Anotações para o jogo Orgulho e Preconceito x Middlemarch

A estreia do Sport Club Literatura do StudioClio foi, acredito, um sucesso. Estavam lá uns 50 malucos, talvez mais, divertindo-se com pessoas que falavam sobre livros. Foi o cúmulo da civilização, com muito bom humor e as Corujas brilhando pelo auditório de caras sorridentes. O primeiro jogo foi duríssimo e acabou com 2666 (Roberto Bolaño) 1 x 0 Liberdade (Jonathan Franzen), sob a arbitagem de Antônio Xerxenesky e Carlos André Moreira. No jogo final, o placar que atrubuí a Orgulho e Preconceito x Middlemarch prevaleceu, apesar da tentativa de Joana Bosak de anular um gol de Jane Austen, escaramuça abortada pela plateia… Eu e Joana não nos conhecíamos, mas acho que nossa palestra conjunta acabou funcionando. Ela muito é bonita e não é mole — tem formação e mestrado em história e doutorado em literatura comparada pela UFRGS, onde já deu aulas nas duas áreas. Tinha tudo para acabar comigo, mas teve pena. Abaixo, minhas anotações para o evento.

Os árbitros de Middlemarch x Orgulho e Preconceito: eu e Joana Bosak

Boa noite.

A missão impossível que me pedem é a de realizar uma partida de futebol entre dois dos maiores romances da grande literatura inglesa – Middlemarch e Orgulho e Preconceito. Comparar dois livros que amo é, guardadas as proporções, fazer uma Escolha de Sofia, decidindo qual de meus filhos – tenho dois aos quais amo incondicionalmente – deve ser encaminhado para a câmara de gás. Então, para afastar os critérios meramente afetivos, criei regras próprias. Em primeiro lugar, elegi cinco itens que seriam caros à literatura que ambas as autoras praticam. Em segundo lugar, procurei deixar longe de mim a afirmativa do mestre E. M. Forster, outro britânico, no seu ensaio Aspectos do Romance: “O teste final de um romance será a nossa afeição por ele, como é o teste de nossos amigos e de qualquer outra coisa que não possamos definir”. Também desconsiderei o fato de que, para meu gosto, alguns quesitos têm importância superior a outros. Os quesitos:

0. (Zero, porque aqui as autoras não marcam gols). Notícia biográfica das equipes.
1. Linguagem, foco narrativo
2. Construção de conflitos e estrutura do romance
3. Construção de personagens
4. Relevância sociológica
5. Análise psicológica (relevância ontológica)

O número de quesitos que marcam gols é ímpar por um motivo muito simples: queria evitar o empate.

Começo então por uma notícia biográfica de ambas:

Jane Austen nasceu em 1775 e morreu em 1817. Viveu, portanto, 41 anos. Orgulho e Preconceito foi publicado em pela primeira vez em 1813, quando autora tinha 38 anos. É seu romance mais conhecido e popular. Austen escreveu apenas outros cinco, todos excelentes: Razão e Sensibilidade (1811), Mansfield Park (1814), Emma (1815) e os póstumos A Abadia de Northanger (1818) e Persuasão (1818). Austen nunca casou, sempre morou com os pais. Escrevia seus romances em seu quarto e tinha pudor de quando alguém abria a porta — escondendo imediatamente os cadernos. A vida de Jane Austen é um deserto de grandes acontecimentos. O fato mais próximo a um caso amoroso, foi um breve amor juvenil finalizado por problemas financeiros do pretendente.

Em comparação com a vida de Jane, a existência de George Eliot foi espetacular. Ela nasceu dois anos após a morte de Austen e viveu 20 anos mais, chegando aos 61. Middlemarch foi publicado quando ela tinha 53. George, que na verdade chamava-se Mary Ann Evans, apaixonou-se e fugiu com um homem casado, George Henry Lewes, com o qual viveu por quase vinte e cinco anos, até a morte do amante. Sete meses antes de falecer, George Eliot casou-se com seu primeiro biógrafo, John Walter Cross, vinte anos mais moço. Sua vida parece a de uma mulher moderna. Se Austen escreveu seis romances, Eliot produziu apenas um a mais.

Equivoca-se quem pensar que elas tinham pouco em comum. O jogo, apesar de reunir dois estilos muito pessoais e únicos, é duríssimo.

