Publicado originalmente no Sul21 em 6 de de abril de 2012
Uma tragédia fica caracterizada onde não há apenas seriedade e dignidade, mas também conflitos com instâncias superiores, sejam elas metafísicas, como com deuses ou o destino, ou tangíveis, como com as leis e a sociedade. No caso de Heleno de Freitas o algoz foi o destino, o qual, como nas tragédia grega, não se deixou dobrar em nenhum momento. Pode-se dizer que Heleno cumpriu minuciosamente todo o papel trágico que lhe cabia, saindo da glória para a loucura e a morte em linha reta, com a convicção demonstrada sobejamente em Heleno, filme de José Henrique Fonseca, em cartaz nas principais cidades brasileiras.
A obra, rodada em gloriosa fotografia em preto a branco, deixa-nos por duas horas livres de quaisquer vestígios de ciúmes sobre a qualidade do cinema argentino, apesar da presença do hermano Fernando Castets dentre os roteiristas. Mais: não é necessário gostar de futebol para gostar de Heleno. Advogado, jogador de futebol dos bons, galã, boa vida, viciado em éter e lança-perfume, intratável, inteligente e vítima da sífilis, Heleno de Freitas traz todos os ingredientes de um grande personagem de tragédia. Vitimado pelos vícios e pela sífilis diagnosticada tardiamente — e que ele se negava a admitir ou tratar — , Heleno também foi vitimado pela celebridade e arrogância. É uma história triste, claro.
Heleno foi o primeiro grande encrenqueiro do futebol brasileiro e talvez mantenha-se no topo até hoje. A Adriano Imperador falta não apenas classe. O comportamento de nosso contemporâneo é uma brincadeira boba e monotemática frente a alguém que foi o principal jogador do Botafogo por oito anos — que fez 209 gols em 235 jogos no Bota, além de 19 em 24 jogos pelo Vasco e 15 em 18 jogos pela Seleção — , que desprezava seus companheiros pelo fato de serem um bando de pernas-de-pau (e que dizia e repetia isso para quem quisesse ouvir, a imprensa deliciava-se), que conquistava as mulheres que bem entendia, que se irritava por nada, que deu um nada metafórico tiro no pé ao tentar acender um fósforo enfiado na unha (John Wayne foi sua inspiração), que tinha amigos empresários, juristas e diplomatas e que acabou louco. Como definiu seu biógrafo Marcos Eduardo Neves:
Ele era temperamental como Edmundo, bonito como Raí, mulherengo como Renato Gaúcho, artilheiro como Romário, boêmio como Ronaldinho Gaúcho, inteligente como Tostão, de boa família como Kaká, elegante como Falcão e problemático como Adriano.
(Faltou dizer que ele torrava dinheiro e era explorado pelos amigos como Garrincha).
Seu gênio irascível e predador de mulheres rendeu-lhe o apelido de Gilda, analogia com a célebre personagem de Rita Hayworth, também bela e incontrolável. O apelido foi criado pela torcida do Fluminense. As noites de Heleno eram no Copacabana Palace, no Cassino da Urca ou na boate Vogue, tudo o que de melhor que a noite do Rio oferecia. Porém, assim como Rita Hayworth dizia que “todos os homens que já tive foram para a cama com Gilda e acordaram comigo”, Heleno dormia no Copacabana Palace e acordava no Botafogo. E o Botafogo era ruim demais, só Heleno se salvava. O time era tão ruim que Heleno nunca foi campeão carioca pelo time.
Em 1948, a contragosto, foi vendido ao Boca Juniors na maior transação do futebol brasileiro até então. Deixou a mulher grávida no Rio e seguiu fazendo seus gols até dar o tal tiro no pé. Voltou para conquistar seu único título carioca pelo Vasco, no ano de 1949. O técnico do Vasco era o exigente Flávio Costa, que também comandava a Seleção Brasileira. Aliás, a Seleção tinha por base o Vasco. Assim, era quase inevitável que Heleno jogasse e fosse Campeão do Mundo em 1950. Mas não gostava dos treinos, coisas chatas e cansativas após as noitadas. Um dia, irritado, ameaçou Flávio Costa com uma arma descarregada e acabou apanhando. Ficou fora da Copa, claro. E acabou partindo para a Colômbia, que pagava os mais altos salários do continente. Com a camisa do Atlético Barranquilla, “El jugador”, com era conhecido, encantou um jovem jornalista chamado Gabriel García Márquez.
Durante a Copa do Mundo, Heleno esteve na Colômbia. Quando soube da derrota, numa das melhores cenas do filme, Heleno comemorou a perda do título, finalizando a festa como sempre: com bebedeira e mulheres.
Fora de forma e falido, viciado em éter e lança-perfume, mas com os sintomas da sífilis já absolutamente presentes, teve uma passagem pelo Santos — nunca entrou em campo — e voltou ao Rio em 1953 para jogar em seu novo clube, o América-RJ. Jogou apenas alguns minutos. Foi expulso no primeiro tempo e nunca mais entrou em campo. Foi internado em 1954 na Casa de Saúde São Sebastião. Emagreceu, perdeu dentes e cabelo e o que lhe restava de sanidade. Ouvia vozes e agia de forma violenta.
