Um trecho de Karl Ove Knausgård

Um trecho de Karl Ove Knausgård

Há um trecho de “Um Outro Amor (Minha Luta 2)”, de Karl Ove Knausgård, que só é bem entendido pelos amantes de futebol. O autor estava jogando uma pelada quando caiu violentamente sobre o próprio ombro.

Como as dores eram lancinantes, seus colegas levaram-no a um hospital. Ele ficou aguardando por uma hora numa sala de espera — sim, em Estocolmo, Suécia — sentindo dores horríveis e sem conseguir uma posição confortável. Um inferno.

Chega então a médica e diz que provavelmente ele quebrara a clavícula, mas que ela teria que examiná-lo melhor. Sai da sala e retorna com uma tesoura na mão.

— O que a Sra. vai fazer?

— Vou cortar sua camiseta porque com essas dores que Sr. sente não é adequado mexer os braços.

— Cortar a minha camiseta da Seleção da Argentina?

Um Outro Amor (Minha Luta 2), de Karl Ove Knausgård

Um Outro Amor (Minha Luta 2), de Karl Ove Knausgård

Neste segundo volume, lá perdido no texto, Knausgård diz que “apenas está tentando ser uma pessoa decente”. E céus, como é complicado! É óbvio que a tentativa dele me atinge profundamente, página a página, linha a linha. Difícil largar o livro. E aí a gente entende porque o título geral da obra é “Minha Luta”. 5 livros já foram traduzidos. Falta o sexto.

Impressiona a enorme capacidade do autor em transformar a vida comum em grande literatura. Além disso, a semelhança que vejo entre os pensamentos, modos, atitudes da criança, adolescente e adulto lá na fria Noruega e eu e as pessoas que conheço aqui no Brasil me deixam muito pensativo.

Depois de A Morte do Pai, neste segundo livro de sua autobiografia precoce, Karl Ove Knausgård está vivendo o início de seu segundo casamento e terá três filhos com Linda, uma poetisa sueca com aspirações à atriz pela qual teve súbita paixão. No volume, ele dá novo salto no tempo, indo direto para o período posterior ao final do primeiro casamento, quando decide sair da Noruega e ir morar na Suécia, praticamente de um dia para o outro.

Mas nada é tão fácil quanto parece. O casal discute e se irrita muito, a existência dos filhos muda suas vidas e os pressiona de todos os modos. Todos os problemas conjugais são descritos com a habitual franqueza do autor, que se irrita com a mulher e as crianças, que quer muitas vezes se isolar, que sofre humilhações que só ele nota…

Há também problemas de adaptação ao novo país. O autor chama os suecos de estúpidos, pensa que o politicamente correto adotado pelo país, com suas regras e posturas sociais, sufocam a individualidade. Knausgård é muitas vezes visto como um selvagem, tão notáveis são as diferenças entre as posturas norueguesas e suecas.

Este volume consegue o milagre de ser ainda mais fluido que o primeiro. Há muitos e bons diálogos, tanto entre o casal como entre seu melhor amigo Geir e grupos de amigos. Aliás, a arte de Knausgård torna bons quaisquer diálogos.

Também permanecem as digressões e saltos no tempo. Como “Em busca do tempo perdido” é impossível prever como será o próximo capítulo. O que novamente surpreende é a narrativa sem reservas — sem a menor intenção de esconder eventuais pontos escuros, egoístas e violentos — e a onipresença de fatos onde o autor decididamente não brilha.

O motivo do sucesso internacional? Ora, os temas são universais e humanos, narrados com notável franqueza, expondo a si, a mulher, os filhos e os amigos de uma forma pouco usual. Quem não morre de amor por seus filhos, ao mesmo tempo que se vê sufocado por eles, quem não se desespera? Knausgård descreve tudo isso com ritmo, fazendo-nos mergulhar em vidas completas, profissionais e íntimas. Dele e dos amigos.

O título sugere algum enredo romântico e ele existe. Ele, a dor, as hesitações, as idas e vindas preenchem cada espaço.

Recomendo fortemente.

Karl Ove Knausgard e sua esposa Linda | Fotos: Divulgação