Então comecemos a peleja pela linguagem e foco narrativo:

Quem leu Orgulho e Preconceito ou outros de seus livros, sabe que Austen é leve e enganadora, a gente pensa que está numa tranquila mesa de chá quando, com a maior graça, ela nos apresenta abismos que, pensando bem, já estavam ali, mas dos quais não pressentíamos a profundidade. Austen não faz comédia, mas nos obriga a gargalhadas; expõe dramas, mas não é trágica; é grave, porém leve; é clássica, apesar de ousada. O romance não deixa transparecer claramente seu esquema por trás de diálogos absolutamente fluentes e de uma narradora de tom zombeteiro. Num espaço rural limitado, as pessoas fazem visitas, vão à bailes, tomam chá, iludem umas às outras, armam situações e divagam sobre suas vidas e planos. O refinado humor da escritora abrange tudo. É o próprio time do Barcelona. Troca passes em diálogos ininterruptos, seduz a todos, inclusive aos adversários, para depois vencê-los.

Milton Ribeiro, dizem

Enquanto isso George Eliot aposta numa vitória baseada em rigoroso esquema defensivo. Ela tece com obsessiva minúcia os panos de fundo de cada cena e, nesta particularidade, é menos moderna que Austen. Podemos dizer que tem alma de socióloga, o que poderá render-lhe gols mais à frente. É importante dizer que Orgulho e Preconceito tem aproximadamente 300 páginas, enquanto que Middlemarch tem quase 1000. As torcidas presentes hoje ao StudioClio dirão que isso não tem a menor importância, mas este árbitro discorda: tem tudo a ver pelo simples fato de que George Eliot enrola e joga no erro do adversário. Quando menos se espera, a tragédia econômica de Fred Vincy, por exemplo, fica-nos clara com tal riqueza de detalhes financeiros e psicológicos que adquirimos a certeza de que não lhe resta saída, se não houvesse uma boa moça para o salvar.
Porém, como estamos aqui para julgar e não para ficar na arquibancada comendo picolés ou bebendo cerveja sem álcool – pois o Estatuto do Torcedor criminosamente não permite o consumo de álcool nos estádios – decidimos que a linguagem de Jane Austen acaba de fazer um belo gol na impecável defesa de George Eliot, que não contava com uma falha individual. Pois na página 162, a autora, sim, ela mesmo, começa inesperadamente a falar na primeira pessoa do singular, deitando teses e atrapalhando a narrativa. Em contraposição, temos em Austen trechos de virtuosismo quase inalcançável como a cena em que Lydia fala besteiras sem parar, fazendo a atenção do leitor ir embora, para depois descobrimos confortavelmente que fomos acompanhados na fuga por Elizabeth, que também não faz a menor ideia do que Lydia falara. Virginia Woolf: escreveu: “Ali estava uma mulher, por volta de 1800, escrevendo sem ódio, sem amargura, sem medo, sem protestos, sem pregação. Orgulho e Preconceito 1 x 0 Middemarch.

Construção de Conflitos: Como já disse, Jane Austen, de modo hábil, cria conflitos que logo tornam-se abismos. O problema onde Elizabeth Bennet e Fitzwilliam Darcy equilibram-se até o final é muito rico. A forma como Austen coloca ambos em posição de vencer orgulho e preconceito através da rebeldia é digno de várias avalanches da torcida – calma, sou colorado. Também a posição do sarcástico Mr. Bennet como catalisador de conflitos é brilhante e Mrs. Bennet… Bem, Mrs. Bennet nem é catalisadora. Mrs. Bennet é dinamite pura. Podemos considerá-la uma chata, mas apelo à opinião de meu amigo historiador e escritor Luís Augusto Farinatti para defender sua posição no romance. Ela tem uma missão fundamental. Afinal, num regime sucessório onde as mulheres não herdam, é imprescindível ter um filho varão. É ele que vai herdar a propriedade, ajudar o pai a organizar os rendimentos, dotar uma ou mais irmãs para que possam casar e acolher as irremediavelmente rejeitadas. Ou seja, não ter um filho homem era uma catástrofe (imaginem que Mrs. Bennet, por única e exclusiva culpa sua, como se pensava na época, tinha cinco filhas). Então, “colocar” as filhas era uma obsessão. Mrs. Bennet é a maior das chatas, mas só queria resolver o problema que criara. Ou seja, é um tremendo problema que ela tenta resolver de sua maneira atrapalhada, quase vendendo as filhas.

