Em 2004, achei que era brincadeira quando li que um certo chileno chamado Roberto Bolaño morrera em julho do ano anterior, aos 50 anos, em Barcelona. Até aí, tudo bem, as pessoas morrem jovens e é uma injustiça mesmo; mas é que vários jornais e revistas lamentaram o desaparecimento de um dos três principais autores contemporâneos da América Latina. Os outros eram García Márquez e Vargas Llosa. Roberto Bolaño? Quem é, ops, quem era? Esqueci do assunto até que a Companhia das Letras anunciou o lançamento de Noturno do Chile. Comprei-o logo. Resultado: engoli o livro num final de semana e, penso agora, que Susan Sontag não estava brincando quando disse que Noturno do Chile é o que há de melhor e de mais precioso.
A seguir, deixo para vocês duas críticas sobre o livro. Volto nos primeiros minutos de amanhã para comentar Os Detetives Selvagens, livro que li no final do ano passado e que não me sai da cabeça. Ah, a primeira crítica é de Adelto Gonçalves e saiu na Gazeta Mercantil:
São Paulo, 27 de Novembro de 2004 – A morte do escritor chileno Roberto Bolaño em 2003, por insuficiência hepática, aos 50 anos de idade, em Barcelona, interrompeu prematuramente uma carreira literária que já o colocara entre os maiores autores da literatura de um país que já teve dois ganhadores do Prêmio Nobel – os poetas Pablo Neruda (1904-1973) e Gabriela Mistral (1889-1957).
Quem duvida que leia “Noturno do Chile” (Nocturno de Chile), que acaba de ganhar tradução em português de Eduardo Brandão pela Companhia das Letras, de São Paulo, um apaixonante monólogo interior de um padre crítico literário às vésperas da morte. Embora não se deva confundir a persona com o seu autor, é impossível deixar de ver no religioso Sebastián Urrutia Lacroix um alter ego e, no texto, um acerto de contas do escritor com o seu passado.
Bolaño estava em plena atividade literária: em 2001, havia publicado o livro de contos “Putas asesinas” (Barcelona, Alfaguara) e era autor de “La pista de Hielo”, “Llamadas telefónicas” e do romance “Los detectives salvajes” (1998), com o qual obteve o Prêmio Rómulo Gallegos. Mas a notoriedade, ele havia obtido mesmo com o livro “La literatura nazi en América” (1996). Bem, a rigor, isto é o que se informa na edição brasileira, o que leva o leitor que não conhece Bolaño a imaginá-lo um autor de poucos títulos.
Não é. Ainda em 2002, Bolaño lançou o romance “Amberes” (Barcelona, Anagrama) e “Una novelita lumpen” (Barcelona, Mondadori), breve romance que conta a história de uma jovem que, a partir da morte dos pais num acidente automobilístico, converte-se na “mãe” do irmão menor, reorganizando o sentido de sua existência – aparentemente, também um romance de formação, pois, claro está, é inspirado na vida atribulada de um chileno desarraigado por força da situação política em seu país.
Em 2000, Bolaño publicou pela editora “El Acantilado”, de Barcelona, o livro híbrido “Tres”, que está dividido em três partes: “Prosa del otoño en Gerona”, “Los neochilenos” e “Un paseo por la literatura”. A primeira e a segunda partes estão em prosa e a terceira, em verso, um poema narrativo que inclui personagens, diálogo e histórias que contam uma viagem ao Norte do Chile, Peru e Equador por um grupo musical de jovens na faixa dos vinte anos e de seu cantor, o mais maduro deles. O poema emprega endecassílabos, octassílabos e heptassíbalos, deixando entrever que foi escrito para ser falado em voz alta.
De 2000 ainda é a segunda edição do romance “Estrela distante” (Barcelona, Anagrama), que ganhou tradução francesa em 2002 (Étoile distante). Seu tema é inspirado no último segmento de “La literatura nazi en América” (“Ramírez Hoffman el infame”) e recupera os anos de 1968 e de 1973 no Chile, especialmente em relação a sua literatura e seus poetas.
Depois de ter saído do Chile com a família para o México em 1968, Bolaño retornou em 1973, entusiasmado com os rumos do país sob o governo socialista de Salvador Allende, mas, depois do golpe militar comandado pelo general Augusto Pinochet, ficou detido.
