Sonho com abóboras

Era noite fechada quando fui ao cemitério visitar o túmulo do meu pai. Estava desconfiado de que ele tivesse sido enterrado vivo. Com aquela facilidade só encontrada nos sonhos, tirei o mármore, puxei o caixão e levei-o para o carro. Lá chegando, baixei os bancos de trás, pus o caixão no porta-malas e fui embora — afinal de contas, queria conferir o conteúdo sozinho, com toda a calma.

Saí de Porto Alegre e fui até Guaíba, entrei à direita na estrada para Pantano Grande e parei depois de alguns quilômetros. Desci um barranco bastante íngreme ao lado da estrada e ali, escondido, tirei o caixão do porta-malas, coloquei-o na frente do carro, liguei as lanternas do carro e abri o ataúde. Estava tudo direitinho. Meu pai estava conservado, frio e morto, tal como o vira pela última vez. Quando estava fechando o caixão, vi milhares de abóboras de todas as cores e formatos pelo chão inclinado. Era lindo de ver o contraste das cores e das sombras projetadas. Decidi levar algumas, digamos, centenas.

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Comecei a encher o porta-malas de abóboras. Quando lotou, reabri o ataúde para utilizar  seus vãos. Meu pai ficou adornado por abóboras. Ela ficaram entre suas pernas, ao lado de seu corpo, de sua cabeça. Passei tanto tempo trabalhando naquilo que amanheceu. Tomado de susto e com a lógica própria dos sonhos, resolvi livrar-me de tudo, pois não haveria como recolocar o féretro em seu lugar sob a luz do dia. Não sei como consegui enfiar o caixão no porta-malas cheio, mas deu certo e fui adiante. Dobrei à direita em Pantano e cheguei a Rio Pardo. A cidade é banhada pelo Rio Jacuí, onde há uns barrancos que proporcionam belas paisagens aos habitantes da cidade, além de servirem para várias outras coisas. Fui até o rio, estacionei embaixo de uma ponte e tchum com o caixão. Coisa inaceitável: ele ficou boiando. Entrei no rio e voltei a abri-lo. Joguei água dentro a fim de que afundasse. Deu certo.

Quando fui embora havia centenas de abóboras flutuantes descendo o rio. Era bonito de ver.

Acordei com absoluta certeza de que meu pai não estava mais no cemitério e de que tinha perdido centenas de lindas abóboras.

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Obs. 1: Dia desses, alguém falou neste sonho para mim. Não lembro quem foi, só lembro que me disseram: li há anos no teu blog. Só que hoje, certamente em função da lembrança do amigo, voltei a abrir o caixão de meu pai enquanto dormia. Desta vez dei apenas uma olhada.
Obs. 2: Meu pai faleceu em 11 de dezembro de 1993.

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  1. Sonho sonhado ou não, o que importa é o sonho narrado. Narrar é sua arte, dentre outras, Milton. O espetáculo das abóboras deve ter sido lindo, sejam elas morangas, d’água ou abobrinhas italianas. Eram alaranjadas? Assim as vi, ao fantasiar seu sonho. Daí, já são dois ou três os sonhadores: o que deveras sonhou, o que o descreve e quem o lê (escuta). Se assim é, multiplicam-se as abóboras e, a horas dessas, provavelmente o rio Jacuí se encontra coalhado de caixões, defuntos e lembranças. Para isso – e mais – servem os rios: carregam e lavam. Mas, principalmente, expõem um amanhecer de abóboras.

  2. COVA DA ALMA
    by Ramiro Conceição

    .
    (Nos pingos do sonho,
    uma criatura estranha
    insiste em visitar-me.)
    .
    “Filho, acorda… Sou eu!”
    “Pai, você tá aí? Tô chegando.”
    .
    (Começo a desabotoar a crença,
    a cova da alma.)
    .
    “Anda logo!… Anda logo!
    Estou sob a transitória saída.”
    “Tô chegando! Tô chegando!
    Estou sobre a entrada da vida.”
    .
    (É, dentre os mortos,
    os vivos clamam!)

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