Por Josias Teófilo 1
Publicado na Revista Continente e no Sul21 em 20 de outubro de 2012
Andrei Tarkovsky entrou para a história do cinema com apenas sete longas-metragens, cinco deles feitos na União Soviética e os outros dois na Itália e na Suécia, na década de 1980, já no exílio. Seu legado, entretanto, não é exclusivamente cinematográfico. Seguindo uma tradição russa de artistas que são também teóricos da arte – entre o final do século 19 e o começo do século 20, Tolstoi escrevera seu polêmico ensaio O que é a arte?, Kandinsky, o livro Do espiritual na arte, e Malevitch, junto com o poeta Maiakovsky, o Manifesto Suprematista –, Tarkovsky escreveu (“por falta de coisa melhor a fazer”, como ele dizia) um dos mais influentes e poderosos escritos teóricos sobre o cinema: o livro Esculpir o tempo.
Tarkovsky – cujo pai, Arseni, era poeta – nasceu num pequeno vilarejo a cerca de 350 quilômetros de Moscou, em abril do ano de 1932. A família com esse nome surgiu há aproximadamente sete séculos, e, até meados do século 19, o Principado Tarkovsky existiu na região do Cáucaso – sua linhagem espiritual, contudo, parece ser muito mais antiga do que a genealógica.
Depois de realizar o seu primeiro longa-metragem, A infância de Ivan (1962), que ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, concorrendo com diretores como Kubrick, Godard e Pasolini, Tarkovsky partiu para um ambicioso projeto: retratar uma figura central da cultura e da ortodoxia russa, Andrei Rublev, pintor de ícones do século 15. A falta de informações existentes sobre a vida de Rublev, em vez de uma dificuldade, foi uma grande oportunidade para o seu gênio criador. O resultado foi um filme de 3 horas e 20 minutos, em preto e branco, com exceção da cena final, colorida, em que surgem os ícones dourados pintados por Rublev.
Ao fazer um épico sobre o pintor de ícones medieval, que incorpora uma tradição pictórica que vem desde Bizâncio, Tarkovsky não se liga a uma tradição de arte religiosa de inspiração cristã? O fato é que ele viveu num contexto político em que esses temas religiosos, se não proibidos, eram mal vistos pelas autoridades soviéticas, que então seguiam a cartilha marxista-leninista. Rublev, contudo, era uma símbolo internacional da arte russa, e o quinto centenário do seu nascimento ajudou Tarkovsky a aprovar ideológica e financeiramente o seu projeto.
Depois de pronto, entretanto, o filme foi apresentado ao presidente soviético Leonid Brejnev e, em seguida, censurado, sob alegação de passar uma imagem negativa da história da Rússia. Apesar da censura, o diretor do Festival de Cannes já havia visto a película e, junto à direção do Festival de Veneza, ameaçou não incluir mais nenhum filme soviético, caso Rublev não fosse permitido. O filme não só participou em Cannes como ganhou o prêmio da crítica internacional, o que possibilitou a sua exibição em todo o mundo.
O interesse de Tarkovsky na história residiu no profundo paradoxo entre a obra de Rublev, reconhecida universalmente pela serenidade e harmonia, e o contexto social em que ele viveu, de guerras sangrentas, fome e morte – tudo que foi retratado no filme e que desagradou as autoridades soviéticas. Terá Tarkovsky, homem de interesses metafísico-religiosos, vivendo em plena Guerra Fria na União Soviética, se identificado com a situação paradoxal de Rublev? A questão é mais ampla do que essa. Parece haver uma afinidade estética entre ele e o pintor medieval, e, mais do que estética, uma afinidade espiritual entre a sua arte imagética e a tradição iconográfica.
Ídolo e ícone
No livro O ícone – Uma escola do olhar, Jean-Yves Leloup faz uma distinção entre ídolo e ícone. O primeiro seria qualquer forma de representação religiosa que prende o olhar em si mesmo, pelas formas, cores ou movimentos que chamam a atenção, provocando emoções. O ícone, ao contrário, não tem movimento nem profundidade, as cores e formas obedecem a padrões tradicionais. Nele, a transcendência é o fator essencial, a intenção é mostrar o “Invisível no visível, Presença na aparência”. Mas como relacionar uma arte tão antiga como a iconografia com uma tão nova como o cinema? Tarkovsky criticava tanto o modelo de criação cinematográfica que coloca a emoção como objetivo primordial, a saber, o modelo hollywoodiano de cinema comercial, como o modelo que coloca o intelecto no centro dessa atividade – os chamados filmes de arte.
Ele se mostrou profundamente decepcionado, por exemplo, com o que viu nos festivais de Cannes dos quais participou, de diretores como Fellini, Polanski, etc. Podemos dizer que o cinema que Tarkovsky rechaça seria como o ídolo de que fala Leloup? Para ele, “um artista sem fé é como um pintor que houvesse nascido cego”: a “função” do seu cinema é, portanto, essencialmente espiritual. Ele se recusava a usar cores vivas nos seus filmes (“Se eu usar cores muito marcantes o filme se caracterizará por elas”), repelia a expressividade excessiva dos atores (o recém falecido Erland Josephson, ator preferido de Bergman, afirmou certa vez, em entrevista, a imensa dificuldade em interpretar como Tarkovsky queria: sem emoção, de modo que o espectador pudesse livremente interpretar o que estivesse vendo). Além disso, ele dispensava o uso da música como muleta para produzir efeitos pré-definidos e, o que foi motivo da sua principal divergência com Eisenstein, negava os excessos da montagem.
