Lendo Anna Kariênina (ainda não é uma resenha, é só paixão)

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Li rapidamente um terço do livro de 814 páginas. Incrível como minha lembrança do romance era distorcida. É ainda melhor do que eu lembrava. Tolstói não é aquele estilista perfeito — usa estranhas pontuações e repete palavras tal como o tradutor Rubens Figueiredo (excelente) referiu no prefácio. Por exemplo, nas páginas 241-242 há um parágrafo de quase uma página onde a palavra “camponeses” aparece 15 vezes. Sem problemas, o homem sabe contar uma história como ninguém. Tais repetições não revelam descaso com o texto. Tolstói era um escritor cuidadoso, revisava muitas vezes seus textos que depois eram passados a limpo à noite por sua mulher. Ele usa as repetições em seu hábil discurso livre indireto, inserindo-se nas idiossincrasias e vícios de linguagem dos personagens.

Outra coisa é que as descrições nunca são contadas sem o filtro e a emoção de um personagem. Não são descrições mortas, sem ação, Tolstói integra tudo, fica lindo. Vemos a propriedade de Liêvin enquanto o mesmo sofre e trabalha nela. Nada para, tudo narra.

Esta tremenda obra de arte muito bem planejada é cheia de pequenos detalhes significativos. Há dois personagens principais, Liêvin e Anna. Em torno deles gira toda a ação, com apenas dois ou três pontos de contato mais claros, Kitty, Oblónski e sua mulher Dolly. Duas perspectivas da mesmíssima Rússia. Um painel? Sim, mas um painel de câmara, sem e com maior grandiosidade do que em Guerra e Paz.

Tal como na primeira leitura, que fiz aos 17 anos, o bovarismo de Anna me parece mais antipático do que o da heroína de Flaubert, mas sua impulsiva irreflexão é um dos pontos altos do romance. Uma coisa de que não lembrava era da ironia de frases que se contradizem em grande parte do romance. Às vezes umas contra as outras, às vezes internamente.

(Paixão de outros: estou num banco para falar com uma gélida gerente de contas. Ela se levanta para ver se um cartão está na agência. Quando volta, interrompe arregalada o ato de sentar. Fica suspensa olhando para o livro de Tolstói e me diz lenta e saborosamente: Anna Kariênina… eu simplesmente amo esse livro! Senta-se e começa a falar comigo com se fôssemos velhos amigos).

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12 comments / Add your comment below

  1. Li Anna Karienina no final do ano. É verdade que Tolstoi não tem a mesma densidade filosófica de Dostoievski, mas, putz, como o cara conta uma história. Apesar de mergulhado na burguesia russa do século XIX a historia é fascinante e envolvente. Anna pareceu-me frívola em demasia e um tanto histérica. Concordo contigo: entre as adúlteras mais discutidas da literatura universal, a madame Bovary de Flaubert e Capitu de Machado são mais simpáticas.
    Sobre a capacidade de descrever e narrar destaco uma passagem especial: o trabalho de parto de Kitty. Magnífico!

  2. Milton, Tolstói era um leitor que lia de tudo, conhecia como ninguém as regras usuais de se escrever romance na Europa. Essas repetições e “erros” em sua forma de escrever eram puramente propositais; era avesso a modas literárias. Aliás, repare bem: vou propor uma questão e imediatamente respondê-la: qual grande escritor do século XX mostrou ser influenciado por Tolstói em suas repetições conscientes de palavras num mesmo parágrafo? R: Thomas Bernhard. Bernhard desenvolveu essa técnica ao paroxismo, criando seu estilo sincopado, minimalista, cadenciado. Puro Tolstói. Essa tradução é essencial por mostrar isso, coisa que as traduções do francês eufemizavam indevidamente.

  3. Aliás, te intimo e adquirir o “Os Ùltimos Dias”, na edição de bolso da Cia das Letras. Nele, já vale o preço um ensaio em que Tolstói desbanca brilhantemente ninguém menos que Shakespeare, afirmando_ e provando a cada linha_ a impostura do bardo inglês. É um dos textos mais engraçados que já li. Não é humor involuntário, mas consequência da acidez do russo. Ele leu Shakespeare por décadas, em três línguas, mais tudo que se escreveu sobre ele, para produzir o texto. Daí se percebe o empenho dele como escritor.

    Sobre este texto específico, escrevi uma reseinha:

    http://charllescampos.blogspot.com/2012/01/umas-paginas-pra-la-de-engracadas.html

  4. Acho Madame Bovary mais mordaz no que se refere às relações de classe; Tolstói tem graves senões à nobreza e à burguesia, mas tem maiores senões ainda às mulheres, e a misoginia percorre o texto como uma coisa amarga, doentia, miserável.

    Vale aqui o mesmo aforismo posto no Kraus:

    “Praticamente todo misógino baseia sua condição em um paradoxo: o amor que sente é o ódio que, como ser inteligente, se obriga a sentir”

  5. Tudo a ver e nada a ver, pois tudo narra…

    TRANSLOUCADO
    by Ramiro Conceição

    Querido Milton Ribeiro,
    gostaria de lhe comunicar
    que descobri o óbvio:
    os prefixos trans e tres
    são sinônimos, ou seja,
    querem dizer “além de”.
    Mas descobri também que
    tres é corruptela…de trans.

    Então por que existe, em todos os dicionários,
    TRESLOUCADO, mas não TRANSLOUCADO?

    Ou seja, transloucado é corretíssimo!
    Além do mais, tem sentido lindíssimo:
    alguém com a vivência de ter transpassado
    a loucura e, inteiro, chegado ao outro lado.

    Neste sentido, a grande arte seria uma convalescença
    dentro dum barco a navegar no oceano entre a doença
    e a saúde da alma humana (se ela existir efetivamente).

  6. Oi.. recentemente li Anna Karienina e fiquei simplesmente apaixonado pelo livro. na clássica comparação Dostoievski x Tolstoi, admito: prefiro Tolstoi. Adoro Dostoievski também mas prefiro o estilo do Tolstoi. Os romances de Dostoiévski são mais psicológicos, os de Tolstoi mais envolventes.
    Não sei se você acabou de ler o livro, mas a parte final é incrível. E acho que o Liévin é um dos personagens mais humanos que já vi em um livro. Para mim, ele é de longe o mais interessante do livro. A história da Anna é bem coadjuvante. Os melhores momentos estão na história do Lievin, as melhores revelações, conclusões, pensamentos, tudo. A forma como Tolstoi passa a insegurança, os medos, as dúvidas de Liévin torna-o um personagem extremamente interessante e carismático. É um livro que deveria ser lido por todos. De verdade.

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