Mario Benedetti (1920-2009)

A Meg me avisa que um dos escritores que mais amo morreu ontem em Montevidéo aos 88 anos. Claro que foi uma vida longa, prolífica e deveríamos ficar felizes com uma existência assim, só que Mario Benedetti, mesmo em seus livros mais políticos, tinha uma voz tão próxima do leitor, tornava-se tão íntimo de nós, que é impossível não se sentir triste por ele, pela literatura, pelo Uruguai e por nós, que vamos ficar privados de sua companhia. Gosto muitíssimo dele e agora improvisarei qualquer coisa em sua memória.

Rodolfo Nin Novoa, presidente em exercício do Uruguai, María Simon, ministra da Cultura, e Ricardo Ehrlich, prefeito de Montevidéu estão preparando seu velório no Palácio Legislativo e seu sepultamento no Panteão Nacional.

A Agência EFE publicou a seguinte nota, de Juan Antonio Sanz:

Montevidéu, 17 mai (EFE).- O escritor uruguaio Mario Benedetti deixa atrás de si uma rica obra, na qual os mais de 80 romances, ensaios, contos e poemas escritos mostram o compromisso social e a coerência de alguém que acreditou “na vida e no amor, na ética e em todas essas coisas tão fora de moda”.

“Ele sempre disse que se sentia mais poeta que outra coisa”, afirmou a biógrafa do escritor, Hortensia Campanella, quando apresentou, há alguns meses, o livro “Mario Benedetti. Un mito discretísimo”.

Na obra, ela traça a trajetória de um dos mitos da literatura hispano-americana do século XX e talvez a consciência poética de todo um continente.

Essa poesia se transformou no único pilar para enfrentar seus últimos anos, após a morte da esposa, Luz López, em 2006, sua companheira há mais de seis décadas e a melhor crítica do poeta.

Benedetti teve “uma vida que foi perseguindo a utopia e que, por isso mesmo, encontrou na poesia sua melhor expressão, ou pelo menos, a mais querida, a mais autêntica”, explicou Campanella.

Joan Manuel Serrat, Daniel Viglietti, Pedro Guerra, Rosa León, Juan Diego ou Nacha Guevara são só alguns dos cantores que deram voz aos versos de Benedetti.

A poesia, dizia Benedetti, é “um sótão de almas”, uma “claraboia para a utopia” e “uma drenagem da vida/ que ensina a não temer a morte”.

Foi também o martelo que lhe permitiu forjar uma carreira literária ligada às profissões mais diversas: empregado de uma oficina, taquígrafo, caixa, vendedor, contador, funcionário público, tradutor e jornalista, antes de se dedicar ao que mais gostava.

“Quando tenho uma preocupação, uma dor ou um amor, tenho a sorte de poder transformar em poesia”, afirmava.

Títulos como a primeira obra do autor, “La víspera indeleble”, os “Poemas de la oficina”, “Rincón de Haikus”, os grandiosos três “Inventarios” ou as “Canciones del que no canta” foram coroados no ano passado com seu último poemário, “Testigo de uno mismo”.

Este livro era “um pouco o resumo de uma carreira poética extraordinária”, com todos os grandes temas da poesia universal transbordando pelas páginas, como disse a romancista Sylvia Lago.

Além disso, nesta obra já se pressentia o final dos dias do escritor, pois ele dizia claramente que se sentia só sem sua amada Luz e com um mundo reduzido: “Chega a noite e estou só/ me aturo a duras penas/ o bom amor a morte o levou/ e não sei para quem seguir vivendo”.

A poesia também deixou muito espaço para a prosa na obra de Benedetti e, assim, seu principal romance, “La tregua”, é uma das luzes da literatura do continente, com mais de 140 edições em 20 idiomas desde que foi publicado, em 1960.

O poeta também dedicou tempo aos contos, nos quais “cada palavra tem valor por si só” e, sobretudo, “têm a ver com os sentimentos”, como explicou em 1998.

O conto “é o gênero mais gratificante, tanto para o autor quanto para o leitor”, pois, “desde tempo imemorável, as pessoas gostam de que lhes contem coisas, e alguns gostam de contá-las”, dizia o autor de “Geografía”, “La vecina orilla” e “Montevideanos”.

