Lá vou eu de novo, agora na Feira

Porto Alegre, Feira do Livro, sábado, 12 de novembro, às 16 h, ocorrerá mais uma temeridade. O Sport Club Literatura estará na Tenda Pasárgada da Feira do Livro e eu, juntamente com Tatiana Tavares, serei o árbitro de As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino x Ficções, de Jorge Luis Borges. A Tenda Pasárgada, para quem conhece a Praça da Alfândega de Porto Alegre, estará localizada de modo discreto e quase invisível como as cidades de Calvino na notória posição entre o Memorial do RGS e o Santander Cultural. Haverá um outro jogo, arbitrado por Joana Bosak e Rubem Castiglione reunindo Crônica de uma Morte Anunciada, de García Márquez e Travessuras da menina má, de Vargas Llosa. Dois jogaços. Dois clássicos de arrebentar… com os comentaristas.

Nestes dias, releio os livros que me couberam. Estou no Calvino, que é bem melhor do que eu lembrava. Logo após relerei Borges, mas talvez nem fosse necessário, pois Ficções parece estar instalado há mais de vinte anos em meu cérebro. À leitura!

Anotações para o jogo Orgulho e Preconceito x Middlemarch

A estreia do Sport Club Literatura do StudioClio foi, acredito, um sucesso. Estavam lá uns 50 malucos, talvez mais, divertindo-se com pessoas que falavam sobre livros. Foi o cúmulo da civilização, com muito bom humor e as Corujas brilhando pelo auditório de caras sorridentes. O primeiro jogo foi duríssimo e acabou com 2666 (Roberto Bolaño) 1 x 0 Liberdade (Jonathan Franzen), sob a arbitagem de Antônio Xerxenesky e Carlos André Moreira. No jogo final, o placar que atrubuí a Orgulho e Preconceito x Middlemarch prevaleceu, apesar da tentativa de Joana Bosak de anular um gol de Jane Austen, escaramuça abortada pela plateia… Eu e Joana não nos conhecíamos, mas acho que nossa palestra conjunta acabou funcionando. Ela muito é bonita e não é mole — tem formação e mestrado em história e doutorado em literatura comparada pela UFRGS, onde já deu aulas nas duas áreas. Tinha tudo para acabar comigo, mas teve pena. Abaixo, minhas anotações para o evento.

Os árbitros de Middlemarch x Orgulho e Preconceito: eu e Joana Bosak

Boa noite.

A missão impossível que me pedem é a de realizar uma partida de futebol entre dois dos maiores romances da grande literatura inglesa – Middlemarch e Orgulho e Preconceito. Comparar dois livros que amo é, guardadas as proporções, fazer uma Escolha de Sofia, decidindo qual de meus filhos – tenho dois aos quais amo incondicionalmente – deve ser encaminhado para a câmara de gás. Então, para afastar os critérios meramente afetivos, criei regras próprias. Em primeiro lugar, elegi cinco itens que seriam caros à literatura que ambas as autoras praticam. Em segundo lugar, procurei deixar longe de mim a afirmativa do mestre E. M. Forster, outro britânico, no seu ensaio Aspectos do Romance: “O teste final de um romance será a nossa afeição por ele, como é o teste de nossos amigos e de qualquer outra coisa que não possamos definir”. Também desconsiderei o fato de que, para meu gosto, alguns quesitos têm importância superior a outros. Os quesitos:

0. (Zero, porque aqui as autoras não marcam gols). Notícia biográfica das equipes.
1. Linguagem, foco narrativo
2. Construção de conflitos e estrutura do romance
3. Construção de personagens
4. Relevância sociológica
5. Análise psicológica (relevância ontológica)

O número de quesitos que marcam gols é ímpar por um motivo muito simples: queria evitar o empate.

Começo então por uma notícia biográfica de ambas:

Jane Austen nasceu em 1775 e morreu em 1817. Viveu, portanto, 41 anos. Orgulho e Preconceito foi publicado em pela primeira vez em 1813, quando autora tinha 38 anos. É seu romance mais conhecido e popular. Austen escreveu apenas outros cinco, todos excelentes: Razão e Sensibilidade (1811), Mansfield Park (1814), Emma (1815) e os póstumos A Abadia de Northanger (1818) e Persuasão (1818). Austen nunca casou, sempre morou com os pais. Escrevia seus romances em seu quarto e tinha pudor de quando alguém abria a porta — escondendo imediatamente os cadernos. A vida de Jane Austen é um deserto de grandes acontecimentos. O fato mais próximo a um caso amoroso, foi um breve amor juvenil finalizado por problemas financeiros do pretendente.