Libertado por um amigo de infância, seguiu para o exílio e, depois de uma passagem por El Salvador, radicou-se na Cidade do México, onde criou o grupo de vanguarda Infra-Realismo e passou a publicar poemas. A partir de 1977, estabeleceu-se na Espanha e lá permaneceu até o fim, pois retornar ao Chile ao tempo de Pinochet equivalia a uma condenação à morte.
Noturno do Chile é um romance que, publicado na Espanha em 2000, ganhou tradução em 2002 na Inglaterra e nos Estados Unidos e em 2003 na Itália. Escrito em linguagem que contagia o leitor desde o início, não tem divisões nem segmentações.São 118 páginas com apenas dois parágrafos – aliás, o segundo, inspirado em Norman Mailer, diz apenas o seguinte: “E depois se desencadeia a tormenta de merda”.
O narrador, testemunha do tempo que precede o assalto ao poder pelo general Pinochet e seus sequazes, repassa a sua vida num monólogo febril, reconstruindo na memória dois momentos especiais da vida chilena – antes e depois do golpe. Lacroix é um religioso ainda aferrado aos dogmas da Igreja, que não dispensa a sua batina surrada, usando-a como se fosse uma bandeira.
Jovem talentoso, entra para a elite das letras chilenas pelas mãos de Farewell, o crítico literário mais respeitado do país e também proprietário rural. Vários escritores chilenos – e alguns estrangeiros – são citados com seus nomes completos ou sob pseudônimos. Críticos importantes do jornalismo chileno da segunda metade do século XX também surgem disfarçados como Alone e Nicasio Ibacache, personagens que apareceram pela primeira vez em “Estrella distante”.
Há ainda uma alegoria anagramática em dois personagens – Odeim e Oidó (medo e ódio em espanhol escritos de trás para a frente) -, empresários de comércio internacional que convidam o padre para fazer um trabalho na Europa: visitar igrejas de referência em matéria de soluções antidesgaste, estudar as técnicas de conservação, cotejar os distintos sistemas e escrever um relatório.
De volta da Europa, Lacroix encontra o país convulsionado pela crise do governo de Salvador Allende, pressionado pela conjuntura financeira internacional e pela burguesia assustada com suas promessas socialistas. O religioso, porém, passa a ignorar o que corre pelas ruas, fechando-se em casa para ler freneticamente autores gregos. Depois do golpe, curiosamente, é contratado pelos novos donos do poder para dar aulas de marxismo a ninguém menos que o general Pinochet e seus companheiros de junta militar.
Com um ponto de vista ético irônico e malévolo, o memorialista recorda uma festa entre intelectuais ao tempo da ditadura Pinochet num casarão localizado nos confins de Santiago, de propriedade de uma ricaça candidata a escritora, Maria Canales, casada com um norte-americano, Jimmy Thompson.
Lá pelas tantas, um teórico da cena de vanguarda, um tanto bêbado em busca de um sanitário, descobre no porão da casa um homem amarrado numa cama metálica, de olhos vendados, ainda vivo, a respirar com dificuldades, cheio de feridas, “supurações, como eczemas, mas não eram eczemas, as partes maltratadas de sua anatomia, como se tivesse mais de um osso quebrado”. Soube-se, depois, quando chegou a democracia, que Thompson havia sido um dos principais agentes da Dina, a sanguinária polícia política de Pinochet, e que usava a sua casa como centro de interrogatórios e torturas.
Com a descrição de casa dos horrores, o memorialista compõe a metáfora do Chile que lhe coube viver, um país hoje organizado economicamente, às portas do seleto clube do Primeiro Mundo, mas que, pela insânia de seus generais e das elites nacionais e estrangeiras que os financiaram, teve de descer ao inferno e viver um pesadelo que haverá de perturbar o sono de todos os chilenos por várias gerações.
Ao reconstituir a vida social e literária do Chile da segunda metade do século XX, às vezes, de maneira sedutora e, outras, de modo corrosivo, Bolaño não faz só mais uma denúncia política da tragédia latino-americana de nossos dias, mas revolve o esterco de que é feita a espécie humana.
