100 anos da morte de Lênin

100 anos da morte de Lênin

Lênin morreu há exatos 100 anos, em 24 de janeiro de 1924. Seu corpo permanece embalsamado em um mausoléu na Praça Vermelha. Dizem que o custo de mantê-lo é de 200 mil dólares anuais e os Eduardos Leites de lá querem enterrá-lo. Ou talvez privatizá-lo.

Mas Putin afirmou: “De jeito nenhum. Não devemos tocar nisso”.

Até 1961, o corpo de Lênin esteve acompanhado do corpo também embalsamado de Stálin, mas então Kruschev decidiu que Lênin não poderia ficar em companhia de alguém que fez tanto mal ao Partido e o georgiano foi parar num cemitério para finalmente decompor-se.

O embalsamado
A linda Nadezhda Krupskaya, esposa de Lênin, não gostou nem um pouco desse negócio de embalsamá-lo.

Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (IV): os cartazes das ruas

Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (IV): os cartazes das ruas

Hoje, os cartazes estão nas galerias e museus de arte do mundo inteiro, mas nos primeiros anos da Revolução, eles estavam nas ruas. Para se consolidar politicamente, a Revolução de Outubro precisava vencer também no âmbito das ideias, fazendo proselitismo diário. Os novos valores precisavam ser difundidos na cidade e no campo, assim como também o culto à personalidade de seus líderes. Operários, camponeses, estudantes, soldados, intelectuais e a sociedade em geral eram o alvo deles, que invariavelmente traziam imagens e linguagem diretas. Entre 1905 e 1955, houve uma verdadeira revolução visual. Após este período, já sem a força da novidade, os cartazes seguiram tentando demonstrar os acertos da Revolução e a necessidade de chegar ao encontro do Comunismo. Eles se tornaram onipresentes na União Soviética.

Desenhistas preparam os cartazes para o 1º de maio de 1929. Foto: Tate Modern

Enquanto o Ocidente vivia o expressionismo, o cubismo, o futurismo, o abstracionismo, o dadaísmo, o surrealismo, e a pop-art, entre outros, o Partido Comunista defendia o Realismo Socialista, tornado absoluto por Stálin nos anos 30 e por Jdanov no pós-guerra. Assim, a grande importância dada ao trabalho de propaganda criou uma nova estética. A célebre Tate Modern, de Londres, por exemplo, dedica uma grande sala à arte da propaganda russa.

Foto: Tate Modern, Londres

Claro que são milhares e milhares de cartazes dos quais escolhemos apenas 38. Veja amostra abaixo:

Leia mais:
— Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (I): Dmitri Shostakovich
— Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (II): Serguei Prokofiev
— Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (III): Mikhail Bulgákov, o homem que recebia ligações de Stálin

“Meu filho, vá salvar a pátria” (Cartaz do Exército Branco, contrário aos bolcheviques que venceram a Revolução)
“O Wrangel ainda está vivo, matem-no sem piedade” (o General Wrangel era um dos principais líderes do Exército Branco)
Cartaz de 1920, durante a Guerra Civil: “Você já se alistou voluntariamente no Exército Vermelho?”
Cartaz de 1920 do artista plástico Lebedev. É uma poesia com rima que diz: “Precisamos trabalhar com a arma sempre por perto” (Maiakovski)
“A glória da Grande Revolução Socialista de Outubro!”
“Glória à revolução de outubro! Abaixo o poder do capital!”
“Glória à Pátria de Outubro!”
“Glória à Revolução Socialista de Outubro!”
“Vivemos conforme as ordens de Outubro, o fogo da aurora está no nosso olhar”, Maiakóvski
“Glória aos heróis do povo do Glória aos heróis do povo do Potemkim!”
“Um espectro ronda a Europa, o espectro do comunismo”, frase do Manifesto Comunista de Marx e Engels
“Viva a Revolução Socialista!”
“Esteja pronto para o trabalho e para a defesa do país!” (Com sugestões de exercícios e frase motivacional para praticar todos os dias)
“O fascismo é o pior inimigo da mulher. Todos na luta contra o fascismo!”
“Os soviéticos lutam contra os bandidos — quando não tem punição, a bandidagem cresce”
“Glória aos 5 anos da Grande Revolução do Proletariado — 4º Congresso Internacional Comunista”
“Glória Internacional Outubro Vermelho”
“Lênin viveu, Lênin vive, Lênin viverá!”, Maiakovski
“Camarada, venha juntar-se ao nosso kolkhoz!”
“Mulheres liberadas constroem o Socialismo”
“O que a Revolução de Outubro deu para trabalhadores e camponeses”
Montagem som o poeta Maiakóvski: “Proletários de todos os países, uni-vos”
Um cartão postal: “Glória à Outubro!”
“Revolução de Outubro”
“Glória à Revolução Socialista de Outubro!”
Glória aos grandes líderes de Outubro
Com poema de Maiakóvski: “Come ananás / mastiga perdiz. / Teu dia está prestes, / burguês
O Grande Timoneiro nos guia de uma vitória a outra
“7 de novembro de 1941, quando o Exército alemão estava próximo de Moscou, aconteceu a tradicional parada militar na Praça Vermelha e, naquele dia, não havia notícia mais importante no mundo: ‘Os russos estão marchando’”
“As mulheres dos kolkhozes são grande força — Não falar nelas é um crime”
“Mulheres, estudem todo o processo de produção para substituir os trabalhadores que foram para a guerra. Quanto mais forte a retaguarda, mais forte o front”
“Revolução de Outubro — Uma ponte para o futuro brilhante”

“Revolução de Outubro — Uma ponte para o futuro brilhante”
“Viva a Internacional Comunista”
“Vamos logo com isso!”
“Combata a embriaguez!” (em forma de porco, uma garrafa de vodka)
“Feliz Grande Outubro!”