Em comparação com a vida de Jane, a existência de George Eliot foi espetacular. Ela nasceu dois anos após a morte de Austen e viveu 20 anos mais, chegando aos 61. Middlemarch foi publicado quando ela tinha 53. George, que na verdade chamava-se Mary Ann Evans, apaixonou-se e fugiu com um homem casado, George Henry Lewes, com o qual viveu por quase vinte e cinco anos, até a morte do amante. Sete meses antes de falecer, George Eliot casou-se com seu primeiro biógrafo, John Walter Cross, vinte anos mais moço. Sua vida parece a de uma mulher moderna. Se Austen escreveu seis romances, Eliot produziu apenas um a mais.

Equivoca-se quem pensar que elas tinham pouco em comum. O jogo, apesar de reunir dois estilos muito pessoais e únicos, é duríssimo.

Então comecemos a peleja pela linguagem e foco narrativo:

Quem leu Orgulho e Preconceito ou outros de seus livros, sabe que Austen é leve e enganadora, a gente pensa que está numa tranquila mesa de chá quando, com a maior graça, ela nos apresenta abismos que, pensando bem, já estavam ali, mas dos quais não pressentíamos a profundidade. Austen não faz comédia, mas nos obriga a gargalhadas; expõe dramas, mas não é trágica; é grave, porém leve; é clássica, apesar de ousada. O romance não deixa transparecer claramente seu esquema por trás de diálogos absolutamente fluentes e de uma narradora de tom zombeteiro. Num espaço rural limitado, as pessoas fazem visitas, vão à bailes, tomam chá, iludem umas às outras, armam situações e divagam sobre suas vidas e planos. O refinado humor da escritora abrange tudo. É o próprio time do Barcelona. Troca passes em diálogos ininterruptos, seduz a todos, inclusive aos adversários, para depois vencê-los.

Milton Ribeiro, dizem

Enquanto isso George Eliot aposta numa vitória baseada em rigoroso esquema defensivo. Ela tece com obsessiva minúcia os panos de fundo de cada cena e, nesta particularidade, é menos moderna que Austen. Podemos dizer que tem alma de socióloga, o que poderá render-lhe gols mais à frente. É importante dizer que Orgulho e Preconceito tem aproximadamente 300 páginas, enquanto que Middlemarch tem quase 1000. As torcidas presentes hoje ao StudioClio dirão que isso não tem a menor importância, mas este árbitro discorda: tem tudo a ver pelo simples fato de que George Eliot enrola e joga no erro do adversário. Quando menos se espera, a tragédia econômica de Fred Vincy, por exemplo, fica-nos clara com tal riqueza de detalhes financeiros e psicológicos que adquirimos a certeza de que não lhe resta saída, se não houvesse uma boa moça para o salvar.
Porém, como estamos aqui para julgar e não para ficar na arquibancada comendo picolés ou bebendo cerveja sem álcool – pois o Estatuto do Torcedor criminosamente não permite o consumo de álcool nos estádios – decidimos que a linguagem de Jane Austen acaba de fazer um belo gol na impecável defesa de George Eliot, que não contava com uma falha individual. Pois na página 162, a autora, sim, ela mesmo, começa inesperadamente a falar na primeira pessoa do singular, deitando teses e atrapalhando a narrativa. Em contraposição, temos em Austen trechos de virtuosismo quase inalcançável como a cena em que Lydia fala besteiras sem parar, fazendo a atenção do leitor ir embora, para depois descobrimos confortavelmente que fomos acompanhados na fuga por Elizabeth, que também não faz a menor ideia do que Lydia falara. Virginia Woolf: escreveu: “Ali estava uma mulher, por volta de 1800, escrevendo sem ódio, sem amargura, sem medo, sem protestos, sem pregação. Orgulho e Preconceito 1 x 0 Middemarch.

Construção de Conflitos: Como já disse, Jane Austen, de modo hábil, cria conflitos que logo tornam-se abismos. O problema onde Elizabeth Bennet e Fitzwilliam Darcy equilibram-se até o final é muito rico. A forma como Austen coloca ambos em posição de vencer orgulho e preconceito através da rebeldia é digno de várias avalanches da torcida – calma, sou colorado. Também a posição do sarcástico Mr. Bennet como catalisador de conflitos é brilhante e Mrs. Bennet… Bem, Mrs. Bennet nem é catalisadora. Mrs. Bennet é dinamite pura. Podemos considerá-la uma chata, mas apelo à opinião de meu amigo historiador e escritor Luís Augusto Farinatti para defender sua posição no romance. Ela tem uma missão fundamental. Afinal, num regime sucessório onde as mulheres não herdam, é imprescindível ter um filho varão. É ele que vai herdar a propriedade, ajudar o pai a organizar os rendimentos, dotar uma ou mais irmãs para que possam casar e acolher as irremediavelmente rejeitadas. Ou seja, não ter um filho homem era uma catástrofe (imaginem que Mrs. Bennet, por única e exclusiva culpa sua, como se pensava na época, tinha cinco filhas). Então, “colocar” as filhas era uma obsessão. Mrs. Bennet é a maior das chatas, mas só queria resolver o problema que criara. Ou seja, é um tremendo problema que ela tenta resolver de sua maneira atrapalhada, quase vendendo as filhas.