O cuidadoso mosaico que o filme vai montando é formado por cenas alternadas da ascensão, glória, decadência e fim do craque, sem respeito à linha de tempo. É perfeito ao mostrar como que sua vida fora do campo foi lentamente matando o craque. Rodrigo Santoro, no papel de Heleno, voltou a demonstrar que não é apenas mais uma carinha bonita. Poucas vezes se viu no cinema nacional uma imersão tão radical num personagem. Basta dizer que o ator perdeu 12 quilos para viver as cenas finais do filme, já louco num sanatório. Santoro começou as filmagens pesando entre 80 e 82 quilos e chegou a 68, 69, fruto de uma dieta rigorosa ou, segundo declarou, da fome. Também tomou aulas com o bailarino Marcelo Misailidis para ganhar leveza e agilidade, características do jogador. O treinamento com bola foi feito com o ex-jogador Cláudio Adão.
O trio principal de atores é completado por Alinne Moraes, como Sílvia, esposa do jogador, pela colombiana Angie Cepeda, uma de suas amantes, e por Erom Cordeiro, que faz Alberto, o melhor amigo de Heleno e que acaba ficando com sua mulher… Heleno foi a mais solitária das estrelas.
Heleno é um filme rigoroso, não é moralista e muito menos piegas. Mesmo a música que acompanha a degenerecência mental do craque não busca lágrimas. É um movimento da 5ª Sinfonia de Mahler. O diretor Fonseca diz que gostaria que os espectadores soubessem da biografia de Heleno antes de verem o filme, pois considera que as cenas mostradas sejam insuficientes. Pedimos licença para discordar. O que é mostrado nos deixa tão fascinados que é impossível não sair do cinema e dar uma olhadinha no Google.
Não consigo achar Heleno um bom personagem. Como jogador, uma incógnita, tão grande quanto Friedenreich. Como ser humano, alguém com vícios comuns, mas com rançosa postura de classe média alta. Um filhinho de papai e mamãe, numa palavra. Egoísta, vaidoso, orgulhoso, cafajeste. Em compensação, jogava no Botafogo. A tragédia dele para estar aí, nesse estigma da estrela solitária. Por isso o Botafogo é conhecido aqui no Rio e Janeiro como o time dos esquizofrênicos.
O filme? É estiloso, não mais. A Angie Cepeda é um assombro de sexualidade e gostosura. Mas ele carece duma coisa óbvia: um personagem verdadeiramente rico. O caminho dele é em linha reta, mas nem chega a ser trágico: é patético. E o filme, para ocultar isso, transforma o longo em uma colagem de curtas e episódios da vida privada de um cara notável como jogador (mas uma incógnita) e insuportável como qualquer celebridade. É bonito o preto e branco maneirista botafoguense, mas… não me pegou mesmo. Ademais, como já conhecida a história, pois já lia a biografia na qual se baseou o filme (livro, aliás, bem ruinzinho), não pude nem torcer CONTRA ele. Já sabia que ele terminava só, louco, internado num hospício mineiro. Terra de gente doida. Cuidado: o Aécio Neves vem aí.
Marcos, tem algum problema na caixa de comentários dos seu blog da Rachel. No momento de definir o perfil, ok. Mas depois, quando se tem que digitar os caracteres para publicar, os mesmos não aparecem. E o sistema entra em loop…
Ramiro, estive lá agora e não vi nada errado não. Fui ao final do texto, pedi para adicionar comentário (a trolha tá em inglês comprimido, é claro), abriu a caixa de diálogo…. vê lá.
Do pouco que acompanho de cinema e de teatro, o Matheus Nachtergaele e o Rodrigo Santoro estão muito acima da média que anda a pipocar por estas plagas…
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(Reflexão com uma pitadinha de veneno: o fato do Santoro se ter aproximado de “la piovanni” é a prova cabal de que ninguém é perfeito; afinal, todo mundo comete cagadas).
Aos verdadeiros artistas!
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CAÇADOR DE DELICADEZAS
by Ramiro Conceição
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Adejar além do próprio sítio
e subir até se chegar aos píncaros.
Lá, ficar quieto, esperando com respeito
até que, de surpresa,
um bando de poemas apareça.
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Ser então um caçador de delicadezas
e pegar a presa sem matar ou ferir.
Afagar… Afagar…
E dar calma: aquela da própria alma.
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Descer… Descer…
Com o desconhecido ser nas mãos.
Entrar em casa, acender as luzes,
desabotoando as janelas aos extraordinário.
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Então escutar o impossível
e ser capaz de cantar o possível
das litanias abissais do ser.
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Depois… Correr para fora da casa e ver
o poema subindo mansamente ao céus.
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errata: onde se lê “as janelas aos extraordinário”, por favor, leia-se:
“as janelas ao extraordinário”.
Obrigado.
No último verso é “aos ceus”.
Olha, no que pese eu não acreditar que se é possível conciliar duas das minhas paixões, futebol e literatura, você à revelia dessa convicção escreveu um belo texto sobre futebol – sim, porque é muito engraçado esses que levantam Armando Nogueira como o lírico do futebol, o demiurgo que faz o casamento entre arte da escrita e a bola.
Bom texto.
Obrigado!