O filme Nota de Rodapé, de Joseph Cedar, acendeu todas as minhas luzes internas de “Perigo, perigo!”, como dizia o robô de Perdidos no Espaço. É uma produção israelense absolutamente atemporal e universal, nada tendo a ver com a nojenta política do país. Eliezer e Uriel Shkolnik são pai e filho, ambos acadêmicos, que dedicam a vida ao estudo do Talmude, o livro sagrado dos judeus. O pai Eliezer é um turrão deprimido que se sente rejeitado pelos colegas. Apesar de passar seus dias estudando em bibliotecas com tapa-ouvidos para não ser perturbado pelo mundo, publicou pouco e apenas pode ser orgulhar de uma nota de rodapé num trabalho seminal de sua área de estudo. É o homem de muitos livros (ou papéis) que se vê no cartaz. Por outro lado, Uriel é uma estrela ascendente bajulada por seus pares, um bando de inexplicáveis semideuses. Também publica muito, vende muito e é sempre reconhecido.
O filme inicia justamente com a cena de umas das premiações recebidas pelo filho. O pai assiste irritado, suportando com dificuldade o desajeitado elogio que o filho lhe faz. Sei que na vida acadêmica, ambiente de estabilidade empregatícia onde grassam paixões e vaidades oceânicas, algumas pessoas — nem todas — cultivam espetaculares ódios. Meu interesse pelo filme acendeu-se de forma ainda mais feérica por ter vivido — ou ter sido casado — com duas mulheres extremamente competitivas na vida universitária. Ou seja, quando o filme começou, logo concluí através de minha experiência: que legal, esses caras vão se matar. Ajeitei-me na cadeira porque sabia que veria gente efetivamente decidida a envenenar a vida do próximo sem a menor compaixão. Não me decepcionei.
Tudo vai caminhando pessimamente na família até que Eliezer, o pai, recebe o Prêmio Israel, a maior distinção acadêmica do país. Como assim? O pai e não o filho?
ATENÇÃO: A partir deste ponto, haverá um alto grau de spoilers. Se você os evita, volte a ler somente a partir do próximo parágrafo em itálico.
Eliezer recebeu a notícia da própria Ministra. Ele, de seu modo discreto, avisou a família e até comemorou. Também muito discretamente, o filho ficou contente por ver o trabalho de seu pai enfim reconhecido, mas, opa, houve um terrível engano. O filho é chamado à Comissão e fica sabendo que o prêmio era para ele, que a secretária errou de Shkolnik na hora de ligar. Em atitude mais ou menos digna, o filho não aceita o prêmio, diz que vai “matar o pai de desgosto” se aceitá-lo. Só que o presidente do juri diz que em hipótese alguma dará o prêmio para Eliezer, com o qual tinha antiga desavença… Numa cena patética e habilmente dirigida por Cedar, dentro de uma pequena sala totalmente inadequada, Uriel e o presidente do juri trocam empurrões. Todos se detestam.
Enquanto isso, em sua casa, Eliezer dá uma entrevista a um jornal onde, instado pela repórter, acaba desajeitadamente demonstrando seu desprezo pelo trabalho do filho, que faria pesquisas sem nenhuma profundidade e critério. Coisinhas superficiais.
— Certo, eu dou o prêmio a teu pai, mas, primeiro, com a condição que você, e não a Comissão Julgadora, escreva o texto laudatório que apresentará Eliezer como vencedor e, segundo, que você nunca mais concorra ao Prêmio Israel, mesmo depois de minha morte.
A surpreendente condição o deixa desesperado. A necessidade de vingar-se, de prejudicar alguém, obriga o presidente do juri a ver Uriel desistindo de outro título, do principal deles. E o que são os acadêmicos do gênero carreirista sem títulos? Com muita raiva, chutando tudo o que vê pela frente, o filho aceita as condições e escreve o texto para seu pai Eliezer. O pai, pesquisador experiente, desconfia que aquelas palavras não são de outro que não de seu filho. Comprova o fato exercendo sua especialidade: compara textos de Uriel, do presidente do juri e da carta recebida e…
Fica absolutamente quieto, indo receber o prêmio. Afinal, é uma distinção.
A partir daqui, no more spoilers.