Tanto a prosa como a poesia de Benedetti foram reconhecidas amplamente, e isso é atestado por prêmios Ibero-americano José Martí (2001) e Internacional Menéndez Pelayo (2005).

Em sua última aparição pública, em dezembro de 2007, Benedetti recebeu a Ordem Francisco Miranda, dada pelo presidente venezuelano, Hugo Chávez, na Universidade da República do Uruguai, aclamado pelas centenas de estudantes que reconheciam no poeta um ícone nacional.

Chávez reconheceu o autor de “Gracias por el fuego” como um ícone da esquerda latino-americana, pelo compromisso social que refletiu em sua vida, com o exílio durante a ditadura uruguaia na Argentina, em Cuba e na Espanha, e, sobretudo, em sua obra.

“A consciência é a única religião”, chegou a dizer este crítico da “grande hipocrisia que rege toda a vida política” e da globalização, à qual chamou de “ditadura indiscriminada, que cada vez conduz mais ao suicídio da humanidade”.

Em declarações à Agência Efe em junho de 2002, Benedetti explicava que, apesar de “os poetas não terem capacidade de influir nos Governos”, “atingem o cidadão comum, e, às vezes, servem para esclarecer uma dúvida, para dar uma tímida resposta a uma pergunta de alguém”.

Há alguns meses escrevi uma resenha a respeito de seu grande ensaio sobre a mediocridade, o romance A Trégua.

E, em meu blog anterior, publiquei duas resenhas curtas:

Eu já deveria ter lido Gracias por el fuego há muitos anos. Afinal, tudo o que do uruguaio Mario Benedetti me caiu nas mãos foi apreciadíssimo. Durante a Feira do Livro de Porto Alegre, descobri que havia uma edição em pocket da L&PM e finalmente o adquiri. É um livro político que trata do tema da frustração e do conformismo ou impotência frente à realidade, mas também é um romance psicológico que trata da baixa auto-estima. A obra foi censurada durante as ditaduras no Uruguai, na Argentina e na Espanha e diria que nunca estes governos foram tão exatos ao identificar algo que os explicasse e ameaçasse. A relação de Ramón Budiño com seu pai é a analogia perfeita dos métodos utilizados pelos regimes ditatoriais e uma aula sobre corrupção. Nada mais atual. Sem palavras de ordem, sem discursos datados e fora de hora, o livro tem boa trama e convence por seus personagens bem construídos e por sua humanidade. E traz, como sobremesa, uma figura de mulher absolutamente irresistível: Dolly, ou Dolores, para os íntimos. É uma pena que não tenhamos no Brasil uma obra sobre os tais “anos de chumbo” que chegue aos pés de Gracias por el fuego.

A Borra do Café, do uruguaio Mario Benedetti (Record) é um livro fácil de ler, daqueles de levar na mão de um lugar a outro. A princípio, parece ser um livro de crônicas, mas estas começam a completar-se e a ter continuidade formando um curioso romance feito de mosaicos. É notavelmente bem escrito e — por que não? — montado. Destaque para as descrições das primeiras experiências sexuais do personagem principal e para o ambiente da Montevidéo dos anos 30 e 40.

Termino este obituário com outro, escrito por Benedetti. O refinado escritor era capaz de momentos de ódio, como quando festejou a morte de Ronald Reagan. Leiam:

A Ronald Reagan, a la muerte de un canalla

OBITUARIO CON HURRAS, de Mario Benedetti

Vamos a festejarlo
vengan todos
los inocentes
los damnificadoslos que gritan de noche
los que sueñan de dia
los que sufren el cuerpo
los que alojan fantasmas
los que pisan descalzos
los que blasfeman y arden
los pobres congelados
los que quieren a alguien
los que nunca se olvidan
vamos a festejarlo
vengan todos
el crápula se ha muerto
se acabó el alma negra
el ládron
el cochino
se acabó para siempre
hurra
que vengan todos
vamos a festejarlo
a no decir
la muerte
siempre lo borra todo
todo lo purifica
cualquier día
la muerte
no borra nada
quedan
siempre las cicatrices
hurra
murió el cretino
vamos a festejarlo
a no llorar de vicio
que lloren sus iguales
y se traguen sus lágrimas
se acabó el monstruo prócer
se acabó para siempre
vamos a festejarlo
a no ponermos tibios
a no creer que éste
es un muerto cualquiera
vamos a festerjarlo
a no volvermos flojos
a no olvidar que éste
es un muerto de mierda

