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O homem que amava os cachorros, de Leonardo Padura
Leonardo Padura sabe que não é Tolstói, mas que seu tema podia ser tão imenso ou maior quanto o de Guerra e Paz. A história do exílio e assassinato de Trotski e a de seu algoz Ramón Mercader, se bem circunstanciada e contada, tinha o potencial de mostrar o que foi boa parte do século XX, com a história da perversão e morte (e das mortes de seres humanos) de sua maior utopia, indo desde a Revolução de 1917 até a Guerra Fria. Raras histórias são tão amplas temporal e fisicamente. Só para comprovar o caráter cosmopolita do livro, basta saber das andanças de Padura durante os cinco anos de pesquisas e de escritura do romance: Espanha, para saber da participação de Mercader na Guerra Civil Espanhola; Moscou, é claro, atrás da história de Trotski e de seus primeiro exílios no Cazaquistão e na Turquia; Paris e interior da França, em novo exílio. E também Dinamarca e Noruega, por onde o russo passou antes de chegar ao México, país onde o russo encontraria a morte através da picareta de Mercader.
Mas O homem que amava os cachorros (Boitempo, 592 páginas) não é um documento histórico e sim um romance, um romance que se atém com toda a fidelidade aos conhecidos episódios e à cronologia dos anos finais de Trotski. Nem tanta fidelidade foi possível com Mercader, o homem que trabalhou no Ocidente para os russos sob diversos nomes e disfarces e cuja história é tão fácil de reconstruir quanto adivinhar as feições daqueles homens que Stalin fazia sumir das fotografias históricas da Revolução Russa.
O livro de Padura é excelente. A escolha pelo ritmo de thriller foi acertada, assim como a alternância de capítulos dedicados a Trotski, Mercader e ao futuro autor do livro, perdido, sem temas, comida ou perspectivas em Cuba. É claro que os diálogos do romance são inventados, mas não são artificiais ou inverossímeis. Para melhorar ainda mais, o livro cresce de forma espetacular a cada página, dando dimensão humana a todos os personagens, fugindo inteiramente dos discursos e do jargão dogmático, até ridicularizado por Padura. Graham Greene ficaria feliz de ler O Homem que Amava os Cachorros.
A história é narrada no ano de 2004 pelo personagem Iván, um aspirante a escritor que atua como veterinário em Havana e que, a partir de um encontro enigmático com um homem que passeava seus cães numa praia de Havana, retoma os últimos anos da vida do revolucionário russo Liev Trotski e de Mercader, voluntário das Brigadas Internacionais da Guerra Civil Espanhola e encarregado de executá-lo por Stalin. O dono dos cães, que Iván passa a denominar ‘o homem que amava os cachorros’, confia a ele histórias sobre Mercader, de quem conhece detalhes íntimos. Diante disso, o narrador reconstrói a trajetória de sua vítima Liev Davidovitch Bronstein, mais conhecido como Trotski, teórico russo e comandante do Exército Vermelho durante a Revolução de Outubro, exilado por Joseph Stalin após este assumir o controle do Partido Comunista e da URSS. Ramón Mercader é um homem quase sem voz na história. Ele recebeu, como militante comunista, uma única tarefa — eliminar Trotski. São descritas sua adesão ao Partido Comunista espanhol, o treinamento em Moscou, a mudança de identidade e os artifícios para ser aceito na intimidade do líder soviético, numa série de revelações que preenchem uma história pouco conhecida e coberta, ao longo dos anos, por inúmeras mistificações.
Note-se que Mercader, Trotski e Ivan, todos eles, são “homens que amavam cachorros”. E um detalhe: o caso amoroso de Frida Kahlo e Liev Trotski, ocorrido sob o olhar digno de Natália Sedova é tratado com discrição, sem lances espetaculares. Apenas aconteceu por iniciativa do casal e desaconteceu a partir da elegante reação de Sedova.
Obra indicada a todos que não tenham saudades de Stalin, pois seu autor diz claramente: “Trotski podia ser duro, mas era um político; Stalin era um psicopata”.
A extinta União Soviética completa 90 anos. Tal país, qual arte?
Publicado em 30 de dezembro de 2012 no Sul21
A ensaísta Flora Süssekind, num livro sobre literatura brasileira, criou o belo título Tal Brasil, qual romance? É com este espírito — apenas com o espírito, pois nossa pobre capacidade nos afasta inexoravelmente de Flora — que pautamos para este domingo o que representou (ou pesou) a União Soviética em termos culturais. Sua origem, a Rússia czarista, foi um estado que mudou o mundo não apenas por ter se tornado o primeiro país socialista do planeta, mas por ter sido o berço de uma das maiores literaturas de todos os tempos. Quem lê a literatura russa do século XIX, não imagina que aqueles imensos autores — Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov, Turguênev, Leskov e outros — viviam numa sociedade com resquícios de feudalismo. Através de seus escritos, nota-se claramente a pobreza e a base puramente agrária do país, mas há poucas referências ao czar, monarca absolutista que não admitia oposição e que tinha a seu serviço uma eficiente censura. Na verdade, falar pouco no czar era uma atitude que revelava a dignidade daqueles autores.