100 anos da Revolução Russa em seus artistas (I): Dmitri Shostakovich

100 anos da Revolução Russa em seus artistas (I): Dmitri Shostakovich

Talvez não tenha existido um artista mais representativo do que o foi o Século XX, com todos os seus paradoxos, vanguardismos, violências, guerras e desvios, do que Dmitri Shostakovich (1906-1975). Ele foi exaltado e massacrado pelo poder, censurado e novamente elogiado. Foi presidente da Associação dos Compositores da URSS e depois não podia mais ver executada sua música no país. Talentosíssimo, foi moderno, adequou-se ao realismo socialista e voltou a ser moderno. Escreveu coisas da mais completa alegria, do mais completo sarcasmo, da mais acabada grandiosidade dramática e refletiu a morte e a depressão como poucos artistas.

Dmitri Shostakovich

E foi um herói para muita gente. Por ter sido covarde quando não havia como ser diferente e por ter sido (muito) ousado quando lhe deram frestas. Como escreveu o romancista inglês Julian Barnes, “Shostakovich pagou a César o que lhe era devido — e César era muito exigente naqueles dias –, protegeu a sua família, esperou por dias melhores e desesperou-se enquanto produzia uma obra verdadeiramente sofrida e brilhante. Há mais formas de heroísmo do que as óbvias”.

Sua vida já começou complicada. Exemplo? Bem, ele era considerado o primeiro grande artista revelado pela Revolução. Era saudado pelo poder. Criou sua Primeira Sinfonia em 1926. Tinha 19 anos e estava entusiasmado com o ambiente russo. A Sinfonia obteve repercussão mundial. Tudo era sucesso, mas três anos depois, a pessoa a quem a obra era dedicada foi presa e fuzilada.

Muitíssimas vezes, quando ouvimos a música de Shostakovich, sentimos certa estranheza, notamos intenções, torna-se palpável a ironia, a revolta e o desconforto do autor. Outras vezes, fica claro seu enorme sarcasmo. O poder que as notas escritas por ele têm de comunicar é miraculoso. Percebe-se claramente o drama e os contrastes vividos pelo compositor, sejam eles de ordem pessoal ou não. Em contato com essas obras firmemente assentadas sobre os ombros de Bach, Beethoven, Mahler, Tchaikovsky e Mussorgsky, somos, de alguma forma muito particular, solicitados a conhecer mais das circunstâncias em que foram compostas.

Há três pontos importantes para a compreensão do homem que foi Shostakovich. O Ocidente costumava simplificar os fatos, conferindo ao autor uma condição simples de mártir e dissidente do regime. Tais enganos datam dos tempos da guerra fria e persistem até hoje.

O Comunista: Shostakovich foi um comunista sincero, não obstante suas divergências com uma doutrina oficial que nem sempre seguiu um caminho retilíneo. Sem seu engajamento nítido em favor dos princípios originais que criaram a União Soviética, seria impossível inventar o sopro lírico e épico que atravessa algumas de suas composições. Mas há o verdadeiro e o forçado, ou o espontâneo e a encomenda. No início de sua carreira de compositor, Shostakovich tinha aquele entusiasmo que foi próprio de uma geração de criadores que — como Eisenstein e Maiakovski — , em determinado momento, acreditou ser para amanhã o paraíso terrestre. Depois, lentamente, as coisas foram mudando e o trio renunciou a suas esperanças, às vezes de forma trágica.

Shostakovich foi bombeiro durante a Segunda Guerra Mundial

Não obstante o que era dito durante a Guerra Fria, Shostakovich não esteva preso à União Soviética e teve inúmeras oportunidades de se retirar do país. Quando sua doença começou a prejudicá-lo como intérprete, ele estava fora da URSS. Também esteve algumas vezes com Britten na Inglaterra em alegres visitas. Ou seja, Shostakovich teve numerosas oportunidades para emigrar, não o fazendo nunca. Houve declarações anti-soviéticas? Mas é claro, ele foi massacrado por Stálin e depois, mas jamais foi o dissidente típico. Seus problemas sempre foram relativos às arbitrariedades dos dirigentes do país, que muitas vezes tratou de ridicularizar.

A Morte: Shostakovitch era, por natureza, um grande pessimista: as fotografias em que aparece sorrindo são raríssimas. Além do que, ele parecia obcecado — como seu ilustre predecessor Mussorgski — pela ideia da morte.  Não devemos colocar toda a sua psicologia na conta do geopolítico. Ele possuía muito daqueles niilistas russos do século XIX, tão bem retratados nos romances de Dostoiévski. Há algo de Kirilov nele… Confundir isso com as torturas morais causadas pelos comissários políticos soviéticos é aplainar a grandiosa obra do compositor e é fatal para quem queira compreendê-lo. Obras como o Quarteto Nº 8,  Trio Nº. 2,  Sonata para viola e piano, Op. 147, de 1975 ou a Sinfonia Nº 15, de 1974, todas com suas “Canções da Morte”, são inequívocas, assim como a Sinfonia Nº 14. As trevas sem fim que emanam destas composições e sua melancolia por vezes desesperada só podem surgir de uma personalidade permeável a pensamentos macabros. Porém, até hoje, costuma-se esquecer demais da história pessoal de Shostakovich e colocar todos os seus momentos de depressão como causados pelas pressões das autoridades soviéticas.

O Artista: como os verdadeiros artistas e, principalmente, os músicos, Shostakovich pensava que o estatuto particular de sua arte desobrigava-o a seguir palavras de ordem como aquelas que eram impostas aos operários, aos mineiros ou aos camponeses da URSS. Sob este aspecto, estava muito enganado. Os sucessivos dirigentes jamais esqueceram de intervir diretamente nas orientações estéticas a serem seguidas por pintores, escritores, cineastas e músicos. Sempre esteve fora das cogitações governamentais a existência de uma vanguarda artística na União Soviética, pelo menos após a morte de Lênin.