Agora vejamos Middlemarch. George Eliot escrevia dois livros – um dedicado ao caso da grande personagem Dorothea Casaubon, que casa com um homem mais velho em busca de “conhecimento” e “erudição”, e outro ao caso de Rosamond Vincy, que casa com o Dr. Lydgate à espera de uma vida rica que acaba por levar a família à bancarrota – quando decidiu juntá-los em apenas um romance. A encruzilhada que une ambos os livros fica clara no Capítulo XI, página 110 na edição da Record, quando subitamente entra Lydgate e começa um segundo romance com outro set de personagens.

Os conflitos em Middlemarch são tantos que seria longo citá-los um por um , mas é absolutamente notável o fato de que Dorothea e Rosamund – as personagens principais do livro – passem 900 páginas sem trocar uma palavra, coisa que apenas fazem no final. Isso é tão espetacular, cria tamanha expectativa que, bem, o jogo fica empatado em 1 x 1.

Construção de personagens: Comecemos por Austen, já que acho difícil vencê-la neste quesito. Minha amiga e também historiadora e escritora Nikelen Witter uma vez escreveu, fazendo uma descrição de alguns personagens de Orgulho e Preconceito:

Elizabeth é uma das mais fantásticas heroínas que conheço. Ela não é uma mocinha romântica – esse papel é da sua irmã Jane – , sabe ser maliciosa, dura, debochada, tudo isso sem deixar de ter um bom coração. Envergonha-se de sua família, mas ama-os a ponto de defendê-los mesmo com seus imensos defeitos. O que poucos notam é quão revolucionário é este romance para a época e as pessoas para quem foi escrito. Ele é a reivindicação de uma possibilidade de escolha que nem as mulheres, nem os homens, tinham em sua época. Embora publicado no início do século XIX, o romance é de fins do século XVIII e está ancorado numa moral em que a família e as convenções ditam as escolhas e os destinos. Então Austen pega seus dois personagens principais – cheios de dúvidas, incapazes de um comportamento retilíneo – e os faz inteiramente rebeldes para o mundo em que vivem. Elizabeth é uma rebelde nata. Não quer se submeter a um homem apenas para ter um marido. Ela quer alguém que a respeite como o pai o faz (um Édipo bem resolvido, eu diria), e tem o apoio deste – que a considera acima de todas as filhas por ver nela uma mente irmã. E Darcy? Darcy é aparentemente convencional, preso aos costumes e a sua posição. E, então, de repente, Darcy também se rebela (contra si mesmo, como ele afirma) e passa a desejar o que não lhe seria permitido. O romance não é apenas uma aula sobre o convencionalismo inglês, mas também sobre a revolução nos costumes, marca desta virada de século. Os personagens são perfeitos para demonstrar como a família nuclear deixa de ser vista como uma entidade reprodutora de seres humanos com a finalidade de abastecer linhagens, passando a um núcleo formativo de indivíduos. Nisso, as ideias de harmonia e amor conjugal começam a aparecer. Daí o elemento revolucionário do romance e das personagens bem construídas de Austen.

Já em Middlemarch, a única personagem que realmente rivaliza com as de Orgulho e Preconceito é Mr. Casaubon, um intelectual que merece como poucos o epíteto de “pseudo”. Incapaz de dar atenção a nada que não seja a sua obra imortal teológica que ofereceria à eternidade, chamada simplesmente de “A chave de todos os mitos”, é o mais estéril dos seres humanos. Apesar disso, é admirado e respeitado por todos por seu conhecimento e rendimentos. Explico melhor: em Middlemarch, Edward Casaubon passa sua vida numa tentativa inútil de encontrar um quadro abrangente que sirva para explicar toda a mitologia. Ele mostraria que todas as mitologias do mundo são fragmentos de um antigo e corrupto corpus do conhecimento, para o qual só ele tem a chave. Dorothea deslumbra-se com seu brilhantismo e erudição para descobrir, no leito de morte do marido, que todo o plano era absurdo e que ela não pode fazer nada com os fragmentos do livro ao qual se propunha organizar.

Bem, já viram. Orgulho e Preconceito 2 x 1 Middlemarch.

