Adrem Atup e os fins da razão

Adrem Atup nasceu na Finlândia em 1958. Seu pai, Neila Atup, era um simpático hippie, um andarilho que se apaixonou pela paisagem de Parati do final dos anos 60 e lá decidiu permanecer. Sua mãe? Neila dizia que era uma holandesa, de nome Stella, que desaparecera. Em seus documentos só havia o nome do pai. Adrem aprendeu no Brasil o quarto idioma de sua vida nômade e então começou finalmente sua formação regular. Nunca antes tinha frequentado salas de aulas e, apesar de interessar-se muito mais pela educação cabal que recebia de seu pai e amigos, foi excelente aluno.

Nem ele nem papai Neila tinham vivências anteriores sob ditaduras militares, mas, mesmo naquela época, não era muito difícil viver para os obscuros pintores, artesãos, bichos-grilos e assemelhados da cidade histórica. A dupla finlandesa logo confirmou a suspeita de que todas as pessoas decentes eram contra aquilo. Conviviam com artistas de esquerda e comunistas que combatiam os militares discutindo política enquanto fumavam maconha, bebiam as maravilhosas cachaças da cidade e pintavam quadros rústicos. Estaria enganado quem imaginasse um bloco monolítico de oposição aos militares, pois eles dividiam-se em infinitesimais tendências, todas com princípios muito claros e impermeáveis a quaisquer influências que as pudessem macular. A inteligência de Adrem, tal como a de seu pai, nunca serviu para o entendimento da política; eram antes dois sonhadores que passavam o tempo conversando e repetindo quadros para os rarefeitos turistas que vinham à cidade naqueles anos. Um dia, Neila comprou a preço de banana uma casa caindo aos pedaços no atual Centro Histórico de Parati; ali, vendiam sua produção e a de outros artistas e artesãos, principalmente aquarelas representando a antiga igreja da cidade vista do litoral e pequenos quadros, cartões e broches revolucionários que ostentavam, o mais das vezes, a figura de Che Guevara.

Quando terminou o secundário num colégio público de Parati, Adrem prestou vestibular e passou facilmente em Artes Plásticas na USP. Lá, entranhou-se-lhe ainda mais a certeza de que todas as pessoas confiáveis eram de esquerda e, mais, atéias. Atéias como Sílvia, uma colega de seios fartos, pela qual se apaixonara enquanto a ouvia falar das milhares de reticências coloridas contidas em cada tela de Seurat e que o aconselhara a largar o mundo de mão, pois a apreensão possível a eles era a ontológica, não a sociológica. Adrem riu como se tivesse ouvido uma piada. Não sabia o que era ontológico, mas imaginava alguma relação com o câncer. Seguia observando vagamente a cena militar e política, o que lhe parecia ser a mesma coisa. Via os eventos e ações governamentais e registrava a presença, lado a lado, de autoridades militares e religiosas dando seu apoio ao governo. Sabia, pois, que aquelas instituições estavam juntas e continuava a ver o mundo como você lê estas palavras, da esquerda para a direita. Aliás, quem não era de esquerda tornava-se instantaneamente deplorável. O mundo, então, era de fácil interpretação, tão fácil quanto desenhar os seios arredondados de Sílvia e alguns faroestes: the good and the evil, os bons e os maus, os cronópios e os famas, os legais e os caretas, os da esquerda e os da direita, os intelectuais e os militares, a cultura e a religião, a luz e as trevas.

Então, nos anos 80, o mundo tornou-se mais complexo para o quase-apolítico Adrem. Foi uma enorme euforia e os dois grupos da época de ditadura espraiaram-se num complicado “espectro político”. A esquerda foi invadida pelos cristãos, alguns intelectuais foram para a direita e o mundo começou a dividir-se, segundo Adrem interpretou, em reformistas e continuístas. Tentou analisar o mundo da direita para a esquerda e via algo muito parecido. Apesar disso, permaneceu entrincheirado na sua vaga esquerda artística, humanista e solidária. A nova mania de ver o mundo sob outra ordem, deixou-o viciado em palíndromos, tendo composto alguns muito interessantes, tais como “Ame o Poema”, “Ata-nos, sonata” e “Metáfora, farofa tem”.