Apesar de todo o prestígio de que gozou como compositor, nem por isso foi menos perseguido como resultado dos ditames ideológicos dos dirigentes políticos e culturais de seu país — em 1936, o próprio Stálin advertiu-o; em 1948 houve o “Relatório Jdanov”; em 1962, a Sinfonia n° 13, que se apoiava no grande poema Baby Yar de Evgueni Evtuchenko, foi executada sob oposição oficial.

1936 pode ter sido um ano péssimo para ele, porém há detalhes jocosos. Ele havia composto sua segunda e última ópera — a primeira fora O Nariz, baseada no conto de Gógol — quando Stálin foi assisti-la. Stálin achou-a um horror e chamou Lady Macbeth de Mtsensk — cujo tema foi retirado da esplêndida novela de Nikolai Leskov — de “pornofonia”. Desta forma, ela foi banida de todos os teatros soviéticos. Foi preciso esperar 27 anos para retornar à cena e, ainda assim, com a supressão do episódio orquestral que descrevia uma cena de sexo. É curioso que as eructações, flatulências e gargarejos de O Nariz nunca tenham sido alvo de censuras.

Para se recuperar, Shostakovich compôs em 1937 a Sinfonia Nº 5, clássica, grandiosa, linda e bem comportada, que este ano tem sido muito executada por completar 80 anos. E foi perdoado. Poucos anos depois, Shostakovich comporia o símbolo da resistência da União Soviética ao invasor, sua Sinfonia Nº 7, Leningrado. Depois de realizada a primeira audição na União Soviética em 5 de março de 1942, a partitura microfilmada da sinfonia atravessou as linhas de combate, chegando até Nova York, onde Toscanini a fez ouvir em julho do mesmo ano. Em agosto, a Sétima de Shostakovitch ressou na própria Leningrado, sob o cerco dos alemães e transmitida para eles pelo rádio em execução memorável, com os músicos e a população famintas.

Durante a guerra, Shostakovich foi levado para um local seguro, longe dos combates. Estava de amores com o governo e este temia que ele morresse.

Sua carreira foi gloriosa e constantemente posta em questão, repleta de honrarias oficiais e de inclusões em index não menos oficiais. Shostakovitch amargou todos os dissabores de sua condição, a ponto de por vezes ter imaginado que a melhor solução só poderia ser o suicídio. Nem por isso faltou-lhe coragem para seguir incansavelmente, com uma regularidade sem falhas. Até sua morte, em 1975, criou uma obra prolífica e amplamente regeneradora para todo o povo soviético, ao qual Shostakovitch esteve sempre ligado. “A música pode ser amarga, mas jamais pode ser cínica”, dizia o compositor.

A maioria de minhas sinfonias são monumentos funerários. Gente demais, entre nós, morreu não se sabe onde. E ninguém sabe onde os corpos foram enterrados. Mesmo os que eram mais chegados a eles não sabem. Isso aconteceu a uma porção de amigos meus. Onde se pode erguer um monumento a Meyerhold ou a Tukatchevski? Somente a música pode fazê-lo. Estou disposto a dedicar uma obra a cada uma das vítimas. Infelizmente, é impossível. Dedico-lhes, então, toda a minha música.

Em 1948 foi baixada uma resolução do Comitê Central do Partido Comunista Soviético que depois foi conhecida por “Relatório Jdanov”. Jdanov colocava no mesmo saco Prokofiev, Khatchaturian, Shostakovich e quase todos os artistas do país. Shostakovich foi o mais atingido, pois negara-se a fazer de sua Sinfonia Nº 9 um elogio a Stálin e ao Exército Vermelho, publicando em seu lugar uma piada musical, que foi recebida com alegria e aplausos no Ocidente, tendo em Leonard Bernstein seu maior divulgador. O que Bernstein só soube depois é que a nona sinfonia deixara Stálin novamente furibundo com Shostakovich, ao ver suas ordens desobedecidas. Como resultado, suas peças sumiram novamente do repertório.

Mas ele seguiu produzindo e, quando Stalin morreu, em 1953, Shostakovich tinha as gavetas lotadas de novidades. Havia, inclusive uma vingança contra o grande líder. O segundo movimento da espetacular Sinfonia Nº 10, especialmente raivoso, seria um retrato de Stálin.

(Já o terceiro movimento é uma valsa onde Shostakovich assina seu nome no ar. Em meio ao movimento, a orquestra silencia para ouvir as notas D-S-C-H (ré-mi bemol-dó-si), a partir da transliteração alemã de seu nome, D. Schostakowitsch. O motivo é ouvido de forma ostensiva também no quarto movimento. Parece dizer: “Stálin, ainda estou aqui, sobrevivi”).

O terceiro e maior desentendimento aconteceu em 1962. Neste ano, aparecia a Sinfonia Nº 13, para solo de baixo, coro masculino e orquestra. Os textos cantados vinham do poema Babi Yar, de Evgueni Ievtuchenko (1932-2017) e, em lugar de cantar o porvir, o poema denunciava os crimes nazistas cometidos naquela cidade perto de Kiev, onde 34 mil judeus foram assassinados. Denunciar crimes nazistas não seria um problema, mas o poema de Ievtuchenko fala na colaboração soviética durante o episódio. Hoje, há certeza de que houve colaboração na mortandade de judeus. Ele e Ievtuchenko, celebridades internacionais, foram fortemente repreendidos pelas autoridades, que exigiram a substituição completa dos textos, sob pena de a música não vir a ser executada. A Sinfonia nunca foi alterada e mais foi estreada na forma original sob a regência do lendário e corajoso maestro Kiril Kondráshin.

