Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami

Escrever poucas linhas sobre Cópia Fiel é muito mais complicado do que dedicar-lhe uma tese. Posso começar tergiversando, apesar de dizer uma verdade: é um filme que provoca reações apaixonadas, para o positivo e o negativo. Um sujeito, certamente um menino, crítico de cinema na internet, disse que o filme era chato porque as discussões de relacionamento são chatas. Sim, sei, ele deverá ter futuros. É uma opinião das mais primárias, mas demonstra o cerne de certo ódio ao filme. Porém, dizer que este belíssimo Cópia Fiel, de personagens que mudam de cena para cena, de imagens deslumbranres e atuações impecáveis, de roteiro moderno e até virtuosístico, dizer que o filme é apenas uma DR é uma redução muito emburrecedora.

Com pouquíssimos spoilers, certo? Não pretendo estragar o prazer de ninguém: durante uma visita à Toscana para lançar seu novo livro sobre história da arte e  a importância das cópias nas artes plásticas, o ensaísta inglês James (William Shimmel) é acompanhado por Elle (Juliette Binoche), uma franco-italiana proprietária de galeria de arte. Ela o leva em um passeio de carro para conhecer a região e o dois começam uma discussão — entre o irônico e o azedo — sobre os conceitos do livro. Sem que pareça crível, tudo começa a mudar depois da antológica cena com a dona de um café. Ela, cheia de experiência, admira e elogia a dupla com alguma sabedoria de vida. Então, os dois passam a se comportar como um experiente, velho e cansado casal, transformação que já vinha ocorrendo discretamente e que se completa no café. Aquilo que vimos antes era uma cópia? Ou aqui a temos? A má relação entre Elle e seu filho não é outra cópia fiel desta que nos será apresentada? Quantas cópias, quantos vezes repetimos nossos padrões de relacionamento? E o que tem isto a ver com o filtro interior através do qual analisamos um quadro ou uma realidade? A cena do café, onde até o idioma serve para separar, é central no roteiro de Kiarostami.

Neste filme desalentador, muitas dúvidas universais e humanas nos ocorrem. Como obra cinematográfica, o que me arrebata é o fato de que Kiarostami toca fundo na humanidade dos personagens e dos casais sem a menor afetação. Evitando inteiramente uma fácil abordagem pernóstica e “inteligente”, o iraniano nos leva por um tema universal de forma discreta e firme, mostrando-nos as camadas de realidade que há, umas sob as outras como um quadro repintado ou retocado. Binoche cumpre novamente uma atuação perfeita e os prêmios de Cannes e outros de melhor atriz por este filme são merecidos. A surpresa é a bela atuação de seu partner, William Shimell, que não é bem um ator e sim um conhecido barítono que, nos intervalos das fimagens com Binoche, viajava para contracenar com Anna Netrebko em Cosi fan tutte, de Mozart, já na pele do solteirão Don Alfonso. Ah, se a minha inveja fosse mortal, esse Shimell cairia morto agora.

Serviço: vi Cópia Fiel no fim-de-semana, em pré-estreia no Guion, claro.

~o~

Então, resumindo minha inveja:

Este William Shimell,

contracenava com Juliette Binoche

Juliette Binoche em Cópia Fiel

e, nos intervalos, cantava com Anna Netrebko.

Na boa, vai tomar no cu, Shimell.

21 comments / Add your comment below

  1. Droga, não poderei comentar este filme, que ainda não vi. Resta dizer que a cantora é melhor que a atriz, e que nem todo homem que gosta de ópera é viado, mas que todo viado que eu conheço gosta de ópera.

    1. Certa vez, disse numa festa LOTADA de gente de um grupo de óperas que todos os homens apaixonados por ópera eram gays. Em resposta, um (1) deles respondeu:

      — Peraí Milton, eu não sou. Aconteceu alguma coisa errada comigo!

      Todos os outros riram.

        1. De Mozart, por exemplo, Don Giovanni é coisa de macho, mas A Flauta Encantada é coisa de boiola. Verdi tem La Traviatta como 100% gay. Rossini e Massenet conheço pouco, mas desconfio que tá mais pro segundo.

  2. Talvez tenhamos estado na mesma lotada sessão no Guion. Eu não sou mais menino, mas também não iniciei meu capítulos de DR ainda, de modo que meu julgamento do filme é mais em comparação com o próprio Kiarostami do que com o tema deste Cópia Fiel. Achei o filme frustrante, previsível (com exceção daquela, concordamos, antológica cena com a matrona italiana, onde há a virada; e também o final, que é belo e silencioso, como são os filmes de Kiarostami). Gosto da idéia do cinema de Kiarostami, que em Cópia Fiel aparece inteira, mas acho que a execução ficou abaixo da média desta vez. E até concordo com o menino, pois as discussões todas (inclusive sobre arte) são rebatidos clichês – e realmente não precisava ser assim, principalmente em se tratando de Kiarostami. E pra fechar, teu comentário não revelou nada sobre algum valor do filme que eu não tivesse captado, portanto reforça minha impressão de que o filme não tem mesmo muito a oferecer. Puxa, como sou chato, eu devia ter ido no santander ver Terra dá Terra come (ou coisa assim), que dizem ser maravilhoso.

    1. Lucas, gostei muito do teu blog. Cadastrei-o no meu Google Reader para acompanhar. Não o conhecia.

      Porém, sobre o último Kiarostami, não há como concordarmos. Admito que certos diálogos — como aqueles sobre a percepção da arte — podem ser encontrados em qualquer cartilha ou na Coleção Primeiros Passos. Mas não apresentado daquela forma, com aquela força. E aí se encontra nossa discordância. Eu achei a execução, a forma, brilhantes. Às vezes, ouvimos a frase mais imbecil e óbvia, mas a forma é tal forma envolvente ou sedutora que ficamos convencidos de que ouvimos palavras e verdades estarrecedoras.

      O filme me atingiu, a ti não. Fazer o quê? Apesar disso, tua avaliação, apesar de curta, foi bem mais longe do que a daquele menino.

      Grande abraço.

      1. Mas bah, que momento! entabulando uma discordância com Milton Ribeiro e sendo elogiado pelo meu blog infante – justo Milton Ribeiro, com quem eu sempre concordo e cujo blog vem no topo da lista de favoritos.
        Grande abraço! (mas não pense que cedo, Cópia Fiel é fraco)

  3. se é frescura burguesa esta discussão sobre o propósito da arte pouco importa. o que realmente importa é a cena desta maravilha tirando suas sandálias na toscana.

      1. Ninguém mais poderia fazer aquilo com tanta simplicidade, elegância e beleza. Por falar em elegância, tem uma cena em que ela simplesmente atravessa uma ruela, montada em saltos altos e pisando em pedras irregulares, que é de babar.

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