Agora vejamos Middlemarch. George Eliot escrevia dois livros – um dedicado ao caso da grande personagem Dorothea Casaubon, que casa com um homem mais velho em busca de “conhecimento” e “erudição”, e outro ao caso de Rosamond Vincy, que casa com o Dr. Lydgate à espera de uma vida rica que acaba por levar a família à bancarrota – quando decidiu juntá-los em apenas um romance. A encruzilhada que une ambos os livros fica clara no Capítulo XI, página 110 na edição da Record, quando subitamente entra Lydgate e começa um segundo romance com outro set de personagens.

Os conflitos em Middlemarch são tantos que seria longo citá-los um por um , mas é absolutamente notável o fato de que Dorothea e Rosamund – as personagens principais do livro – passem 900 páginas sem trocar uma palavra, coisa que apenas fazem no final. Isso é tão espetacular, cria tamanha expectativa que, bem, o jogo fica empatado em 1 x 1.

Construção de personagens: Comecemos por Austen, já que acho difícil vencê-la neste quesito. Minha amiga e também historiadora e escritora Nikelen Witter uma vez escreveu, fazendo uma descrição de alguns personagens de Orgulho e Preconceito:

Elizabeth é uma das mais fantásticas heroínas que conheço. Ela não é uma mocinha romântica – esse papel é da sua irmã Jane – , sabe ser maliciosa, dura, debochada, tudo isso sem deixar de ter um bom coração. Envergonha-se de sua família, mas ama-os a ponto de defendê-los mesmo com seus imensos defeitos. O que poucos notam é quão revolucionário é este romance para a época e as pessoas para quem foi escrito. Ele é a reivindicação de uma possibilidade de escolha que nem as mulheres, nem os homens, tinham em sua época. Embora publicado no início do século XIX, o romance é de fins do século XVIII e está ancorado numa moral em que a família e as convenções ditam as escolhas e os destinos. Então Austen pega seus dois personagens principais – cheios de dúvidas, incapazes de um comportamento retilíneo – e os faz inteiramente rebeldes para o mundo em que vivem. Elizabeth é uma rebelde nata. Não quer se submeter a um homem apenas para ter um marido. Ela quer alguém que a respeite como o pai o faz (um Édipo bem resolvido, eu diria), e tem o apoio deste – que a considera acima de todas as filhas por ver nela uma mente irmã. E Darcy? Darcy é aparentemente convencional, preso aos costumes e a sua posição. E, então, de repente, Darcy também se rebela (contra si mesmo, como ele afirma) e passa a desejar o que não lhe seria permitido. O romance não é apenas uma aula sobre o convencionalismo inglês, mas também sobre a revolução nos costumes, marca desta virada de século. Os personagens são perfeitos para demonstrar como a família nuclear deixa de ser vista como uma entidade reprodutora de seres humanos com a finalidade de abastecer linhagens, passando a um núcleo formativo de indivíduos. Nisso, as ideias de harmonia e amor conjugal começam a aparecer. Daí o elemento revolucionário do romance e das personagens bem construídas de Austen.

Já em Middlemarch, a única personagem que realmente rivaliza com as de Orgulho e Preconceito é Mr. Casaubon, um intelectual que merece como poucos o epíteto de “pseudo”. Incapaz de dar atenção a nada que não seja a sua obra imortal teológica que ofereceria à eternidade, chamada simplesmente de “A chave de todos os mitos”, é o mais estéril dos seres humanos. Apesar disso, é admirado e respeitado por todos por seu conhecimento e rendimentos. Explico melhor: em Middlemarch, Edward Casaubon passa sua vida numa tentativa inútil de encontrar um quadro abrangente que sirva para explicar toda a mitologia. Ele mostraria que todas as mitologias do mundo são fragmentos de um antigo e corrupto corpus do conhecimento, para o qual só ele tem a chave. Dorothea deslumbra-se com seu brilhantismo e erudição para descobrir, no leito de morte do marido, que todo o plano era absurdo e que ela não pode fazer nada com os fragmentos do livro ao qual se propunha organizar.

Bem, já viram. Orgulho e Preconceito 2 x 1 Middlemarch.