Shostakovich finalizou sua obra escrevendo prelúdios e fugas ao estilo de Bach e fazendo referências à Beethoven em sua música. Essa dupla escolha levada a efeito pelo compositor não deve ser encarada como casual, tanto mais que Shostakovich escreveu suas últimas obras no leito de morte. Os alemães não eram bem vistos no país não apenas devido à Guerra, mas desde o século XIX. As mentalidades coletivas russas e soviéticas sempre foram hostis aos alemães, que aparecem frequentemente como personagens ridículos nos romances clássicos russos. E, desde o surgimento de uma consciência musical nacional, as referências à escola germânica não eram bem aceitas.

E, mais uma vez, Shostakovitch não hesitou em enfrentar um tabu cultural. O último discurso musical que produziu, a Sonata para viola e piano, é uma saudação beethoveniana à liberdade. Ao escolher essa referência a Beethoven, ele opta pela fraternidade universal e, saudavelmente, faz abstração das querelas que dividiam o mundo em dois blocos antagonistas. Sob este aspecto, pode-se dizer que ele triunfou sobre os sucessivos dirigentes de sua pátria.

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Bibliografia: grande parte das informações históricas foram obtidas em incontáveis discos, CDs e outras publicações, mas foram  um pouco sistematizadas pela leitura do texto de Philippe Olivier, dentro da História da Música Ocidental, Nova Fronteira, 1997, assim como de Shostakovich – Vida, Música, Tempo, de Lauro Machado Coelho, Perpectiva, 2006.

Prepare-se para o novo escândalo nas redes

Prepare-se para o novo escândalo nas redes

Imóvel, inteiramente nu, o artista russo Fyodor Pavlov-Andreevich, diretor da Galeria Solyanka em Moscou, se apresentará em São Paulo. Deitado, ele irá simbolizar Lênin em seu mausoléu. O público será convidado a tocar no corpo de Fyodor e, quanto mais intenso o toque, mais alta será a música na sala. A música é de Arto Lindsay e tem a possibilidade de ir ao Rio de Janeiro de Crivella em 2018. O nome da performance é Prove-me, sou como você.

Cartaz da exposição em Moscou
Cartaz da exposição em Moscou

Fyodor diz que, durante a performance, o corpo deixa de ser seu, passando a ser uma obra de arte. Em Moscou, garante ele, o público reagiu de forma totalmente imprevisível. O artista não tem receio de reações violentas após o cancelamento do Queermuseu em Porto Alegre, e a performance La bête, em que uma criança interagiu com o performer Wagner Schwartz, também nu, no MAM-SP. No Sesc Consolação, onde a performance ocorrerá, a classificação indicativa será de 16 anos, com explicações sobre a performance antes da entrada.

No ano passado, Fiódor fez uma performance nu no mesmo MAM e não houve nenhuma polêmica.

A Ospa, Lênin e seus mujiques

A Ospa, Lênin e seus mujiques
Lenin regendo
Lênin regendo
Gian Luigi Zampieri | Foto: Ibraim Leão
O excelente Gian Luigi Zampieri. Mas não é a cara de Lênin? | Foto: Ibraim Leão

Os bolcheviques tomaram de assalto o Theatro São Pedro ontem à noite. Chefiados pelo competente maestro Vladimir Ilitch Lênin, a orquestra tentou fazer com que a plateia saísse com cestas de frutos vermelhos do TSP, mas estes ficaram verdes, carecendo de maior maturidade. Sabemos que a a grande fome russa aceita qualquer coisa, até criancinhas; porém também sabemos — por experiência própria — das dores no estômago causadas por frutas verdes .

O programa não era nenhuma novidade, mas era bom:

Beethoven: Abertura “Coriolano”
Mozart: Concerto para piano K.466
Brahms: Sinfonia Nº 4 Op.98

Regente: Gian Luigi Zampieri
Solista: Daniele Riscica (piano)

A Abertura Coriolano acabou sendo a peça mais redonda da noite. Ela ilustra um episódio épico de Shakespeare com nada rara felicidade. Afinal, falamos de Beethoven. A peça é quase uma demonstração prática sobre o valor do silêncio como elemento de tensão. Uma maravilha onde pudemos ver o bom trabalho de Zampieri.

O Concerto para piano, K.466, de Mozart, foi apenas para cumprir tabela. Foi interpretado pelo jovem e correto Daniele Riscica. Jovem demais, correto demais. Faltou elegância e consistência ao moço de 24 anos. As notas foram dispostas com cuidado, mas sem grande significação. Um amigo achou que a orquestra estava muita alta no Romanze (movimento central do concerto), meio que impedindo nossa audição do pianista. Talvez.

A Sinfonia Nº 4, de Brahms, já teve melhores dias, mesmo com a Ospa. Parece-me que há que fornecer Ritalina (?) para as cordas da orquestra. Os sopros surgem com tesão e afinação, enquanto as cordas vêm mais ou menos hesitantes. Na terminologia da Av. João Pessoa, onde nasci, poderíamos dizer que os sopros jogam “às ganha” e as cordas “às brinca”. Aliás,  ontem, brinquei de acompanhar as mãos esquerdas dos músicos das cordas. Conhecendo muito a sinfonia de Brahms, acredito que, por exemplo, o spalla dos primeiros violinos entrava no momento certo, no que era acompanhado por apenas metade de seu time. Claro que não tocam juntos. Por algum motivo, a interpretação melhorou nos dois últimos movimentos, com destaque para o flautista Artur Elias e o clarinetista Samuel Oliveira.

Acho que a orquestra precisa de mais motivação, motivação musical, olhares musicais, interesses musicais.

P.S. — Ontem, em ZH, o ator e colunista Luiz Paulo Vasconcelos reclamou da ausência de crítica na vida cultural gaúcha. E diz:

Crítica é memória, polêmica, discussão. Troca, argumentação, diálogo. O crítico é aquele que percebe e proclama o novo ao mesmo tempo em que fareja e revela o equívoco e a incompetência. Uma arte sem crítica está ameaçada por perigos avassaladores, mediocridade, estrelismo, fórmulas prontas, modismos e muitas outras coisas que estacionam na periferia da criação artística.