Em português:

OBITUÁRIO COM HURRAS, de Mario Benedetti

Vamos lá, vamos festejá-lo
estão todos convidados
os inocentes
as vítimas lesadas
os que gritam de noite
os que sonham de dia
os que sofrem no corpo
os que alojam fantasmas
os que pisam descalços
os que blasfemam e ardem
os pobres congelados
os que amam alguém
os que nunca se esquecem
vamos festejá-lo
estão todos convidados
o crápula morreu
acabou-se a alma negra
o ladrão
o porco
acabou-se para sempre
viva
estão todos convidados
vamos festejá-lo
para não dizer
que a morte
apaga sempre tudo
tudo purifica
num dia qualquer
a morte
não apaga nada
ficam
sempre as cicatrizes
viva
morreu o cretino
vamos festejá-lo
e não chorar como de hábito
que chorem os que são como ele
e que engulam suas lágrimas
foi-se embora o monstro magnata
acabou-se para sempre
vamos festejá-lo
sem ficar mornos
sem acreditar que este
é um morto qualquer
vamos festejá-lo
sem ficar frouxos
sem esquecer que este
é um morto de merda

Um morto de merda é tudo o que Mario Benedetti não é. Em 2006, Benedetti perdeu sua esposa, que se chamava Luz e com a qual era casado desde 1946. Nunca se recuperou. Luz o acompanhou no longo exílio pela Argentina, Peru, Cuba e Espanha. Benedetti afirmava que a literatura era “um sótão de almas”, uma “clarabóia para a utopia” e “uma drenagem da vida que ensina a não temer a morte”.

Atualização das 7h20: aqui, um excelente texto sobre Benedetti. E aqui, imagens — quase todas recentes — do velhinho.

13 comments / Add your comment below

  1. Será que a literatura ensina mesmo a não temer a morte? Talvez sim, se diz respeito à própria, em sentido literal. Mas acho difícil que ensine a evitar a morte que lhe abateu quando da perda de sua esposa…

    1. Descendo da escala metafórica, todos nós tememos a morte e sabemos que todos, mas todos os nossos atos, referem-se, de alguma forma, a ela.

      Abraço, Rafa.

  2. Milton, que bela homenagem para essa grande perda! Farei um singelo post para ele, mas sem dúvida nenhuma é o teu que ficará linkado por lá, pelo fôlego e consistência do que disseste.

    Tenho um especial carinho por Benedetti, e na minha mesa de cabeceira está justamente A Trégua, que mais do que nunca terei que começar a ler. (A minha resistência deve-se a não tê-lo em espanhol e sim em português, pouco importando se a qualidade da tradução é boa ou não…)

    Já fiz menção ao Benedetti em três outros posts lá na Ágora: um que se referia ao seu romance Primavera con una Esquina Rota, meu primeiro contato com Benedetti (em 1984), do qual destaquei uma fala da menina Beatriz, de que gosto muito (e cujo humor a recente tradução em português empobreceu, infelizmente). Outro post mostrava uma frase fantástica que tirei do seu primeiro romance, “Quem de nós”. E o terceiro foi justamente um poema, musicado por Serrat, que hoje é mais do que adequado e que, se me permite alongar-me, ponho aqui:

    Currículum

    El cuento es muy sencillo
    usted nace
    contempla atribulado
    el rojo azul del cielo
    el pájaro que emigra
    el torpe escarabajo
    que su zapato aplastará
    valiente

    usted sufre
    reclama por comida
    y por costumbre
    por obligación
    llora limpio de culpas
    extenuado
    hasta que el sueño lo descalifica

    usted ama
    se transfigura y ama
    por una eternidad tan provisoria
    que hasta el orgullo se le vuelve tierno
    y el corazón profético
    se convierte en escombros

    usted aprende
    y usa lo aprendido
    para volverse lentamente sabio
    para saber que al fin el mundo es esto
    en su mejor momento una nostalgia
    en su peor momento un desamparo
    y siempre siempre
    un lío

    entonces
    usted muere.

