Ganhei este livro do casal mais legal do mundo: Nikelen Witter e Luiz Augusto Farinatti. A capa não é a que está ao lado, é uma bem novinha, daquelas bem desinteressantes com as quais costumam ser agraciados os Prêmios Nobel. Os oito contos do volume — A sesta de terça-feira, Um dia desses, Nesta cidade não existem ladrões, A prodigiosa tarde de Baltazar, A viúva de Montiel, Um dia depois do sábado, Rosas artificiais e Os funerais de Mamãe Grande — passam-se em ou próximas a Macondo, a habitual e visitadíssima cidade ficcional do autor.
Apesar de ser um admirador do colombiano, ainda não tinha lido a Mamãe e o fiz pelo Método Milton Ribeiro de leitura, isto é, em ônibus, salas de espera, banheiros e refeições. Sei lá, estou passando por um período severamente musical e minha cabeça anda muito sinfônica, não obstante estar ouvindo agora as Triosonatas para órgão solo de J. S. Bach. E o órgão não é quase sinfônico? Bem, não há muito espaço para muita coisa. Mas voltemos ao que interessa.
Há belos contos aqui. Minha preferência total vai para o que título ao livrinho. A história da soberana de Macondo é contada com enorme talento e ironia. Tudo, mas tudo serve para empurrar a vertiginosa narrativa que mais não faz do que demonstrar a estrutura de um poder feudal nada afastado de algumas regiões latino-americanas.
Os seus bens, que datavam da época da conquista, eram incalculáveis. Abarcavam cinco municípios, 352 famílias e também a riqueza do subsolo, as águas territoriais, as cores da bandeira, a soberania nacional, os partidos tradicionais, os direitos do homem, as liberdades dos cidadãos, o primeiro magistrado, a segunda instância, o terceiro debate, as cartas de recomendação… Demorou três horas a enumeração dos bens terrenos da Mamãe Grande.
Eu me apaixonei, assim como também pelo estupendo e minimalista conto de abertura A sesta de terça-feira. Já Nesta cidade não existem ladrões, A prodigiosa tarde de Baltazar, A viúva de Montiel ficam um degrau abaixo talvez apenas pelo gosto pessoal deste leitor um tanto desorganizado.
Pássaros que caem mortos, viúvas ressentidas contra quem não entende os méritos do marido morto, ladrões que não têm o que fazer com o produto roubado, o dentista que arranca dentes de poderosos, a belíssima gaiola de Baltazar, Cem Anos de Solidão, La Mala Hora, tudo isso serviu para gravar Macondo na memória de milhões de leitores e para que alguns habitantes de Aracataca, cidade natal do autor, tentassem mudar o nome da cidade. Gente sem graça, gente sem graça. Macondo é uma catetral imaginária. OK, também é uma cidade em Angola, mas isso é casual. A Macondo latino-americana é ficcional e assim deve permanecer em sua glória.
Ok, fiquei corada hehe (o Guto dirá algo mais másculo que isso), mas acredite que temos a mesma impressão de você e da Claudia.
Também fico feliz de você ter lido o livro e gostado, como disse o Guto, dar livros de presente ao Milton Ribeiro é uma responsabilidade assustadora.
Quanto ao conto favorito, eu concordo com você e A sesta de sexta-feira. O Guto também gosta muito deste, mas é irremediavelmente apaixonado pela Viúva Montiel (deixarei que ele comente).
Contudo, confesso meu especial amor pelo dentista de “Um dia desses”. Sim, sou uma pessoa normalmente pacífica, raramente revanchista, mas no caso do dentista… corre uma grande identificação, sabe? Ao fim do conto eu estou com ele, sou ele, é em minha mão que está o boticão e… consigo pensar em tantos, ou apenas alguns, que gostaria de ter naquela cadeira e dizer: vai ter de ser sem anestesia…
Uma maldade, eu sei, mas pequena e encerrada na literatura. Não vou me punir por isso, mas continuo a carregar o dentista comigo. De vez em quando, volto a relê-lo, apenas pela ventura…
Um grande abraço
Não vou dizer nada mais másculo não. Fiquei corado também. E exibido!
Ó só:
http://www.guardian.co.uk/books/2011/jan/24/jorge-luis-borges-grave
Esse é um verdadeiro homem de esquerda, Milton.
Abraço.