Na mosca, Luiz Paulo.

Ospa visita faz bela visita à ilha dos mortos e outra não tão boa a uma exposição

Ospa visita faz bela visita à ilha dos mortos e outra não tão boa a uma exposição

Gentileza gera gentileza. Antes do concerto, já num camarote lateral do Theatro São Pedro, fiz questão de abrir lugar na frente para uma pessoa que sentara atrás. Ele disse que não precisava coisa e tal, mas agradeceu e sentou. Ao final do concerto, dei-me conta de que tinha perdido minha caneta. Não é uma caneta valiosa do ponto de vista financeiro, mas fera um presente de meu pai, falecido em 1993. Como já tive recentemente roubado o relógio de bolso (de ouro) Omega de meu avô, de 1923, além de outras coisas que me foram afanadas, estava irritadíssimo com mais esta perda que me deixaria mais longe daquilo que foi minha nada nobre origem (mas minha). Chamando-me de idiota, retornei aos dois camarotes de onde assistira o concerto, vasculhei ambos e, na volta, quando passava novamente pelo saguão do teatro, lá estava a pessoa para qual abrira lugar. Ele estava me procurando com uma caneta na mão. Agradeci muito, mas esqueci de perguntar o nome daquele rapaz de camiseta azul.

O programa do concerto era bastante curioso, parte dele baseado em artes plásticas. Explico abaixo. O programa:

Hector Berlioz – Les Nuits d´eté, op. 7
Sergei Rachmaninoff – A Ilha dos Mortos, op. 29
M. Mussorgsky / M. Ravel – Quadros de Uma Exposição

Regente: Rodolfo Fischer
Solista: Denise de Freitas (mezzo-soprano)

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Les Nuits d’ été (As Noites de Verão), Op. 7, é um ciclo de canções de Hector Berlioz baseado em seis poemas de Théophile Gautier. Há diversos arranjos do próprio Berlioz para as peças. O original era para piano, claro. O título da coleção de música é uma homenagem ao título francês de Sonho de Uma Noite de Verão de Shakespeare. O mezzo-soprano Denise de Freitas tem voz e musicalidade espantosas. É uma baita cantora e foi um enorme prazer ouvi-la, mas seria ainda melhor se Berlioz não fosse o chato que é. As águas profundas e limpas trazidas por Denise não caíram bem na estagnação berliozana.

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Quinta versão de 'A Ilha dos Mortos', de Arnold Böcklin (1886)
Quinta versão de ‘A Ilha dos Mortos’, de Arnold Böcklin (1886)

Em 1906, tentando fugir da agitação política do czarismo agonizante, buscando um local onde pudesse compor com tranquilidade, Rachmaninoff mudou-se com todo o seu tamanho e mãos acromegálicas para a Alemanha. Foi para a bela Dresden. Lá, um editor sugeriu-lhe a composição de um poema sinfônico sobre o quadro A Ilha dos Mortos, de Böcklin (acima). Ele sabia que Rachmaninoff compunha quase sempre inspirando-se em um livro, um poema ou um quadro.

O pintor suíço Arnold Böcklin (1827-1901) teve uma vida marcada por perdas familiares, depressão e pobreza. Como era de se esperar, tantas desgraças criaram uma arte sombria e funérea. Em 1880, em Florença, uma sonhadora viúva encomendou-lhe um quadro que possuísse uma atmosfera de sonho. Então, Böcklin pintou-lhe sua obra mais famosa, a ultra soturna A Ilha dos Mortos.

Rachmaninoff vira uma reprodução do quadro, em preto e branco, no verão de 1907. Quando, no início de 1909, o editor Struve sugeriu-lhe uma composição inspirada em A Ilha dos Mortos, Rachmaninoff logo aceitou, pois aquela imagem o perseguia. Ao saber que uma das versões do quadro encontrava-se em Leipzig, a cem quilômetros de Dresden, ele foi conhecê-la. Mas… “Eu não me senti tocado pela cor da pintura. Se eu tivesse visto o original antes, talvez não tivesse composto A Ilha dos Mortos. Eu prefiro em preto e branco”. O estranho é que Hitler, Lênin, Freud, Dalí e Strindberg também amavam o quadro de Böcklin.

A versão em 50 tons de cinza, como gostava Rachmaninov
A versão em 50 tons de cinza, como gostava Rachmaninov

A coisa é sombria mesmo. E boa. Para meu gosto é a maior obra de Rachmaninov. Não há nada ali que chegue perto do romantismo melado que o autor tanto praticou. Quem conhece poderá ouvir na música fragmentos do tema gregoriano do Dies irae, que por séculos foi utilizado na Missa de Réquiem. O regente Fischer e a Ospa deram excelente interpretação à fantasmagórica obra, totalmente destituída de felicidade.

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A primeira edição de Quandros de uma Exposição
A primeira edição de Quandros de uma Exposição

Quadros de uma Exposição é uma suíte para piano por Modest Mussorgsky. Viktor Hartmann, arquiteto e pintor, grande amigo de Mussorgsky, havia falecido recentemente, aos 39 anos de idade, nos idos de 1873. No ano seguinte, aconteceu uma exposição de seus quadros numa galeria de São Petersburgo. Após visitá-la, o compositor resolveu prestar uma homenagem ao amigo. Escolheu dez dentre os quadros expostos e compôs uma música para cada um deles. Uniu-os através de um tema comum (o “Promenade”). Era o passeio, a caminhada do flâneur de um quadro a outro. (Importante: os quadros de Hartmann foram perdidos). As melodias são mega nacionalistas e o estilo de piano é inovador em sua austeridade sartoriana.