Joana Bosak

Relevância sociológica: Aqui é o terreno de George Eliot. Middlemarch é um imbatível painel social. O romance nos oferece um completo, compreensível e sutil panorama de uma Inglaterra em transição. É o poder dos velhos proprietários de terra (Mr. Featherstone) passando para os capitães da indústria (Mr. Vincy). É o poderoso símbolo do trem que ameaça cortar as terras de Middlemarch ao meio. Os pobres seguem pobres, claro, e atormentam o coração de Dorothea. Os novos profissionais, personificados pelo médico Lydgate e pelo artista Ladislaw esculhambam a rotina. Além disso, há os negociantes espertalhões, os juizes inconsequentes, os médicos venais defensores de métodos antiquados por interesse, etc. Há muita astúcia, muitas palavras belas e vazias, cujo maior representante é o banqueiro Bulstrode. Porém, na literatura de Eliot, não há maniqueísmo em nenhuma análise. Todos têm méritos e defeitos, ninguém é bom ou mau por completo. Tudo isso é descrito com rigor e precisão, sem cansar o leitor com digressões “eruditas”, como fez, por exemplo, Tolstói no final de Guerra e Paz.

E estamos com o placar de 2 x 2.

Análise psicológica ou relevância ontológica

Virgínia Woolf dizia que Middlemarch fazia com que a maior parte dos outros romances ingleses de seu tempo parecessem destinar-se a um público juvenil. É um romance sério, absolutamente sério, e a psicologia dos personagens é esmiuçada até o último pensamento antes da frase ser pronunciada. Isto nos torna íntimos de todos eles, conhecendo seus raciocínios tortuosos e suas esquisitices. A seu modo, ainda lógico e organizado, Eliot inaugura o fluxo de consciência. Em razão disso é que o gol decisivo é de Jane Austen, pois ela faz o mesmo sem o apoio da miríade de detalhes necessários a George Eliot. Meu placar final é Orgulho e Preconceito 3 x 2 Middlemarch.

31 comments / Add your comment below

  1. Sem fôlego!! Que jogão!!!!
    Sério. O texto, as análises, o resultado, tudo aumenta ainda mais minha dor por não ter podido assistir. O único problema seria eu levantar no meio dos debates e puxar uma ola ou soprar uma vuvuzela.
    Não escondo minha paixão por Austen e costumo a obrigar meus alunos a lê-la. E, aí, eu quero apontar um gol não marcado (VAI MORRÊ, JUIZ!). Jane Austen continua atualíssima. Resignificada em seus conflitos, redescoberta em seu humor, marcante em suas personagens. Ela faz jovens nem sempre acostumados a leitura se encantarem por Orgulho e Preconceito. Ela escreve um romance do tipo boy meet girl e consegue ser lida e apreciada por leitores de ambos os sexos, das mais diversas faixas etárias.
    O placar justo seria de 4 x 2.
    Só não xingo o juiz porque ele aceitou um passe meu em um dos gols.

    Adorei, Milton. Quero mais destes!

  2. Milton,

    me acalmei e li o post!

    Ontem conheci Nikelen. Aliás, continuo conhecendo nesta descrição de Elizabeth Bennet. Hoje conheço Luís Augusto Farinatti que entende os “pobres nervos” da senhora Bennet. Sem dúvida esta partida foi um clássico, e também quero mais!

    Fiquei apenas com uma dúvida: e as opiniões de Joana Bosak? Ela acabou concordando com as suas, Milton?

    1. A participação da Joana foi extraordinária. Ela concordou, discordou, mas sobretudo ampliou tudo com seu vasto conhecimento. Mas acho que ela só fez umas tabelas doidas num bloquinho…

      1. Luís,

        e dona de grande sabedoria. O que é um resfriadinho diante de “four or five thousand a year”?
        Me diga com sinceridade.
        Nada que um guaco, mel e agrião não cure. Praticamente de graça.

  3. Nessas coisas não tem conversa: manda minha teimosia, e ela se nega a encarar a derrota de George Eliot. Para mim esse juiz é um ladrão, ancorado no fato de que, neste caso, não há Tribunal de Justiça Desportiva que dê jeito. Na verdade, todos com certeza notaram, a vitória de Austen estava cantada desde muito; jogo de cartas marcadas, tendencioso ao extremo.

    Bolaño 1 x 0 Franzen? Então tá.