Como sói acontecer, o mundo seguiu dando seus giros e Adrem fez-se um respeitado artista gráfico trabalhando em uma agência de publicidade paulista. Casou-se com uma ex-militante comunista, dona de um sobrenome cheio de flores. Tiveram dois filhos. Então, um cristão, amigo seu, tomou a si a missão de convertê-lo. Como consequência, ocorreu algo muito natural: mesmo sendo Adrem um ocupado e bem pago artista gráfico, mesmo e apesar disso, ele passou a reservar parte de seu tempo para trabalhar voluntariamente junto a uma associação de caridade que, como sói acontecer, repito, era ligada a uma instituição religiosa. Dava aulas de matemática para alunos de cursos profissionalizantes. Aquela atividade sem objetivos de lucro tornou-se uma necessidade para ele. Tinha, deste modo, contatos semanais com pessoas que achavam incompreensível que alguém tão ético, humano e solidário não fosse cristão, e que falavam a palavra “ateu” como se pronunciassem uma palavra feia, daquelas que as crianças evitam usar perto dos pais. Ele achava engraçado e não pensava muito no assunto. Um dia, bebendo com o amigo crente após as aulas, este brincou que lhe pediria uma oração no próximo almoço com os padres da escola. Adrem imediatamente ergueu-se e disse:

— Ó Pai, que estás nos céus, colocado lá pela fraqueza, medo, culpa e imaginação de alguns, feito à nossa imagem e portador de nossos defeitos, olha por nós, pobres pecadores, que não usamos teu nome para nada e que vivemos pelo mundo como cães sem dono. Permite que os cães com dono não nos mordam – aqui olhou para o amigo — e que as boas intenções e desespero enviados diariamente por eles a ti, retornem na forma de grandes chuvas de bênçãos e não como tens feito ultimamente. Que a beleza da tua figura, formada em cada poro e célula por nosso afeto a nós mesmos e nosso horror ao vazio, possa espalhar-se pelo mundo e transformar-se em vales de onde jorrarão o leite e o mel necessários a nutrir teu povo…

Ele seguiu dando aulas e ouvindo Chico Buarque; o amigo desistiu da conversão. Comentou sobre isso com sua mulher que, sendo uma intelectual muito culta politicamente, citou-lhe um monte de autores, com a finalidade de explicar-lhe o que estava acontecendo com o mundo — coisas que ouvia desatento.

Numa bela manhã de novembro, ela pediu a separação. Deprimido, Adrem despojou-se de todo seu pequeno patrimônio. Surpreendeu-se com a voracidade que a ex-comunista revelou ao procurar assenhorar-se de tudo o que fosse possível, no que ele cedeu. Com a mesma sem-cerimônia com que aplicava botox, ela procurava cristalizar para si tudo o que pudesse passar perto de ter algum valor monetário. Em contrapartida, o desinteresse de Adrem sobre seu futuro era completo. Após a separação, ela passou a provocar contatos mais longos somente se quisesse examinar mais de perto a possibilidade de ele pagar um pouco mais para ela e os filhos.

O amigo cristão procurava não intervir, apenas contava-lhe histórias sobre São Francisco de Assis… Sem dúvida, o mundo ficara ainda mais complexo. Havia cristãos amigos procurando salvar-lhe a alma, falando-lhe em conversão e emocionando-o com histórias de despojamento e perdão de São Francisco de Assis – mesmo que Adrem dissesse que não havia perdão nenhum envolvido em sua separação; havia ex-comunistas que podiam ministrar cursos de como ser pragmático, focado e açambarcante num cesto de ofídios; havia um governo de esquerda em quase tudo semelhante ao anterior e havia alguém que girava a uma velocidade inferior à do mundo e que permanecia quieto, observando tudo passivamente, não aderindo a nada e com um pouco de medo.

