escola germânica não eram bem aceitas.

E, mais uma vez, Shostakovitch não hesitou em enfrentar um tabu cultural. O último discurso musical que produziu, a Sonata para viola e piano, é uma saudação beethoveniana à liberdade. Ao escolher essa referência a Beethoven, ele opta pela fraternidade universal e, saudavelmente, faz abstração das querelas que dividiam o mundo em dois blocos antagonistas. Sob este aspecto, pode-se dizer que ele triunfou sobre os sucessivos dirigentes de sua pátria.

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Bibliografia: grande parte das informações históricas foram obtidas em incontáveis discos, CDs e outras publicações, mas foram  um pouco sistematizadas pela leitura do texto de Philippe Olivier, dentro da História da Música Ocidental, Nova Fronteira, 1997, assim como de Shostakovich – Vida, Música, Tempo, de Lauro Machado Coelho, Perpectiva, 2006.

80 anos – A linhagem sagrada de Andrei Tarkovsky

Andrei Tarkovsky (1932-1986): apenas sete filmes lhe garantiram um lugar central na história do cinema | Foto: Divulgação

Por Josias Teófilo 1
Publicado na Revista Continente e no Sul21 em 20 de outubro de 2012

Andrei Tarkovsky entrou para a história do cinema com apenas sete longas-metragens, cinco deles feitos na União Soviética e os outros dois na Itália e na Suécia, na década de 1980, já no exílio. Seu legado, entretanto, não é exclusivamente cinematográfico. Seguindo uma tradição russa de artistas que são também teóricos da arte – entre o final do século 19 e o começo do século 20, Tolstoi escrevera seu polêmico ensaio O que é a arte?, Kandinsky, o livro Do espiritual na arte, e Malevitch, junto com o poeta Maiakovsky, o Manifesto Suprematista –, Tarkovsky escreveu (“por falta de coisa melhor a fazer”, como ele dizia) um dos mais influentes e poderosos escritos teóricos sobre o cinema: o livro Esculpir o tempo.

Tarkovsky – cujo pai, Arseni, era poeta – nasceu num pequeno vilarejo a cerca de 350 quilômetros de Moscou, em abril do ano de 1932. A família com esse nome surgiu há aproximadamente sete séculos, e, até meados do século 19, o Principado Tarkovsky existiu na região do Cáucaso – sua linhagem espiritual, contudo, parece ser muito mais antiga do que a genealógica.

O apuro visual de A infância de Ivan (1962) | Foto: Divulgação

Depois de realizar o seu primeiro longa-metragem, A infância de Ivan (1962), que ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, concorrendo com diretores como Kubrick, Godard e Pasolini, Tarkovsky partiu para um ambicioso projeto: retratar uma figura central da cultura e da ortodoxia russa, Andrei Rublev, pintor de ícones do século 15. A falta de informações existentes sobre a vida de Rublev, em vez de uma dificuldade, foi uma grande oportunidade para o seu gênio criador. O resultado foi um filme de 3 horas e 20 minutos, em preto e branco, com exceção da cena final, colorida, em que surgem os ícones dourados pintados por Rublev.

O épico Andrei Rublev: obra-prima absoluta | Foto: Divulgação

Ao fazer um épico sobre o pintor de ícones medieval, que incorpora uma tradição pictórica que vem desde Bizâncio, Tarkovsky não se liga a uma tradição de arte religiosa de inspiração cristã? O fato é que ele viveu num contexto político em que esses temas religiosos, se não proibidos, eram mal vistos pelas autoridades soviéticas, que então seguiam a cartilha marxista-leninista. Rublev, contudo, era uma símbolo internacional da arte russa, e o quinto centenário do seu nascimento ajudou Tarkovsky a aprovar ideológica e financeiramente o seu projeto.

Depois de pronto, entretanto, o filme foi apresentado ao presidente soviético Leonid Brejnev e, em seguida, censurado, sob alegação de passar uma imagem negativa da história da Rússia. Apesar da censura, o diretor do Festival de Cannes já havia visto a película e, junto à direção do Festival de Veneza, ameaçou não incluir mais nenhum filme soviético, caso Rublev não fosse permitido. O filme não só participou em Cannes como ganhou o prêmio da crítica internacional, o que possibilitou a sua exibição em todo o mundo.