Não sei se foi benéfico ou não, mas li quase todo o GGM já quando eu era adolescente. Fui apresentado a ele pelo Vladimir Safatle, que na época tínhamos 16 anos e éramos dois porras locas pelas noites de Goiânia (escrevi um post sobre isso, chamado Patagônia, em meu blog). Passei os próximos dez anos relendo-o compulsivamente, de forma que era sim uma doença. Identifico até hoje os arremedos da frase garciamarqueana na minha maneira de escrever. O Cem Anos e O Amor Nos Tempos Do Cólera li dez vezes cada, sem exageros _ porque também escrevi um longo e relutante trabalho de quase 200 páginas sobre o cara.
Então, como desejava a salvação e a originalidade mínima para meus papéis pessoais, fiz a única coisa sensata numa ocasião destas (veja só, o Farinati vai saber que essa última frase é puro García Márquez, em suas estratégias de estilo que ficaram redundantes em suas óbras tardias): vendi toda minha coleção a um sebo. Fiquei longos anos em sossego, em que pude percorrer sem culpa por outras infidelidades literárias. Até que ele lançou a magnífica biografia, e a febre retornou, mas amaneirada, menos possessiva. Já não o odiava por ter destrinchado todos os seus visíveis segredos.
Ainda não recomprei o Funerais de Mamãe Grande. Gostei à beça do conto do dentista, e senti a mesma catarse que a Nikelen. Só que não me arrependo. Para onde mandar a conta? Tanto faz. O GGM foi raivoso na juventude. Negou a mudar o título de seu segundo romance, fixado na ideia de que chamaria “Esse Povinho de Merda”, mas foi convencido por um padre(!), dai deixou que lhe dessem o nome insosso de “O Veneno da Madrugada”.
O conto do título é exultante, sarcástico, prefigurador da multidão de personagens de Cem Anos. Esse, junto a Cândida Erêndira, é seu melhor volume de contos. Os outros dois, Olhos de Cão Azul, e Doze Contos Peregrinos, sofrem pelos excessos opostos a que são vítimas: o primeiro muito incipientes, o segundo, cansados demais da personalidade opressiva do GGM nobel e velho.
Por falar em padres, a biografia de GGM tem outras cenas envolvendo esse elemento dissuasivo na vida de um ateu comunista. O casamento de GGM foi celebrado por ninguém menos que o padre revolucionário Camilo Torres, que fez com que o colombiano se ajoelhasse e se submetesse às outras aeróbicas do dogma. Anos depois, Camilo deixou a batina e se tornou um guerrilheiro colombiano, sendo assassinado em batalha. Alguns estudiosos dizem que foi subtraído de sua fama de libertário pelo vulto gigante do Che.
Milton, desculpe-me!
Ultimamente, ando meio ladrão…
ALUMIAR
by Ramiro Conceição
É… as coisas raras
acontecem dentro
dum ônibus, de uma
sala de espera ou no
meio de uma refeição.
Foi assim que te amei,
no alumiar… da ilusão.
Li Os Funerais da Mamãe Grande na década de 70. Minha edição tem esta capa que está aí acima.Quando vi este ‘post’, de imediato me veio à memória em dos trechos que mais me surpreenderam na vida. Fui correndo procurar pelo meu livro, e aqui vai o trecho:
“Certa ocasião, as filhas lhe falaram dos açougues de Paris. Diziam-lhe que matavam uns porcos rosados e os dependuravam inteiros na porta, enfeitados com coroas e grinaldas de flores. No final, uma letra diferente da de suas filhas tinha acrescentado: ‘ Imagine que o cravo maior e mais bonito é enfiado no ** do porco’. ”
Claro que a Viúva Montiel sorriu pela primeira vez depois de 2 anos.Reli e achei a mesma graça de quando era adolescente.
Com efeito, eu dei uma gargalhada neste preciso ponto.
:¬)))
“Os Funerais da Mamãe Grande” foi o primeiro livro de GGM que li. Foi através dele que entrei no universo de um autor que causou em mim o mesmo efeito descrito pelo Charlles no comentário acima. A diferença é que minha coleção de GGM continua aqui. Minhas dificuldades para me livrar do colombiano parecem ainda maiores que a do Charlles, uma vez que não sou dado a soluções drásticas. Ainda assim, não o leio há alguns anos e o que vou comentar aqui é de memória.
Concordo, de novo, com o Charlles na avaliação dos livros de contos do GGM. “Os Funerais…” e Erêndira são o ponto alto. Este último é um livro mais solto, onde o autor vai mais fundo no realismo fantástico, com destaque para a novela-título e para “O Afogado Mais Bonito do Mundo”, um dos contos mais bem escritos que já li, construído sobre um argumento quase inexistente.