Joana Bosak

Relevância sociológica: Aqui é o terreno de George Eliot. Middlemarch é um imbatível painel social. O romance nos oferece um completo, compreensível e sutil panorama de uma Inglaterra em transição. É o poder dos velhos proprietários de terra (Mr. Featherstone) passando para os capitães da indústria (Mr. Vincy). É o poderoso símbolo do trem que ameaça cortar as terras de Middlemarch ao meio. Os pobres seguem pobres, claro, e atormentam o coração de Dorothea. Os novos profissionais, personificados pelo médico Lydgate e pelo artista Ladislaw esculhambam a rotina. Além disso, há os negociantes espertalhões, os juizes inconsequentes, os médicos venais defensores de métodos antiquados por interesse, etc. Há muita astúcia, muitas palavras belas e vazias, cujo maior representante é o banqueiro Bulstrode. Porém, na literatura de Eliot, não há maniqueísmo em nenhuma análise. Todos têm méritos e defeitos, ninguém é bom ou mau por completo. Tudo isso é descrito com rigor e precisão, sem cansar o leitor com digressões “eruditas”, como fez, por exemplo, Tolstói no final de Guerra e Paz.

E estamos com o placar de 2 x 2.

Análise psicológica ou relevância ontológica

Virgínia Woolf dizia que Middlemarch fazia com que a maior parte dos outros romances ingleses de seu tempo parecessem destinar-se a um público juvenil. É um romance sério, absolutamente sério, e a psicologia dos personagens é esmiuçada até o último pensamento antes da frase ser pronunciada. Isto nos torna íntimos de todos eles, conhecendo seus raciocínios tortuosos e suas esquisitices. A seu modo, ainda lógico e organizado, Eliot inaugura o fluxo de consciência. Em razão disso é que o gol decisivo é de Jane Austen, pois ela faz o mesmo sem o apoio da miríade de detalhes necessários a George Eliot. Meu placar final é Orgulho e Preconceito 3 x 2 Middlemarch.

Orgulho e Preconceito, de Jane Austen X Middlemarch, de George Eliot: quem vencerá?

Minha mãe sempre disse que há loucos para tudo. E lá vou eu fazer a coarbitragem de um fantástico embate entre dois livros que amo apaixonadamente. Creio que parte da culpa pela presença de Middlemarch na partida é minha. Será um jogo duríssimo, terrível, ao vivo, com fortíssimo e inédito comprometimento do árbitro e na presença de torcedores ilustres…

Middlemarch, de George Eliot, apareceu em vários comentários que Marcos Nunes fez por aqui e em três posts meus — aqui, aqui e aqui. No primeiro deles, deixo-o numa lista de melhores livros de todos os tempos, mas não pensem que considero Orgulho e Preconceito menor e que mereça perder. Por exemplo, acordei hoje de madrugada e fiz mentalmente um jogo. Quando o despertador tocou estava 3 x 2 para o romance de Jane Austen.

Uma afirmativa bastante imbecil é dizer que a vida poderia ser mais simples se a gente não a enchesse de dificuldades extras… Melhor seria apenas ler os bons livros, sem se comprometer demais, certo? Bem, esqueça esta declaração desesperada. Citei Orgulho e Preconceito aqui (com imensa repercussão para um blog de sete leitores), aqui e aqui. Enquanto isto, releio Middlemarch para ver onde ele seria superior ou inferior a Orgulho e Preconceito, que reli ano passado. Ele já fez uns golzinhos e tomou outros vários. Mas posso garantir que o cérebro de uma pessoa que faz duas escritoras e livros jogarem uma partida de futebol é um… campo de jogo. Meu problema maior é que acho que um dos livros é melhor do que o outro, mas que o outro é mais perfeito que o primeiro. OK, chega. Abaixo o reclame para os embates da próxima terça-feira.

~o~

Comentando a literatura universal de modo lúdico-desportivo, resenhistas apresentam, avaliam e confrontam obras ao vivo, no palco do StudioClio. A cada edição, um jogo histórico (Coliseu) e uma pelada (Com-ca vs. Sem-ca).

Primeiro jogo da série Coliseu – clássicos e épicos da literatura:

Jane Austen (1775-1817), com Pride and Prejudice (Orgulho e preconceito, 1813)

x

George Eliot (1819-1880), com Middlemarch (1874).

Os juízes serão Milton Ribeiro e Joana Bosak.

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Para a pelada (pelada?) teremos:

2666, de Roberto Bolaño

x

Liberdade, de Jonathan Franzen.

Os juízes serão Antônio Xerxenesky e Carlos André Moreira.

Adquira seu ingresso.

Com Antônio Xerxenesky, Carlos André Moreira, Joana Bosak e Milton Ribeiro
Data 21 de junho, terça-feira, 19h30
Valores
R$ 5,00 (coreia)
R$ 10,00 (arquibancada)
R$ 15,00 (social)
R$ 20,00 (camarote)