  4. Foi muito legal a participação tua e da Joana, fiquei com muita vontade de ler a George Eliot.
    (ah, e obrigado pela propaganda no início da tua fala. esqueci de agradecer na hora, então agradeço aqui)

    1. De fato, grande partida. O jogo “clássico” foi, de fato, histórico. Muito mais coordenado, acho que, a nossa pelada, mas creio que até nisso a noite fez jus à proposta. Foi muito interessante e fico curioso no aguardo dos próximos.

    2. Xerxenesky.

      Ora, eu acho que a gente tem que divulgar nossas coisas onde puder. O público de ontem era de primeira qualidade.

      Carlos.

      Coordenado? Eu acho que saí correndo na frende da Joana e ela, com suas intervenções, deu um jeito. Sério, mérito dela ter harmonizado o que foi possível.

      Abraços.

  5. Milton,
    gostei muito, principalmente depois de tantos comentários. O povo entrou no jogo também.
    Acho que mais concordei contigo do que discordei.
    Pudera, és um leitor, digamos, mais experimentado do que eu. E com todos aqueles pormenores tão bem registrados…
    Valeu!!!!
    Que venham os próximos jogos!
    Bj
    Joana

  6. Bem, diante desse mundo alienante,
    o que dizer quando diante dum ato
    de amor… à CULTURA?
    Por ter pouquíssimas palavras,
    então, eis a minha gratidão…

    ALFA DO CENTAURO
    by Ramiro Conceição

    No escuro, de vez em quando costuro
    a bela asa-delta ao canto do catassol
    pequeno, lento e dadivoso… ao futuro.

    Então às cegas no muro salto… ao alto!
    E vou pra Alfa do Centauro em que tudo
    é áureo de um ouro sem valor, porque lá

    o importante é a expansão do esplendor
    que houve, há – e que sempre haverá.

    1. RASCUNHOS
      by Ramiro Conceição

      É pena que o frio congelou esses cardumes
      e que os peixes-voadores – não voem mais:
      porque foram capturados pela sandice total.
      Com licença. Preciso, com urgência, deixar
      esses rascunhos… na caverna da evolução.

  7. SOU LÚCIDO
    by Álvaro de Campos

    Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
    Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
    Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
    E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
    (Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
    Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
    E romantismo, sim, mas devagar…).

    Sinto uma simpatia por essa gente toda,
    Sobretudo quando não merece simpatia.
    Sim, eu sou também vadio e pedinte,
    E sou-o também por minha culpa.
    Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
    É estar ao lado da escala social,
    É não ser adaptável às normas da vida,
    ‘As normas reais ou sentimentais da vida –
    Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
    Não ser pobre a valer, operário explorado,
    Não ser doente de uma doença incurável,
    Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
    Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
    Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,
    E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.

    Não: tudo menos ter razão!
    Tudo menos importar-se com a humanidade!
    Tudo menos ceder ao humanitarismo!
    De que serve uma sensação se ha uma razão exterior a ela?

    Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
    Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
    É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
    É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.

    Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
    Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
    E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
    Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.

    Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
    E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

    Coitado do Álvaro de Campos!
    Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
    Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
    Coitado dele, que com lagrimas (autenticas) nos olhos,
    Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
    Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco
    Aquele pobre que não era pobre que tinha olhos tristes por profissão.

    Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
    Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

    E, sim, coitado dele!
    Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
    Que são pedintes e pedem,
    Porque a alma humana é um abismo.

    Eu é que sei. Coitado dele!
    Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!

    Mas até nem parvo sou!
    Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
    Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

    Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!

    Já disse: sou lúcido.
    Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
    Merda! Sou lúcido.

  8. A-do-rei este campeonato! Li sobre ele no site JANE AUSTEN EM PORTUGUÊS, da Raquel Sallaberry, e tb vibrei com a vitória de Orgulho e Preconceito!
    Vou comentar sobre isso com muita gente!
    Parabéns!
    Abs.,
    Rebeca

  9. E eu que imagina terem passados os tempos das tertúlias…
    Maravilhoso encontro, este.

    Tertúlia: s.f. (1847-1881 cf. CA1) 1 agrupamento, reunião de parentes ou amigos 2 (1881) palestra literária 3 pequena agremiação literária, menor do que as academias e arcádias ¤ etim esp. tertulia (a1630) ‘reunião de gente para discutir ou conversar’, este de orig.obsc.; cp. it. trastullo (1726) ‘jogo, divertimento, passatempo’; f.hist. 1847-1881 tertulia, 1899 tertúlia
    [Houaiss]

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