Tudo isso era muito estranho, pois estávamos numa época em que o piano era instrumento de brilho virtuosístico. Deste modo, a suíte foi deixada de lado por um bom tempo. Mas Claude Debussy era admirador de Mussorgsky e estudou bastante esta suíte. E Ravel fez mais e melhor.

No verão de 1922, atendendo a um pedido de Serge Koussevitzky, Ravel orquestrou a peça. E salvou Mussorgsky do limbo eterno. Só que Ravel fez tudo do seu jeito. Com sua incrível habilidade de arranjador, soube extrair intenso colorido da obra, dentro do espírito dos temas.

Para deixar a obra ainda mais célebre, no ano de 1971, o grupo de rock progressivo Emerson, Lake and Palmer, gravou ao vivo uma versão rock da suíte. Mostrei esta versão hoje para a Elena, que ficou muito surpresa…

A interpretação da Ospa teve bons momentos, como os solos de trompete de Elieser Ribeiro. Mas o fraseado e sofisticação de Elieser não foram acompanhados pelo restante da orquestra, que respondiam em estilo bem mais simples. Contrariamente ao Rach, Fischer nos ofereceu uma versão indulgente, opaca e descuidada da obra. Uma música tão vivaz apresentada daquela forma?

O concerto valeu, e muito, pelo Rachmaninov. É incrível que eu diga isso — costumo detestar Rach! –, mas foi o que achei. O resto foi ornamento pobre, só que saí de lá satisfeito com a música e com minha caneta.

Dmitri Shostakovich (IV)

A maioria de minhas sinfonias são monumentos funerários. Gente demais, entre nós, morreu não se sabe onde. E ninguém sabe onde foram enterrados. Aconteceu a uma porção de amigos meus. Onde se pode erguer um monumento a eles? Somente a música pode fazê-lo. Estou disposto a dedicar uma obra a cada uma das vítimas. Infelizmente, é impossível. Dedico-lhes, então, toda a minha música.

DMITRI SHOSTAKOVICH

Seguimos nossa série iniciada aqui, continuada ali e ainda aqui.

Sinfonia Nº 10, Op. 93 (1953)

Este monumento da arte contemporânea mistura música absoluta, intensidade trágica, humor, ódio mortal, tranquilidade bucólica e paródia. Tem, ademais, uma história bastante particular.

Em março de 1953, quando da morte de Stalin, Shostakovich estava proibido de estrear novas obras e a execução das já publicadas estava sob censura, necessitando autorizações especiais para serem apresentadas. Tais autorizações eram, normalmente, negadas. Foi o período em que Shostakovich dedicou-se à música de câmara e a maior prova disto é a distância de oito anos que separa a nona sinfonia desta décima. Esta sinfonia, provavelmente escrita durante o período de censura, além de seus méritos musicais indiscutíveis, é considerada uma vingança contra Stalin. Primeiramente, ela parece inteiramente desligada de quaisquer dogmas estabelecidos pelo realismo socialista da época. Para afastar-se ainda mais, seu segundo movimento – um estranho no ninho, em completo contraste com o restante da obra – contém exatamente as ousadias sinfônicas que deixaram Shostakovich mal com o regime stalinista. Não são poucos os comentaristas consideram ser este movimento uma descrição musical de Stálin: breve, é absolutamente violento e brutal, enfurecido mesmo, e sua oposição ao restante da obra faz-nos pensar em alguma segunda intenção do compositor. Para completar o estranhamento, o movimento seguinte é pastoral e tranquilo, contendo o maior enigma musical do mestre: a orquestra para, dando espaço para a trompa executar o famoso tema baseado nas notas DSCH (ré, mi bemol, dó e si, em notação alemã) que é assinatura musical de Dmitri SCHostakovich, em grafia alemã. Para identificá-la, ouça o tema executado a capela pela trompa. Ele é repetido quatro vezes. Ouvindo a sinfonia, chega-nos sempre a certeza de que Shostakovich está dizendo insistentemente: Stalin está morto, Shostakovich, não. O mais notável da décima é o tratamento magistral em torno de temas que se transfiguram constantemente.

Milton Ribeiro adverte: não ouça o segundo movimento previamente irritado. Você e sua companhia poderão se machucar.

Quarteto de Cordas Nº 6, Op. 101 (1956)

Talvez apenas aficionados possam gostar deste esquisito quarteto. Ele tem quatro movimentos, dos quais três são decepcionantes ou descuidados. O intrigante nesta música é o extraordinário terceiro movimento Lento, uma passacaglia barroca que é anunciada solitariamente pelo violoncelo. É de se pensar na insistência que alguns grandes compositores, em seus anos maduros, adotam formas bachianas. Os últimos quartetos e sonatas para piano de Beethoven incluem fugas, Brahms compôs motetos no final de sua vida e Shostakovich não se livrou desta tendência de voltar ao passado comum de todos. Enfim, este quarteto vale por seu terceiro movimento e, com certa boa vontade, pelo Lento – Allegretto final.

Concerto Nº 2 para Piano e Orquestra, Op. 102 (1957)

Concerto dedicado ao filho pianista Maxim Shostakovich. É um autêntico presente de pai para filho. Alegre, brilhante e cheio de brincadeiras de caráter privado como a inacreditável inclusão — no terceiro movimento e totalmente inseridos na música — de exercícios que seu filho praticava quando era estudante do instrumento… E não se surpreenda, o primeiro movimento deste concerto é conhecido entre as crianças que veem desenhos da Disney. É a música que é executada durante o episódio do Soldadinho de Chumbo em Fantasia 2000. Quando ouço esta música em casa, sempre um de meus filhos vem me dizer “olha aí a música do Soldadinho de Chumbo”. É claro que a música não tem nada a ver com esta história infantil.  Shostakovich fez um belo concerto para seu filho, de atmosfera delicada e afetuosa. O primeiro movimento (Allegro) começa com uma rápida introdução orquestral em seguida à qual entra o piano. De acordo com a prática habitual de Shostakovich, o tema inicial é um pouco mais poético do que o segundo, de entonação mais vigorosa e rítmica.

