80 anos – A linhagem sagrada de Andrei Tarkovsky

Andrei Tarkovsky (1932-1986): apenas sete filmes lhe garantiram um lugar central na história do cinema | Foto: Divulgação

Por Josias Teófilo 1
Publicado na Revista Continente e no Sul21 em 20 de outubro de 2012

Andrei Tarkovsky entrou para a história do cinema com apenas sete longas-metragens, cinco deles feitos na União Soviética e os outros dois na Itália e na Suécia, na década de 1980, já no exílio. Seu legado, entretanto, não é exclusivamente cinematográfico. Seguindo uma tradição russa de artistas que são também teóricos da arte – entre o final do século 19 e o começo do século 20, Tolstoi escrevera seu polêmico ensaio O que é a arte?, Kandinsky, o livro Do espiritual na arte, e Malevitch, junto com o poeta Maiakovsky, o Manifesto Suprematista –, Tarkovsky escreveu (“por falta de coisa melhor a fazer”, como ele dizia) um dos mais influentes e poderosos escritos teóricos sobre o cinema: o livro Esculpir o tempo.

Tarkovsky – cujo pai, Arseni, era poeta – nasceu num pequeno vilarejo a cerca de 350 quilômetros de Moscou, em abril do ano de 1932. A família com esse nome surgiu há aproximadamente sete séculos, e, até meados do século 19, o Principado Tarkovsky existiu na região do Cáucaso – sua linhagem espiritual, contudo, parece ser muito mais antiga do que a genealógica.

O apuro visual de A infância de Ivan (1962) | Foto: Divulgação

Depois de realizar o seu primeiro longa-metragem, A infância de Ivan (1962), que ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, concorrendo com diretores como Kubrick, Godard e Pasolini, Tarkovsky partiu para um ambicioso projeto: retratar uma figura central da cultura e da ortodoxia russa, Andrei Rublev, pintor de ícones do século 15. A falta de informações existentes sobre a vida de Rublev, em vez de uma dificuldade, foi uma grande oportunidade para o seu gênio criador. O resultado foi um filme de 3 horas e 20 minutos, em preto e branco, com exceção da cena final, colorida, em que surgem os ícones dourados pintados por Rublev.

O épico Andrei Rublev: obra-prima absoluta | Foto: Divulgação

Ao fazer um épico sobre o pintor de ícones medieval, que incorpora uma tradição pictórica que vem desde Bizâncio, Tarkovsky não se liga a uma tradição de arte religiosa de inspiração cristã? O fato é que ele viveu num contexto político em que esses temas religiosos, se não proibidos, eram mal vistos pelas autoridades soviéticas, que então seguiam a cartilha marxista-leninista. Rublev, contudo, era uma símbolo internacional da arte russa, e o quinto centenário do seu nascimento ajudou Tarkovsky a aprovar ideológica e financeiramente o seu projeto.

Depois de pronto, entretanto, o filme foi apresentado ao presidente soviético Leonid Brejnev e, em seguida, censurado, sob alegação de passar uma imagem negativa da história da Rússia. Apesar da censura, o diretor do Festival de Cannes já havia visto a película e, junto à direção do Festival de Veneza, ameaçou não incluir mais nenhum filme soviético, caso Rublev não fosse permitido. O filme não só participou em Cannes como ganhou o prêmio da crítica internacional, o que possibilitou a sua exibição em todo o mundo.

O interesse de Tarkovsky na história residiu no profundo paradoxo entre a obra de Rublev, reconhecida universalmente pela serenidade e harmonia, e o contexto social em que ele viveu, de guerras sangrentas, fome e morte – tudo que foi retratado no filme e que desagradou as autoridades soviéticas. Terá Tarkovsky, homem de interesses metafísico-religiosos, vivendo em plena Guerra Fria na União Soviética, se identificado com a situação paradoxal de Rublev? A questão é mais ampla do que essa. Parece haver uma afinidade estética entre ele e o pintor medieval, e, mais do que estética, uma afinidade espiritual entre a sua arte imagética e a tradição iconográfica.

“Se eu usar cores muito marcantes o filme se caracterizará por elas” | Foto: Divulgação

Ídolo e ícone

No livro O ícone – Uma escola do olhar, Jean-Yves Leloup faz uma distinção entre ídolo e ícone. O primeiro seria qualquer forma de representação religiosa que prende o olhar em si mesmo, pelas formas, cores ou movimentos que chamam a atenção, provocando emoções. O ícone, ao contrário, não tem movimento nem profundidade, as cores e formas obedecem a padrões tradicionais. Nele, a transcendência é o fator essencial, a intenção é mostrar o “Invisível no visível, Presença na aparência”. Mas como relacionar uma arte tão antiga como a iconografia com uma tão nova como o cinema? Tarkovsky criticava tanto o modelo de criação cinematográfica que coloca a emoção como objetivo primordial, a saber, o modelo hollywoodiano de cinema comercial, como o modelo que coloca o intelecto no centro dessa atividade – os chamados filmes de arte.

Ele se mostrou profundamente decepcionado, por exemplo, com o que viu nos festivais de Cannes dos quais participou, de diretores como Fellini, Polanski, etc. Podemos dizer que o cinema que Tarkovsky rechaça seria como o ídolo de que fala Leloup? Para ele, “um artista sem fé é como um pintor que houvesse nascido cego”: a “função” do seu cinema é, portanto, essencialmente espiritual. Ele se recusava a usar cores vivas nos seus filmes (“Se eu usar cores muito marcantes o filme se caracterizará por elas”), repelia a expressividade excessiva dos atores (o recém falecido Erland Josephson, ator preferido de Bergman, afirmou certa vez, em entrevista, a imensa dificuldade em interpretar como Tarkovsky queria: sem emoção, de modo que o espectador pudesse livremente interpretar o que estivesse vendo). Além disso, ele dispensava o uso da música como muleta para produzir efeitos pré-definidos e, o que foi motivo da sua principal divergência com Eisenstein, negava os excessos da montagem.

Enfim, Tarkovsky buscava a pureza, podemos dizer até infantil, do olhar cinematográfico, que aspira a um hieróglifo da verdade – o mesmo poderia ser dito do ícone e sua tradição, com os quais Tarkovsky, desde muito cedo, teve contato em seu país natal. As semelhanças são profundas e podem indicar uma ancestralidade espiritual, coisa estranha a uma arte nova como o cinema, mas que é muito rica para a compreensão do fenômeno artístico como um fenômeno que transcende o tempo e o espaço.

1 Josias Teófilo, jornalista, é mestrando em Filosofia pela Universidade de Brasília com o tema A cumplicidade espiritual: o papel social do artista segundo Andrei Tarkovsky no filme Andrei Rublev.

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