No início do século XX, Nicolau II, o último czar da dinastia Romanov, facilitou a entrada de capitais estrangeiros para promover a industrialização do país, o que já ocorrera em outros países da Europa. Os investimentos para a criação de uma indústria russa ficaram concentrados nos principais centros urbanos, como Moscou, São Petersburgo, Odessa e Kiev. Nessas cidades, formou-se um operariado de aproximadamente 3 milhões de pessoas, que recebiam salários miseráveis e eram submetidos a jornadas de até 16 horas diárias de trabalho, sem receber alimentação e trabalhando em locais imundos. Ali, havia um ambiente propício às revoltas e ao caos social, situação que antecedeu o nascimento da União Soviética, país formado há 90 anos atrás, em 30 de dezembro de 1922.
Primeiro, houve a revolta de 1905. No dia 9 de janeiro daquele ano, um domingo, tropas czaristas massacraram um grupo de trabalhadores que viera fazer um protesto pacífico e desarmado em frente ao Palácio de Inverno do czar, em São Petersburgo. O protesto, marcado para depois da missa e com a presença de muitas crianças, tinha a intenção de entregar uma petição — sim, um papel — ao soberano, solicitando coisas como redução do horário de trabalho para oito horas diárias, assistência médica, melhor tratamento, liberdade de religião, etc. A resposta foi dada pela artilharia, que matou mais de cem trabalhadores e feriu outros trezentos. Lênin diria que aquele dia, também conhecido como Domingo Sangrento, foi o primeiro ensaio para a Revolução. O fato detonou uma série de revoltas internas, envolvendo operários, camponeses, marinheiros (como a revolta no Encouraçado Potemkin) e soldados do exército.
Se internamente havia problemas, também vinham péssimas notícias do exterior. A Guerra Russo-Japonesa fora um fiasco militar para a Rússia, que foi obrigada a abrir mão, em 1905, de suas pretensões sobre a Manchúria e na península de Liaodong. Pouco tempo depois, já sofrendo grande oposição interna, a Rússia envolveu-se em um outro grande conflito, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), onde também sofreu pesadas derrotas em combates contra os alemães. A nova Guerra provocou enorme crise no abastecimento das cidades, desencadeando uma série de greves, revoltas populares e fome de boa parte da população. Incapaz de conter a onda de insatisfações, o regime czarista mostrava-se intensamente debilitado até que, em 1917, o conjunto de forças políticas de oposição (liberais e socialistas) depuseram o czar Nicolau II, dando início à Revolução Russa.
A revolução teve duas fases: (1) a Revolução de Fevereiro, que derrubou a autocracia do czar Nicolau II e procurou estabelecer em seu lugar uma república de cunho liberal e (2) a Revolução de Outubro, na qual o Partido Bolchevique derrubou o governo provisório. A Revolução Bolchevique começou com um golpe de estado liderado por Vladimir Lênin e foi a primeira revolução comunista marxista do século XX. A Revolução de Outubro foi seguida pela Guerra Civil Russa (1918-1922) e pela criação da URSS em 1922. A Guerra Civil teve como único vencedor o Exército Vermelho (bolchevique) e foi sob sua liderança que foi criado o Estado Soviético. Lênin tornou-se, assim, o homem forte da Rússia, acompanhado por Trotsky e Stálin. Seu governo foi marcado pela tentativa de superar a crise econômica e social que se abatia sobre a nação, realizando reformas de caráter sócio-econômico. Contra a adoção do socialismo na Rússia ergueu-se uma violenta reação apoiada pelo mundo capitalista, opondo o Exército Vermelho aos russos brancos (liberais).
O país que emergiu da Guerra Civil estava em frangalhos. Para piorar, em 1921, ocorreu a Grande Fome Russa que matou aproximadamente 5 milhões de pessoas. A fome resultou do efeito conjugado da interrupção da produção agrícola, que já começara durante a Primeira Guerra Mundial, e continuou com os distúrbios da Revolução Russa de 1917 e a Guerra Civil. Para completar, houve uma grande seca em 1921, o que agravou a situação para a de uma catástrofe nacional. A fome era tão severa que a população comia as sementes em vez de plantá-las. Muitos recorreram às ervas e até ao canibalismo, tentando guardar sementes para o plantio. (Não terá saído daí a fama dos comunistas serem comedores de criancinhas? Num documentário da BBC sobre o século XX, uma mulher, ao lembrar-se da fome, conta que sua mãe tentou morder sua filha pequena e que ela precisou trancar a mãe e fugir da casa. Bem, continuemos).