Nessa época, Adrem voltou a Parati para ver Neila. Passaria o fim de semana com o pai. O sotaque e a cara de estrangeiro ficavam bem a um dono de pousada; o inadequado era o empréstimo que seu pai tirara para tornar seu antigo casarão suficientemente confortável aos turistas. Afinal, nem todo mundo odeia TV, nem todo mundo gosta de austeridade e sujeira, muito menos o banco, que prefere ver seus clientes devolverem seus empréstimos de forma copiosa a cada mês. Adrem apenas conseguiu retornar a São Paulo na quarta-feira. Conversou com o banco, refinanciou os débitos, pagou alguma coisa. Um mês depois, voltou para conferir se tudo estava direito; estava; mais duas semanas e ele regressou interferindo na forma de atendimento da pousada, na organização de tudo, o diabo; cada vez vinha mais frequentemente a Parati. O pai concordava com tudo, era como se estivesse passando toda a responsabilidade ao filho, desde a compra das coisas para o café da manhã dos hóspedes até as questões financeiras.

E estava. Um dia, Adrem veio de mudança. Pai e filho seguiram como sempre conversando muito, agora fazendo planos de abrir um alambique. O nome da cachaça deveria derivar do nome do filho, imagina se não.

Obs. 1: Este é um conto antigo e algo raivoso que fora publicado no blog anterior.
Obs. 2: Os palíndromos são de autoria de César Miranda.
Obs. 3: Vi que tem muitos comentários e que já tinha sido publicado no OPS. Por que então estava como “Pending Review”? Sei lá.

25 comments / Add your comment below

  1. mas esse talvez seja um grande tema para os próximos anos, Milton. quantas milhares de Atup’s andarão por aí? a perda, o vazio, a ausência de perspectiva e as doentias pós-modernidades talvez inda nos matem.

  2. Será? Eu concordo, mas temos acho que a história deste Atup deveria ser um pouco mais longa, talvez.

    Ela me parece uma narrativa em off, com imagens velozes, sei lá.

  3. Milton, não sou filósofo, sociólogo ou filólogo. Sou apenas um poeta-engenheiro tentando vencer ou, ao menos, compreender, minhas limitações. Conseguir inventar um texto em prosa que seja, principalmente, ontológico é, na minha opinião, praticamente impossível. Talvez a poesia consiga. A música e a dança conseguem. Um bailarino ao saltar é a humanidade saltando. Um acorde de Beethoven é a humanidade sentindo. Um verso de Pessoa é a humanidade pensando-sentindo. Não sei se estou sendo claro. É difícil ser claro nestas coisas!
    Sabe onde o seu conto é ontológico, Milton? No título! Pois nas entrelinhas está escrito:
    “Puta merda é o mundo da razão” e tal afirmação é ontológica pois atrela a si a grande dúvida humana: “De onde viemos? Quem somos? Para onde iremos? Tais questões não poderão ser respondidas somente com a razão, pois esta costuma trair-nos por estar essencialmente repleta das nossas crenças diante de um determinado fenômeno na natureza. Penso que o método científico nos aproximou das três respostas fundamentais. Porém, somente, isso: nos aproximou delas. Criei, até onde sei ou até onde lembro, um novo verbo para a língua portuguesa: Pensar-Sentir, que não é somente pensar nem somente sentir; mas um pensar-sentir ontológico qual aquele salto do bailarino ou do acorde de Beethoven. Com esse “espírito” (não encontro, no momento, outra palavra) de pensar-sentir é que devem ser ensinadas, em futuro breve, a matemática, a física, a química, a gramática e também este seu conto para as novas crianças. Por que, não!? Neste contexto, a expressão “a matemática fala” não será uma metáfora poética mas, sim, uma realidade palpável e humana.

    Outra coisa. Você diz que seu texto é mais sociológico do que ontológico. E daí ? Os textos de Bertold Brescht não são assim? O importante, Milton, é que seu texto é artístico pois contém, o que o Aurélio define como uma das faces da arte, a “atividade que supõe a criação de sensações ou de estados de espírito de caráter estético, carregados de vivência pessoal e profunda!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!”.

    Um querido abraço, Milton.