    Um abraço agradecido pelos serviços prestados à humanidade, Benedetti!

  3. Há uns dois ou três meses atrás via, no Canal Brasil, um filme argentino, sobre um escritor/poeta marginal entre Buenos Aires e Montividéu. Lá pelas tantas apareceu um velhinho e eu avisei à Rachel: deve ser o Mario Benedetti. Era; velhinho com olhar sacana e vivaz.

    Seus livros estão sendo recentemente publicados no Brasil. Desses, li todos. É peculiar, um olhar bem uruguaio, periférico, desencantado mas não à la Onetti, individualista incorrigível, dotado de um talento tão grande quanto o próprio umbigo, avesso ao mundo como Benedetti não é, este último com sua sanha de abordá-lo para reduzir ao ridículo seus dramas e seus personagens, a carecer de alcance e de ambições menos pequeno-burguesas.

    Como tudo que é periférico, aliás, é essencial e atinge o âmago, na medida de nossas pequenas possibilidades de chegar lá, estando em Punta del Este, Nova Iorque, Paris ou Podgorica.

    A melhor homenagem a Benedetti é considerá-lo, sim, um morto de merda. Afinal, somos todos uns merdas à espera da morte, que chegou para ele hoje, chegará para nós amanhã. Não será um merda somente aquele para quem a morte não chegará (hipótese ridícula), e nenhuma posteridade literária irá além da efemeridade das pretensões humanas.

    Sendo o merda que era, Mario Benedetti foi dos mais queridos. É pouco, mas é humano e o quanto nos é possível. E basta. Chorar não será, ao menos para mim, nenhum remédio.

    1. Tens razão, Marcos. Benedetti revelava a cada frase nossa condição de merdas e, desta forma, é tão morto de merda quanto qualquer um de nós. “Quem de nós” não é?

      Lembro de uma amiga que, cruzando com Benedetti numa livraria em Montevidéo, teve a cara de pau de dirigir-se ao tímido escritor e poeta para perguntar-lhe:

      — Gostaria de saber porque, em seus livros, as melhores pessoas sempre acabam mal.

      Benedetti abriu amplo sorriso e respondeu que o mundo era dos mais ambiciosos e velozes, não de pessoas ruminativas que se encontravam sem nenhuma pressa numa livraria de bairro às 16h de uma quinta-feira. Conversaram durante uns 30 minutos e despediram-se como amigos.

      Talvez o que tenha procurado dizer ontem à noite, fosse a condição mansa de nosso defunto inexoravelmente merda.

  4. Mário,
    fiquei triste também com a notícia da partida desse Mestre.
    Engraçado, sei se pelo fato de ser mulher, sempre me senti como mãe da morte.
    uma espécie de gestação sem data marcada. Sei cada dia o parto se aproxima.
    Na hora do parto, eu “parto” e ela renasce de mim.
    Nosso querido Mario Benedetti deu luz à morte e partiu.
    Antagônico, paradoxal sei lá, um jeito de dar um pouco de lume nesse breu que fica.
    Abraço,
    kryss

  5. Por gentileza, quem conhecer um poema chamado “No te rindas…”, de Mário Benedetti, faça o obséquio de enviar-me.
    Também, caso esteja nominado “erradamente”, ou seja, faça parte de outro poema ou seja conhecido por outro nome, igualmente me envie.
    Muito obrigada,
    Rosmarina

    1. Já encontrou “No te rindas” de Mario Benedetti? É muito provável, desde março… Bem, em todo caso, hoje 18 de julho, estava fazendo uma pesquisa sobre alguns poemas de Benedetti, encontrei essa página e fui lendo, lendo até chegar aqui e ver seu pedido. Uns 40 minutos antes estava justamente vendo um vídeo com essa poesia. Se ainda interessar entre nesse link do YouTube e vai encontrar a poesia de várias maneiras diferentes. Algumas muito lindas.

      http://www.youtube.com/watch?v=5ekQaOgL43g&feature=related

      Boa Sorte
      Abçs
      Cinthia

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