Não afirmo que todos os acadêmicos tenham este comportamento, mas conheço vários casos. Ah, as viagens, as bolsas, as negociações para assinaturas em trabalhos — tudo conta, tudo conta! — , as escalas. Céus, que dramas! Houve tempo que em todos os sábados à noite eu ouvia fofocas da ADUFRGS (esta sigla, a do Sindicato dos Professores das Instituições Federais do Ensino Superior de Porto Alegre ou Associação dos Docentes da UFRGS, causa-me calafrios). Só eu sei o tédio que passei e os absurdos planejamentos, muitas vezes postos em prática, que ouvi. Um mundo peculiar. Tenho a impressão que o de padres e freiras é semelhante.
O filme de Cedar acerta em resumir grandes partes da história de Nota de Rodapé de forma gráfica e com sons de violinos em pizzicatto. Todas aquelas relações são farsescas e eu, sinceramente, não sei como se faz para produzir conhecimento nestes caldeirões de ódios, vaidades e invejas. Talvez seja necessário, sei lá.
Por falar em prêmios, Nota de Rodapé disputou e perdeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro para o iraniano A Separação. Ambos são grandes filmes, mas Hollywood acertou ao escolher o filme de Farhadi, com seu tema muito mais relevante. Não penso que Cedar queira matar o diretor iraniano por causa disso. Quem faz Nota de Rodapé — melhor roteiro no Festival de Cannes de 2011 (ufa, pensa Cedar, ao menos este eu ganhei…) — é superior às questiúnculas vitais, importantíssimas, dos “departamentos”.
Milton, há um erro: Nota de Rodapé concorreu ao Oscar em 2012, perdendo para “A Separação”. Abs.
Alterei o texto, Rafael. Muito obrigado pela leitura atenta e pela colaboração.
É, vi este filme e é bem legal. Há nele um subtexto subversivo segundo o qual o que sustenta a argumentação israelita sobre o sionismo não passa de bizantismo filosófico, hoje já descartado pelo realpoliticismo que dedica aos fundamentos religiosos do sistema somente o pavoneamento em hostes acadêmicas arcaicas. Quando muito, ao acadêmico resta redigir as notas de rodapé para seus patrões: Política e Economia.
Me perdi na conta das tuas ex competitivas na vida universitária.
Uma, duas.
Mas, devido ao contexto, valem mais.
Não verei o filme. Muita realidade para mim.
Agora, que parece bom, isso parece. O círculo acadêmico merece toda essa acidez e ainda mais. Em muitos aspectos, é bem como descreveste e como o filme parece apontar. O pior de tudo, é quando essas vaidades desmedidas, esses egos furiosos e suscetíveis pertencem a uns sujeitos que quase ninguém lê (o que é imensa maioria). Às vezes me parece um jogo inconsciente de pintar uns aos outros como monstros, para que todos pareçam grandiosos.
Então, o mundo acadêmico tem seu próprio show de horrores. Mas eu vejo o patético dessas brigas de ego em diversas outras áreas. Entre escritores, artistas em geral, jornalistas. Entre executivos de grandes empresas. O mundo acadêmico tem o seu ridículo particular, mas a guerra de vaidades está por toda parte.
Perfeito!
Preciso!
O que faz o mundo acadêmico nacional patético é que esses esnobes furiosos e intelectuais arianos se mordem por nada. O que se produz de minimamente interessante nas universidades brasileiras? Nada. Fiquei um ano e meio em um estágio intra-curricular contando células de testículos de touro para um professor, para a finalização de um trabalho de três anos que não trouxe nenhum benefício nem para a ciência e nem para a bibliografia (o professor escrevia de maneira bastante pedante, excluindo qualquer graça histriônica involuntária da coisa). E tal professor brigou de porrada_literalmente_, com um doutor em histologia, por causa do horário de uso do laboratório de aulas práticas. Esse outro professor fazia uma pesquisa sobre não sei o que de infinitamente insosso tendo como vitima uns filhotes de labrador. Não se pode falar que estão esquecidos porque sequer chegaram a ser lembrados. E haviam três alunos que ganhavam uma bolsa gorda para ficar lá, três horas ou mais por dia, contando as células dos testículos de touro.