  4. Ramiro e amigos. Eu agradeço – e como – os comentários.

    Acho que minha restrição ao Adrem é que não há diálogos e há um final conclusivo. São coisas de que não gosto, mas veja bem: eu nunca o alterei e talvez isso seja um sinal de que apenas discordo pde mentirinha, sei lá.

  5. Milton gostei muito do conto
    acho como o Ramiro que é bem atual, com creteza muitos Adrem da minha geração estão por aí, mas fiquei pensando se o
    Adem não está muito numa posição de vítima?

  6. Milton,
    vamos chama-lo de um conto existencialista?
    Eu penso que o Adrem deparou-se com a falta de religião, em qualquer um de seus matizes (metafísica, ideologia, etc.), e ficou “condenado à liberdade” de escolher. Vamos lá. é muito mais fácil ser isto ou aquilo.

    Branco

  7. Querido Milton, não vou participar do debate. Não vou fazer análises. Não sei se é sociológico ou filosófico ou. É como música e como vinho para mim. Só sei gostar ou não. E sou tosca, tipo porco para pão de ló (tenho certeza que eles gostam, preferem!).
    Quero dizer gostei e muito. E também torço pelo livro e pela abertura de suas gavetas. Ponto para o humor, sempre. Descontos para uma velada misoginia, sempre. Feminista, sempre atenta – pero sin perder o senso de humor, jamais. Desculpe, esta continua sendo eu!
    Tome os beijos que não dei no sábado. Em dobro!
    E ramiro: adorei aqueles beijos seus, bem diferentes desses de caixas de comentários – poéticos como devem ser em alguma sala de estar! Este texto do Milton foi o seu preferido. Pois aquele foi dos seus poemas o meu preferido. mas vc sabe como são os porcos e os pães de ló…
    beixos de caixa de comentários,
    Flávia
    bjs, f

  8. Socorram-me, subi no onibus em Marrocos, palindrei comigo mesmo, plagiando alguém que não sei quem. Gostei do caso do sr. Atup, talvez um pouco condoído por sua quase perplexidade. O mundo dá muitas voltas, ou gira, enquanto a Lusitana roda. Mas perder as utopias pode ser igual a concretizar-se, isto é, empedrar-se. E isso, quase que tenho certeza, o sr. Notlim, quer dizer, Adrem, não vai. Nem foi.

  9. Às vezes é muito bom andar de blog em blog. Dos outros por que passei hoje, vim parar aqui. Parei e gostei. Gostei do Atup e o fato de vermos essa história por aí em várias versões vivas não diminui o valor de quem a capta e coloca no papel com ritmo e beleza. Boa prosa, boa história. Voltarei mais vezes para ver o que acontece.

  10. Eu lembro de tê-lo lido lá atás. Mas por algum motivo, dessa vez, ele pegou na veia. Milton, dizer que você escreve muito bem já virou lugar comum. Você faz mais do que isso. Você respeita a curiosidade do leitor levando-o devagarinho, lentamente, quase como um artesão, dentro do plot de uma história absloutamente fantástica. Um super abraço

  11. Puta merda, caralho, puta que o pariu, agora fodeu tudo. Não, não é raiva, é lamento do olhar crítico sobre o pragmatismo que nos acompan ha por toda a vida, por melhores que sejam nossas inbtenções juvenis, projetos da maturidade, cansaço da velhice. Não sou daqueles que olham para trás e reclamam que lá sim, nos bons tempos da ditadura, era possível reconhecer os bandidos e os mocinhos, que lá sim, na época da censura, a música brasileira era criativa e original, que lá sim, nossos comunistas eram melhores que os outros, mais humanos, simpáticos e visionários, feito o Apolônio. Nos descobrimos agora, medíocres em um mundo de medíocres, de pouca sapiência mas olhos atentos às tetas públicas, nas ruas e nas instituições. Classe média é uma merda mesmo, ouvi ontem mesmo no filme “E se nada mais der certo”. A platéia do Unibancool riu. Ah, bons tempos aqueles dos anos de chumbo!; hoje, nós nem disfarçamos mais!

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