Dois movimentos vivos e felizes cercam um melancólico, tocante e melodioso segundo movimento. A inspiração óbvia para este concerto foi o Concerto em Sol Maior (1931) de Ravel. Leonard Bernstein deu-se conta disto e gravou um de seus melhores discos em 1978, acumulando as funções de pianista e regente nos dois concertos. Se este concerto não arrancar algum sorriso do ouvinte, este necessitará de urgentemente de antidepressivos.

Sinfonia Nº 11, Op. 103 – O Ano de 1905 (1957)

Esta sinfonia talvez seja a maior obra programática já composta. Há grandes exemplos de músicas descritivas tais como As Quatro Estações de Vivaldi, a Sinfonia Pastoral de Beethoven , a Abertura 1812 de Tchaikovski, Quadros de uma Exposição de Mussorgski e tantas outras, mas nenhuma delas liga-se tão completa e perfeitamente ao fato descrito do que a décima primeira sinfonia de Shostakovich.

Alguns compositores que assumiram o papel de criadores de “coisas belas”, veem sua tarefa como a produção de obras tão agradáveis quanto o possível. Camille Saint-Saëns dizia que o artista “que não se sente feliz com a elegância, com um perfeito equilíbrio de cores ou com uma bela sucessão de harmonias não entende a arte”. Outra atitude é a tomada por Shostakovich, que encara vida e arte como se fosse uma coisa só, que vê a criação artística como um ato muito mais amplo e que inclui a possibilidade do artista expressar — ou procurar expressar — a verdade tal como ele a vê. Esta abordagem foi adotada por muitos escritores, pintores e músicos russos do século XIX e, para Shostakovich, a postura realista de seu ídolo Mussorgsky foi decisiva. A décima primeira sinfonia de Shostakovich tem feições inteiramente mussorgkianas e foi estreada em 1957, ano de muitas glórias além do quadragésimo aniversário da Revolução de Outubro. Contudo, ela se refere a eventos ocorridos antes, no dia 9 de janeiro de 1905, um domingo, quando tropas czaristas massacraram um grupo de trabalhadores que viera fazer um protesto pacífico e desarmado em frente ao Palácio de Inverno do Czar, em São Petersburgo. O protesto, feito após a missa e com a presença de muitas crianças, tinha a intenção de entregar uma petição — sim, um papel — ao czar, solicitando coisas como redução do horário de trabalho para oito horas diárias, assistência médica, melhor tratamento, liberdade de religião, etc. A resposta foi dada pela artilharia, que matou mais de cem trabalhadores e feriu outros trezentos.

O primeiro movimento descreve a caminhada dos trabalhadores até o Palácio de Inverno e a atmosfera soturna da praça em frente, coberta de neve. O tema dos trabalhadores aparecerá nos movimentos seguintes, porém, aqui, a música sugere uma calma opressiva.

O segundo movimento mostra a multidão abordar o Palácio para entregar a petição ao czar, mas este encontra-se ausente e as tropas começam a atirar. Shostakovich tira o que pode da orquestra num dos mais barulhentos movimentos sinfônicos que conheço.

O terceiro movimento, de caráter fúnebre, é baseado na belíssima marcha de origem polonesa Vocês caíram como mártires (Vy zhertvoyu pali) que foi cantada por Lênin e seus companheiros no exílio, quando souberam do acontecido em 9 de janeiro.

O final – utilizando um bordão da época – é a promessa da vitória final do socialismo e um aviso de que aquilo não ficaria sem punição.

Concerto Nº 1 para Violoncelo e Orquestra, Op. 107 (1959)

Shostakovich e o grande violoncelista Mstislav Rostropovich eram amigos tendo, muitas vezes, viajado juntos fazendo recitais que incluíam entre outras obras, a Sonata para violoncelo e piano, opus 40, já comentada nesta série. Desde que se conheceram, o compositor avisara a Rostropovich que ele não deveria pedir-lhe um concerto diretamente, que o concerto sairia ao natural. Saíram dois. Quando Shostakovich enviou a partitura do primeiro, dedicada ao amigo, este compareceu quatro dias depois na casa do compositor com a partitura decorada. (Bem diferente foi o caso do segundo concerto, que foi composto praticamente a quatro mãos. Shostakovich escrevia uma parte, e ia testá-la na casa de Rostropovich; lá, mostrava-lhe as alternativas, os rascunhos ao violoncelista, que sugeria alterações e melhorias. Amizade.)

Estilisticamente, este concerto deve muito à Sinfonia Concertante de Prokofiev – também dedicada a Rostropovich – e muito admirada pelos dois amigos. É curioso notar como os eslavos têm tradição em música grandiosa para o violoncelo. Dvorak tem um notável concerto, Tchaikovski escreveu as Variações sobre um tema rococó, Kodaly tem a sua espetacular Sonata para Cello Solo e Kabalevski também tem um belo concerto dedicado a Rostropovich. O de Shostakovich é um dos de um dos maiores concertos para violoncelo de todo o repertório erudito e minha preferência vai para a imensa Cadenza de cinco minutos (3º movimento) e para o brilhante colorido orquestral do Allegro com moto final.

Quarteto de Cordas Nº 7, Op. 108 (1960)

Mais um quarteto de Shostakovich com um lindíssimo movimento lento, desta vez baseado no monólogo de Boris Godunov (ópera de Mussorgski baseada em Puchkin), e mais um finale construído em forma de fuga, utilizando temas do primeiro movimento. Uma pequena e curiosa jóia de onze minutos.