Se a área de biológicas não basta, tenho duas experiências universitárias no ramo de humanas. Mestres e doutores que não tinham a mínima vocação e a mínima orientação sobre como tornar um texto interessante, que escreviam para ninguém, escreviam cifras sobre cidades invisíveis na qual um caboclo metido a coronel havia pecheirado um outro, e que por isso ganhara aura de pai fundador pelos professores sedentos de mitologias. Tem um professor aqui, Jadir Pessoa, que construiu sua estatura inalcançável de sociólogo escrevendo livros sobre um povoado de bêbados e desempregados chamado Lajes, com menos de mil habitantes. Esse cara é uma sumidade, foi secretário de cultura, mas ninguém nunca leu ou sequer sabe o nome de algum livro dele. Nossos intelectuais são patéticos ególatras burocráticos, sem conteúdo e sem tesão, que almejam apenas distinção altamente remunerada às custas de suas masturbaçõezinhas acadêmicas.
Parabéns pelo texto.
Sendo uma pessoa de vida acadêmica, assistir este filme foi uma experiência catártica – e eu só fui assistir para enrolar tempo até encontrar um amigo. Uma coisa que me chamou atenção – e o que é muito comum no meio acadêmico – é como a vida dos personagens é desasexualizada (existe a palavra, erm?), como eles não tem essa felicidade de terreiro.
A analogia com o mundo de freiras e padres é boa: não deve haver lugar mais parecido com um seminário do que um curso de pós-graduação.
O que é “felicidade de terreiro”? (pergunta sincera)
Quis dizer a felicidade do cotidiano, sabe? De ser feliz ao juntar os amigos para um churrasco, de passear com os filhos, o gosto do momento, do gosto do arroz no chá verde, para citar o Ozu. De ter conquistado o tempo, de certa forma.
Não tendo esse tipo de coisa, me parece que só resta a muitos acadêmicos justificarem sua existência na sua “capacidade produtiva”. Mas, sei lá. Só uma tentativa de entender porquê toda terça-feira, no colóquio semanal da minha instituição, eu vejo velhinhos se degladiando e se odiando, ao invés de estarem marcando um jogo de peteca para contar casos antigos e reclamar que o mundo não é mais o mesmo.
Mas, apesar de todas as vaidades, apesar de todas as picuínhas sem motivo, ainda há romantismo na academia e lugares isolados onde é possível ter um bom ambiente de trabalho. Em frente! 🙂
A vaidade é a maior desgraça do ser humano, infelizes em suas colocações, escritas e palestras, esperam que nós(idiotas, mal informados, célula da inteligência minúsculas, pensam eles) os aplauda nos seus discusos medíocres!!!!!!!!Pobres homens!!!!!!!!!!!!!!
Sempre disse que a vaidade acadêmica é a maior das vaidades, das mais cruéis. Eu mesmo já fui vitima dela. Passei 14 anos para ter meu título de mestre validado por uma universidade pública porque contrariei a vaidade do Coordenador do curso,hoje já falecido. Mas não por isto. Vi,vivenciei e soube de muitas histórias envolvendo a vaidade acadêmica. Belo artigo. Estimulou- me ver o filme.
Ótimo texto Milton, me sinto “normal” quando leio coisas assim, sou prof. universitária há 19 anos, iniciei muito empolgada, com muita fé (diga-se ingenuidade) e com o passar dos anos, ao participar de vários espaços (incluindo 1 ano na diretoria do sindicato local), realizar mestrado, doutorado, perdi o tesão em quase tudo da academia, exceto numa coisa preciosa pra mim a educação e a relação com meus alunos. Busco os lugares isolados que o Juca menciona, não abro mão do meu chá verde, dos amigos preciosos e de con(viver) o melhor que eu posso o presente. Feliz vida a todos que não comungam com a vaidade excessiva. Ah..concordo que a guerra das vaidades está por toda parte não só na academia!
Bom filme. Acabei de assistir. O texto do blog, infelizmente, conta todo o filme e pode ser um pouco frustante para quem assisti-lo em seguida. A observaçao “E o que são os acadêmicos do gênero carreirista sem títulos? Com muita raiva, chutando tudo o que vê pela frente, o filho aceita as condições e escreve o texto para seu pai Eliezer” está equivocada. Isto aconteceu em cena anterior, na discussão na magistral sequencia da pequena sala. Qd imposta as condiçoes, a cena é translocada para a casa do pai, onde começa a sua entrevista. Embora o filme tangencie questões da academia, não me parece esse o seu principal mote, me ressalta muito mais a relação complicada pai-filho e, como pano de fundo, a importância (ou não) de duas abordagens, aparentemente apenas, opostas de pesquisa, coincidentemente seguidas por eles.