Aqueles dois, de Caio Fernando Abreu

Idelber Avelar propõe hoje a leitura de Aqueles Dois, de Caio Fernando Abreu, em seu Clube de Leituras.

O conto narra a história de uma amizade ou amor interrompido. São dois homens — Raul e Saul — que vão trabalhar numa cidade pequena após serem aprovados em um concurso. Não conhecem ninguém na cidade, são solitários, altos, elegantes e ambos vêm de relações frustradas com mulheres. Um dia, Saul atrasa-se para o trabalho. Motivo: ficou vendo um filme até tarde e não conseguiu acordar a tempo. A princípio não deseja comentar o fato, porém, provocado por Raul, fala sobre o filme e abala-se (verbo utilizado por Caio) ao notar que ele poderia ser a exceção naquele “deserto de almas” — lugar comum igualmente utilizado por Caio com medida ironia. Começam a conversar sobre cinema, depois sobre música, artes plásticas; enfim, passam a conhecer-se.

Quando li o conto pela primeira vez, sua lentidão pareceu-me exasperante. Ontem, ao lê-lo, achei-o até rápido. Talvez esta impressão seja causada por uma leitura da qual já se saiba o resultado, da qual já se conheça a história, mas acho que estaria mais próximo da via certa se dissesse que pressenti o que desejava o Idelber. Ora, sei que o conceito de Ricardo Piglia de que todo conto narra duas histórias é muito caro a ele. Eu não discordo, apenas acredito que tal teoria seja algo mais antiga do que Piglia.

A teoria de Piglia é muito semelhante à forma sonata da música erudita. Neste gênero de composição há a apresentação do primeiro tema (a solidão dos dois, o emprego, a disponibilidade, a amizade), depois a apresentação do segundo tema (a possibilidade do amor, da criação de uma situação mais confortável, de “redenção”). Mostrados os temas, eles passam a se relacionar, a se misturar, algumas vezes quase criando um terceiro, mas deixando sempre presentes — em forma resumida — os temas iniciais (as pequenas cenas de trabalho / a continuidade da amizade, a noite dos cigarros / a volta ao emprego e a síntese: os cabelos molhados/a repartição), aos quais se retorna sempre, seja de forma resumida ou não, decidida ou não, ou misturados ou não.

No conto de Caio o primeiro tema invade e mata o segundo quando da intervenção do ambiente da cidade. Ao preconceito não interessa saber se os dois trepavam; o preconceito não discute, apenas exige que o senso comum seja cumprido. Os dois colegas não podem chegar juntos e de cabelo molhado ao trabalho. Você pergunta: eles não deveriam saber disso? Pode ser, só que, enquanto o preconceito já decidiu que aquela amizade com visitinhas aqui e ali não lhe serve, eles ainda não saíram do armário. É-lhes cobrada uma disciplina formal que ambos escamotearam ao ignorarem que aquilo poderia ser finalmente o amor. Por que se preocupariam em esconder o que, afinal, ainda não existia? E sobrevém a punição, com os dois demitidos sob medíocres risos de vingança.

O bom do conto é a armação dos dois conflitos — o interno e o externo. Não há muito além disso. Aliás, também não há muito além disso em Missa do Galo. Machado arma uma situação cujo proveito passa encilhado. É como se diz aqui no sul do Brasil: “Cavalo encilhado não passa duas vezes” ou “Cavalo encilhado só passa uma vez na frente da porteira”. Sim, eu sei, ele pode passar duas ou dez vezes, mas para o casal da Missa e para Estes dois só passou uma vez.

(Dou-me conta agora que Caio não dá destino a seus personagens. Então pode ser que o cavalo tenha sido montado pós-conto. Talvez Aqueles Dois seja pré-coito…).

Idelber chama a atenção sobre como a periferia auxilia a história: os títulos das canções e do filme que os fez conversar (Infâmia), o nome do gato (Gato? Que gato? Só lembro do sabiá Carlos Gardel! Acho que foi um ato falho de nosso mestre: o conto é tão casto que ele, na falta de outros manjares, acabou comendo o passarinho através de um gato imaginário. Falando sério, não lembro de gato nenhum!), etc. Concordo, em qualquer grande obra, o contexto empurra importa e significa e, dentro desta periferia cheia de significados, faço questão de destacar o contexto da primeira conversa mais íntima, o do primeiro café:

aquela manhã muito fria de junho, o prédio feio mais do que nunca parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica…

É.

11 comments / Add your comment below

  1. Engraçado, na hora em que li o conto achei estranho o Caio escrever “abalado”, aquilo não pareceu nem um pouco gratuito. É como se essa palavra “não fosse de lá”, entrasse pedindo licença em voz alta e obrigasse que todos a notassem, não?

    Queria mesmo ter essa tua capacidade de destrinchar um texto literário… em termos literários, e não apenas com impressões esparsas e quase sempre pessoais demais, como sempre faço. E o pior é que não acreditar, no meu caso, na frase “um dia eu chego lá”.

    Dez, Milton, dez!

      1. Pode parecer, mas não é exagero não. Não se trata de te comparar a acadêmicos da literatura, mas a uma pessoa que não tem a literatura ou a crítica literária como ofício, e, no entanto, em seu exercício ao redor dos livros, consegue extrair saber e sabor de rara qualidade, e ainda o transpõe para o papel/tela do computador. Não é pouco, meu caro, e menos ainda em tempos onde se vai longe na extensão, mas na profundidade… Tempos rasos como a porra, como diriam os baianos.

  2. Belo conto! Sutil. Correlações com Brokeback Mountain, mais precisamente à narrativa original da Annie Proulx.

    Se Piglia menciona um possível dualismo nos grandes contos, eu lembro da capacidade rara que alguns deles tem de invocar uma outra história depois da leitura. Uma ressonância tardia. Como aquele golpe mortal imperceptível, que fataliza a vítima após o sétimo passo. Cortázar tinha essa mania. Outro cheio deste conhecimento marcial foi o grande Alberto Morávia (li um conto dele, há década, que narra um casal na praia, tentando salvar o casamento do tédio; e a mulher, de forma espantosamente natural, se deixa ser estuprada por um negro_ já procurei em vão essa obra, e se não fosse por sua excelência, poderia pensar que o inventei.)

    Outro exemplo é Faulkner. Só depois de alguns dias após concluir a leitura de Absalão,Absalão, me dei conta, estupefato, da certeza que Quentim, o personagem que narra a história para um amigo (ambos isolados por uma nevasca rigorosa no quarto de uma velha casa) havia suicidado.

  3. AQUELES DOIS
    Ramiro Conceição

    Eram dois aqueles moços:
    um, moreno, era formoso;
    meigo e louro, era o outro.
    Do Norte,
    Raul.
    Do Sul,
    Saul.

    Exótica
    harmonia
    os vestia:
    um,
    de barba
    negra,
    era Raul;
    o outro,
    frágil
    do olhar
    azul,
    era Saul.

    Mas
    daquela vez
    se decifraram
    aqueles dois:

    Raul era
    o Norte;
    o Sul
    era Saul.

    Que sorte!

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