Enfim, Tarkovsky buscava a pureza, podemos dizer até infantil, do olhar cinematográfico, que aspira a um hieróglifo da verdade – o mesmo poderia ser dito do ícone e sua tradição, com os quais Tarkovsky, desde muito cedo, teve contato em seu país natal. As semelhanças são profundas e podem indicar uma ancestralidade espiritual, coisa estranha a uma arte nova como o cinema, mas que é muito rica para a compreensão do fenômeno artístico como um fenômeno que transcende o tempo e o espaço.
Nostalgia e Stalker são dois dos momentos mais sublimes da minha vida, sem exagero. É uma pena profunda que não se ache blue-ray dos filmes de Tarkovsky por aqui.
Há meses que ando pesquisando tudo sobre Tarkóvsky, por isso, só tenho a lamentar que esse post seja tão conciso.
Concordando ou não com as “ideias” não cinematográficas dele, ou até mesmo algumas cinematográficas, Tarkovsky foi um dos poucos artistas do cinema, uma cara que impregnou em cada tomada, plano, corte e montagem o formato artístico incomum ao meio cinematográfico, repleto de técnicos, alguns excelentes, mas carente de artistas, daqueles que exigem do espectador mais do que uma opinião – simplesmente requer que ele mude porque, se não mudar, as imagens se sucederão tediosamente, sinal que o espectador não está vendo o filme, mas somente a si mesmo.
(Muito bom isso aí que o Marcos escreveu.)
Em Nostalgia, mas, de forma muito mais acentuada em Stalker, há um forte viés cristão. Stalker é, praticamente, uma fábula sobre Jesus: genial, arrebatadora,desconcertante, intensa. As cenas são tão lindas que chegam a ser uma violência. O discurso que o Stalker faz na primeira hora do filme tem tanta verdade, tanta lucidez sobre a existência, que eu fiquei desconfiado se um veículo como o cinema poderia comportar esse grau de revelação. Por mais que eu ame Fellini e Bergman, Tarkóvsky é maior. Ele faz do filme uma peça literária de altíssimo nível_ não à toa que nesses dois filmes, há personagens escritores. Por isso a necessidade recompensadora da concentração. Há uma intuição sempre presente, um estranhismo, uma impressão de ameaça, uma sensação de adstringência, que se assemelha a uma experiência espiritual: gostaria muitíssimo que Benjamin tivesse tido tempo de escrever sobre esses filmes, mas tenho uma certeza que ele sofreria o mesmo arrebatamento místico que teve na leitura de Proust. Mas se trata de um outro tipo de sensação de ameça, não a que vemos nos livros de Kafka e congêneres: uma ameaça de que algo grandioso aconteceu e toda nossa tragédia é por termos perdido de vez a capacidade de reconhecermos isso.
Nostalgia me deixou incapacitado por uma semana_ assisti-o nas férias, uma sorte. Me senti inadequadamente sensível por ter sofrido esse tipo de impacto: esse tipo de coisa é muito pouco viril e muito desvantajoso competitivamente hoje em dia. Mas fiquei atordoado. Escrevi tanto sobre o filme, de forma desconexa e muito pessoal, de forma que ninguém entenderia se eu ousasse mostrar. A cena do escritor atravessando o pátio da piscina vazia, com uma vela acesa na mão, repetindo as tentativas do professor louco, foi o que mais me marcou. O professor chega ao meio do caminho, e a chama se apaga; ele retorna, acende a vela, tenta de novo, e a chama se apaga pelo vento. Fica-si nisso, a julgar pela minha respiração suspensa de meu tempo interior, uns vinte minutos: ele retorna, acende a vela, chega pacientemente ao meio do caminho, e a chama se apaga. O velho professor louco fazia isso com a piscina cheia de água, e os banhistas tinham que socorrê-lo por interpretarem aquilo como uma tentativa de suicídio. Quando esvaziam a piscina, o filme mostra uma mulher e um rapaz de expressões famélicas catando as garrafas vazias, os restos de comida, os cinzeiros, os copos, deixados no fundo da piscina pelos banhistas. Me fez lembrar da corrente do golfo, da mais bela página de Hemingway, em Verdes Colinas da África, em que ele diz que a corrente sobreviverá ao lixo de nossa presença passageira, aos dejetos de nossa vaidade vazia. E o professor enfim consegue atravessar a piscina mantendo a sua chama acesa, a sua pequeníssima reserva de luz interior, enquanto o professor louco sucumba à desrazão de sua chama dispersa morrendo queimado em uma rua da Itália. Não há nada mais belo que essa capacidade de Tarkósvky de nos levar a esses estágios do pensamento, no cinema.
Milton,
Recebi diretamente de Artemiy Artemiev, todas as trilhas sonoras dos filmes do Tarkovski, Solaris e Stalker inclusos. Artemiev é dono da Electroshock records http://www.electroshock.ru/eng/welcome/index.html especializada em música atonal e binária, que detém os direitos dos trabalhos de Edward Artemiev, seu pai e autor das trilhas. Guardo até hoje um cartão de Natal que recebi diretamente de Artemiy Artemiev. Um prêmio para quem é fã dos filmes de Tarkovski.
80 anos – A linhagem sagrada de Andrei Tarkovsky | Milton Ribeiro