Quarteto de Cordas Nº 8, Op. 110 e Sinfonia de Câmara, Op. 110a – Arranjo de Rudolf Barshai (1960)

Na minha opinião, o melhor quarteto de cordas de Shostakovich. Não surpreende que tenha recebido versões orquestrais. Trata-se de uma obra bastante longa para os padrões shostakovichianos de quarteto; tem cinco movimentos, com a duração total ficando entre os 20 minutos (na versão para quarteto de cordas) e 26 (na versão orquestral). O quarteto abre com um comovente Largo de intenso lirismo, o qual é seguido por um agitado Allegro molto, de inspiração folclórica e que fica muito mais seco na versão para quarteto. O terceiro movimento (Allegretto) é uma surpreendente valsinha sinistra a qual é respondida por outra valsa, muito mais lenta e com um acompanhamento curiosamente desmaiado. O quarteto é finalizado por dois belos temas ; o primeiro sendo pontuado por agressivamente por um motivo curto de três notas e o segundo formado por mais uma fuga a quatro vozes utilizando temas dos movimentos anteriores.

Bibliografia: quase tudo de memória, apoiado por algumas capas de CD.

García Márquez e Fidel na última Bravo

A última Bravo! traz uma grande matéria de capa a respeito de um tema muito importante: “O Escritor e o Ditador — O Fascínio dos Intelectuais por Líderes Autoritários”. A matéria é centrada na relação Gabriel García Márquez com Fidel Castro. A amizade é não muito considerada e sim o fascínio, a obediência, o apoio incondicional. Está correto. Depois, o artigo avança na direção de outras relações de fascínio — o de Jorge Amado por Stálin, o de Ezra Pound por Mussolini e Mussolini , o de Camilo José Cela por Francisco Franco. Todos verdadeiramente escreveram odes a seus musos, algumas bastante constrangedoras. O autor do artigo, André Lahóz, procura manter um equilíbrio entre os políticos de direita e de esquerda, mas acho que perdeu uma bela oportunidade de falar no Brasil quando tocou levemente no tema da questão moral da complexa relação entre governantes e intelectuais. Também, coitado, Lahóz é editor-chefe da Exame…

Em nosso país de compadres, parece ser difícil falar nos escritores que buscam e buscaram cargos junto a governos ditatoriais. Mais importante do que o fascínio ou apoio que escritores destacados dão isolada e publicamente, talvez fosse analisar o mar de intelectuais que trabalham e trabalharam silenciosa e vergonhosamente para esses governos. No Brasil, meus caros, a coisa é disseminada até hoje. Eu mesmo conheço um importante escritor gaúcho que arranjou uma boquinha com a Yeda e, olhando mais para trás, quem não sabe que o ministro Gustavo Capanema tinha em seu time de assessores gente célebre e trabalhadora como Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Cândido Portinari, Manuel Bandeira, Heitor Villa-Lobos e Vinícius de Morais, entre outros? Ora, isso ocorre até hoje, é só prometer um cargo que nossos intelectuais aceitam ou dobram-se com a maior facilidade. Sim, poucos morrem em revoluções no Brasil… Por isso, acho absolutamente sem sentido o final do artigo no qual Lahóz declara que, hoje, passados os dias dos seguidores de Marx e Lênin, abençoadamente substituídos pelo seguidores de John Stuart Mill e Alexis de Tocqueville — repito aqui o ato falho de Lahóz ao citar o Karl Marx da primeira dupla (a dos esquecidos) apenas pelo sobrenome, enquanto que a segunda (a dos triunfantes) pelo nome completo, como se fosse necessário esclarecer quem fossem esses “famosos faróis” — , então,como dizia, passados os dias do seguidores de Marx e Lênin, hoje seria complicado para Hugo Chavéz, Evo Morales ou Kirschner (?) laçarem escritores que os bajulem e legitimem (mas ele acha mesmo que GGM legitimou Castro?). O final foi 100% Veja. Viva o Admirável Mundo Neoliberal!

Mas vale a leitura.

Logo após o artigo de Lahóz, há outro de Sérgio Rodrigues. Este faz uma excelente resenha sobre o livro Gabriel García Márquez: Uma Vida, notável investimento de 17 anos do inglês Gerald Martin, a ser lançado no Brasil em março. A biografia, apesar de autorizada, não contorna fatos embaraçosos — dentre os quais Omar Torrijos e Andrés Pastrana seriam os maiores, em minha opinião… — que foram descritos pelo inglês, segundo Sérgio, com compreensiva economia de adjetivos. Porém Sérgio também comete um pecado crasso.

(Certa vez, li um longo ensaio sobre a história do maxixe. Lá pela metade, o autor escrevia en passant que Pixinguinha era o maior compositor brasileiro de todos os tempos. A curta afirmativa parecia prescindir de quaisquer argumentos, pois era matéria transcorrida em julgado, assim como dizer que a água molha… Ora, sugeri educadamente ao autor que retirasse aquela frase que forçava uma verdade não tão clara assim. Houve concordância.)

A historinha acima adequa-se a Sérgio Rodrigues quando ele dá a entender que o conceito ou a ideia de “esquerda”, na política, está morto. Sem maiores explicações, ele decide que GGM tem uma atuação pública de esquerda que “sobreviveu à própria ideia de esquerda” (as aspas são minhas). Ora, este é um falso truísmo (Def.: Verdade trivial, tão evidente que não é necessário ser enunciada). Agora mesmo, a fim de ver se a matéria já tinha transcorrido em julgada, consultei teses contemporâneas de Ciências Políticas e vi que a validade de tais conceitos é efetivamente debatida, só que a maioria das teses, mesmo as de direita, reafirma que são conceitos válidos e mais, sugerem que dizer isso é uma espécie de vezo da direita mais truculenta.

Não sei exatamente o que Lahóz e Rodrigues escreveram. Ás vezes vem um editor e altera o texto, sei disso. Mas penso que a ideologia da Veja está pegando fundo em toda a Editora Abril. Ou a ideologia da Abril pegou na Veja, deu lucro e agora está sendo repassada, sei lá.