O interesse de Tarkovsky na história residiu no profundo paradoxo entre a obra de Rublev, reconhecida universalmente pela serenidade e harmonia, e o contexto social em que ele viveu, de guerras sangrentas, fome e morte – tudo que foi retratado no filme e que desagradou as autoridades soviéticas. Terá Tarkovsky, homem de interesses metafísico-religiosos, vivendo em plena Guerra Fria na União Soviética, se identificado com a situação paradoxal de Rublev? A questão é mais ampla do que essa. Parece haver uma afinidade estética entre ele e o pintor medieval, e, mais do que estética, uma afinidade espiritual entre a sua arte imagética e a tradição iconográfica.

“Se eu usar cores muito marcantes o filme se caracterizará por elas” | Foto: Divulgação

Ídolo e ícone

No livro O ícone – Uma escola do olhar, Jean-Yves Leloup faz uma distinção entre ídolo e ícone. O primeiro seria qualquer forma de representação religiosa que prende o olhar em si mesmo, pelas formas, cores ou movimentos que chamam a atenção, provocando emoções. O ícone, ao contrário, não tem movimento nem profundidade, as cores e formas obedecem a padrões tradicionais. Nele, a transcendência é o fator essencial, a intenção é mostrar o “Invisível no visível, Presença na aparência”. Mas como relacionar uma arte tão antiga como a iconografia com uma tão nova como o cinema? Tarkovsky criticava tanto o modelo de criação cinematográfica que coloca a emoção como objetivo primordial, a saber, o modelo hollywoodiano de cinema comercial, como o modelo que coloca o intelecto no centro dessa atividade – os chamados filmes de arte.

Ele se mostrou profundamente decepcionado, por exemplo, com o que viu nos festivais de Cannes dos quais participou, de diretores como Fellini, Polanski, etc. Podemos dizer que o cinema que Tarkovsky rechaça seria como o ídolo de que fala Leloup? Para ele, “um artista sem fé é como um pintor que houvesse nascido cego”: a “função” do seu cinema é, portanto, essencialmente espiritual. Ele se recusava a usar cores vivas nos seus filmes (“Se eu usar cores muito marcantes o filme se caracterizará por elas”), repelia a expressividade excessiva dos atores (o recém falecido Erland Josephson, ator preferido de Bergman, afirmou certa vez, em entrevista, a imensa dificuldade em interpretar como Tarkovsky queria: sem emoção, de modo que o espectador pudesse livremente interpretar o que estivesse vendo). Além disso, ele dispensava o uso da música como muleta para produzir efeitos pré-definidos e, o que foi motivo da sua principal divergência com Eisenstein, negava os excessos da montagem.

Enfim, Tarkovsky buscava a pureza, podemos dizer até infantil, do olhar cinematográfico, que aspira a um hieróglifo da verdade – o mesmo poderia ser dito do ícone e sua tradição, com os quais Tarkovsky, desde muito cedo, teve contato em seu país natal. As semelhanças são profundas e podem indicar uma ancestralidade espiritual, coisa estranha a uma arte nova como o cinema, mas que é muito rica para a compreensão do fenômeno artístico como um fenômeno que transcende o tempo e o espaço.

1 Josias Teófilo, jornalista, é mestrando em Filosofia pela Universidade de Brasília com o tema A cumplicidade espiritual: o papel social do artista segundo Andrei Tarkovsky no filme Andrei Rublev.

Foto: Divulgação

Uma metáfora fora do lugar?

Quem sou eu para criticar Aleksandr Sokúrov, o novo mestre do cinema russo, continuador — segundo nove entre dez capas de DVDs — de Eisenstein e Tarkovski?, pergunta Milton Ribeiro antes de criticá-lo. Pois uma coisa em Sonata para Viola, filme que Sokúrov dedicou à memória e vida de Dmitri Shostakovich, me incomoda muito. Na cena final, o cineasta mostra alternadamente Leonard Bernstein e Yevgeny Mravinsky regendo o último movimento da 5ª Sinfonia de Shosta. A diferença é enorme. Bernstein dá um andamento rápido e literalmente se escabela, entusiasmado, frente à orquestra. A coisa toda é heróica. Já Mravinsky apenas indica o tempo, um tempo bem mais arrastado que o do americano. Parece, e é, fúnebre. O significado é óbvio: a liberdade e a alegria X a opressão e a tristeza. Porém, é justo aí que estão dois problemas: (1) Mravinsky é um regente tão grande quanto Bernstein foi e sua desqualificação artística é absolutamente imerecida e (2) Mravinsky interpreta o Allegro non troppo da 5ª Sinfonia rigorosamente dentro daquilo que foi solicitado por… Shostakovich, na época um amigo seu. Era música fúnebre mesmo. Claro que Sokúrov deve ter mil explicações para ter finalizado seu filme desta forma, mas, para mim, o grande problema de Sonata para Viola é sua metáfora final.