A segunda é de Francisco Foot Hardman e foi publicada na Folha de São Paulo:
São 110 páginas num só fôlego, por isso mesmo num só parágrafo. Imagine que você está mal, não lhe resta muito tempo, e agora mesmo deva passar em revista todos os acontecimentos de sua desafortunada existência, você que foi poeta e crítico literário de ponta, que serviu à inteligência do país como poucos de sua geração. Imagine-se no lugar deste protagonista agônico, padre Lacroix. Sua memória confunde-se com a da história do país, “entre um descampado e um crepúsculo interminável”. Não há mais testemunha do seu solilóquio: há apenas este fantasma renitente do “jovem envelhecido” que lhe perturba as imagens, afeta o juízo. “Noturno do Chile” pode ser lido como uma elegia para um país impossível, para uma pátria literária que é só pesadelo e contra-senso.
É possível falar de “literatura chilena” após Pinochet?, parece-nos indagar Roberto Bolaño, atualizando os termos de Adorno, mas desviando o discurso da metalinguagem filosofante, da novela-ensaio, em prol de uma ficção que corrói todas as ilusões de estéticas redentoras ou de romances da denúncia catártica. Ficção do real arruinado pela contra-revolução na América Latina, definida pelo autor em conto recente como “o manicômio da Europa”. Ao que acrescenta: “O manicômio, há mais de 60 anos, está queimando em seu próprio azeite, em sua própria gordura”. Literatura “visceral-realista”, como costumou-se chamar, no mundo hispano-americano, a corrente de poetas e escritores exilados, entre os quais Bolaño, que se formou no México, em meados dos anos 70. Denominação adequada porque a aspereza dessa prosa torrencial incorpora-se às sensações corporais mais primárias.
A violência é internalizada em imagens rápidas e ríspidas, tragicômicas, absurdamente triviais em sua cotidianidade, que, num repente, irrompem como um soco no estômago capaz de quebrar nossos automatismos perceptivos, mas sem nunca transpor o limiar de suas terríveis cadeias, de seus equívocos sinistros.
Se “Noturno” consegue enfrentar o duro dilema da ficção pós-desastre no Chile, “Estrella Distante” (1996) tinha sido o romance inaugural dessa linhagem, trazendo para a primeira cena os efeitos da repressão genocida sobre toda uma geração, não como prática social ou política, mas como experiência mental e corpórea imediata. Já nos ótimos contos de “Putas Asesinas” (2001), saídos um ano depois de “Noturno”, a marca que perpassa é a da memória deslocada pelo exílio, “o calor de uma certa desmedida”, que é o vagar sem rumo dessas escrituras de proscritos.
Tendo vivido metade de sua vida na região de Barcelona (Roberto Bolaño morreu no ano passado, com 50 anos, e lá viveu desde 1978), é “visceral” mesmo sua desconfiança com respeito à instituição literária, sobretudo no que diz respeito à construção de mitologias e martirológios nacionais. O vigor incisivo de sua prosa espiralada não redime nenhuma das ilusões de uma nacionalidade fundadora, seja antes, durante ou pós-era Pinochet.
Em “Noturno”, a narrativa investe contra o mundo dos artistas (a personagem María Canales é casada com um agente norte-americano da Dina, o temível órgão de repressão e tortura), críticos (na figura de Farewell, autoridade absoluta do mundo literário chileno, cujo declínio já se insinua no nome) e poetas (desconstruir o mito Pablo Neruda é um dos esportes favoritos dos narradores de Bolaño).
Também a Igreja Católica não passa incólume, nessa presença em muitos lances patética do padre Lacroix, membro da Opus Dei: contratado por dois comerciantes obscuros (os senhores Odem e Oidó, anagramas respectivos de medo e ódio, detalhe muito bem apanhado pelo tradutor brasileiro, Eduardo Brandão), ele oferece aulas introdutórias e clandestinas de marxismo à junta militar golpista, apoiado, entre outros textos, no manual de materialismo histórico da chilena Marta Harnecker, hit das esquerdas latino-americanas dos anos 60 e 70.
Mas “Noturno do Chile” não é libelo, nem pote amargo. Se a paisagem é a da noite elegíaca de uma barbárie que ultrapassou os portais do absurdo, e a atmosfera ronda sempre o pesadelo, sobra entretanto humor, imaginação, erudição literária e um lirismo que se espraia em detalhes só acessíveis a um escritor que começou a escrever, viveu e morreu como poeta, no epicentro de terremotos que solaparam as utopias de sua geração. Cujos rostos talvez se pareçam com o desse “jovem envelhecido”, “fantasma”, ternamente admissível, contudo, se não pretendermos continuar o vôo cego.
(o final será publicado nos primeiros minutos de amanhã, sexta-feira)