Já “Os Funeirais…” é uma coletânea que prefigura “O Veneno da Madrugada” e “Cem Anos de Solidão” e, por vezes, desenvolve temas que serão apenas referidos rapidamente nos livros mais alentados. A intertextualidade entre o livro de contos e aqueles dois romances é parte da estratégia de GGM para construir seu universo ficcional. O colombiano busca dar ao leitor a ideia de que, embora revele apenas alguns fragmentos, há um todo interligado, um mundo completo e organizado do qual ele só nos permite vislumbres, o que serve para atiçar mais e mais a curiosidade do leitor.
Assim, entre outros contos desse livro, “A sesta de terça-feira” está ligado a “Cem Anos de Solidão” (CAS). Passa-se em Macondo e, em CAS, saberemos que o ladrão referido no conto foi morto quando tentava entrar na casa da viúva Rebeca (personagem importante de CAS), provavelmente assassinado por ela. Essa mesma viúva reaparece no conto “Um dia depois de sábado”, para mim um dos mais fracos da coletânea, embora nos apresente o padre Antônio Isabel del Santíssimo Sacramento del Altar Castañeda y Montero, que, só pelo nome, já merece menção.
Por outro lado, entre outros, o conto-título e “A viúva Montiel” estão ligados a “O Veneno da Madrugada” e nos dão uma visão mais lenta e mais “de perto” de passagens que se dão muito rapidamente naquele livro. Embora, no conto-título, GGM diga que a Mamãe Grande reside em Macondo, ele mudou de ideia ao escrever “O Veneno da Madrugada” e disse ter percebido que aquela era outra cidade.
Em conjunto, o livro inteiro é dedicado às relações de poder e aos malabarismos humanos para viver em uma sociedade onde esse poder é avassalador, antigo e parece eterno, como o calor de Macondo e como este que sinto em Santa Maria no exato momento em que escrevo.
O conto-título é uma prefiguração de “O Outono do Patriarca”, não apenas na temática e na imagem, mas inclusive no estilo barroco, transbordante, sem jamais perder o “pulso” da narrativa. A Mamãe Grande é apresentada como um misto de nutriz, de mãe-terra e de dona de bordel, de onde emana toda a fecundidade, mas também toda a autoridade. Neste caso, ela não apenas desempenha todos os atributos míticos do feminino, mas também usurpa os dons do controle e da severidade que, no universo de GGM, quase sempre pertence às mulheres. Elas é que fazem o mundo seguir girando. Os homens, normalmente, são um tanto desvairados.
É de poder que se trata em “Um dia desses”, quando o Sr. Escovar, dentista sem título e bom madrugador, fez com que o tenente, sentado em sua cadeira, com um lado do rosto inchado como um melão e sem barbear, nos pagasse vinte mortos. São essas regras imemoriais que encontram o desafio heroico da mulher de ”A sesta de terça-feira”. O leitor é vai junto com essa senhora com roupas pobres e ar severo, acompanhada de uma menina que leva nos braços flores envolvidas em um jornal. Ela entra em Macondo na hora da sesta, decidida a enfrentar a cidade para colocar flores no túmulo onde a cidade enterrou seu filho, um ladrão que tentara roubar a casa da viúva Rebeca. Essa Antígona caribenha me acompanha até hoje.
Achei excelente tua máscula intervenção…
Uma historinha engraçada: logo que cheguei na cidade onde trabalho descobri, perto da DP, uma loja de presentes que também vende livros. A maior parte dos livros são esses best-sellers de auto-ajuda, mas, de vez em quando, aparece algum livro mais sério, que esteja sendo muito comentado na mídia. Na época, “Memórias de Minhas Putas Tristes” estava em alta nas listas de mais vendidos. Eu havia lido algumas resenhas e estava interessado em ler o livro. Encontrei-o na tal loja e peguei para dar uma olhada. Estava folhando o livro, quando vi que a dona da loja e a atendente estavam me olhando com aquela cara de quem está se divertindo. Acredito que elas estavam pensando que eu pegara o livro achando que era pornografia.
Macondo deve ser preservada em nossa memória como um reduto de loucos e sonhadores.
Decrete-se que nenhuma cidade atino-americana assim se denominará, para que possamos ali nos refugiar, quando não houver fuga desta realidade assombrosa na qual estamos mergulhados.
Ao Gabriel, minha gratidão por tê-la construído.