Por puro pragmatismo ou esquisitice mental, toda vez que vejo o esforço necessário à montagem de uma obra de grandes proporções, penso nos motivos que levam as pessoas àquilo. No caso de Fidélio, ópera filha única de Beethoven, o caso me parecia mais grave. Uma ópera longa, de um compositor pouco afeito ao gênero, porque não investir em algo mais moderno ou nos cânones Mozart, Rossini ou Wagner? Ademais, acho que nossa época tem pleno direito — e dever — de dar sua interpretação a obras do passado, mas confesso meu preconceito para com óperas. Até Eric Hobsbawm em seu maravilhoso Tempos Fraturados escreve que “… nenhuma das óperas do repertório atual tem menos de oitenta anos, e praticamente nenhuma terá sido escrita por compositores nascidos depois de 1914. (…) A produção operística (…) consiste, na maioria esmagadora, em tentativas de refrescar túmulos eminentes depositando sobre eles diferentes conjuntos de flores”.
Só que meu amado historiador esqueceu de dizer que, não obstante a idade e os trechos do enredo fora de moda ou decididamente tolos, algumas óperas, como Fidélio, têm muito a dizer aos dias atuais. Com toda a razão, o flautista Artur Elias escreveu no Facebook da Associação de Amigos da Ospa que Fidélio trata de temas como “abuso de autoridade, violência de estado, liberdade de expressão, protagonismo da mulher”. Acrescento à lista de Artur pitadas de presos políticos, tudo isso misturado a uma música de primeira linha. Então, este chatíssimo resenhista hostil às óperas foi lá e teve que admitir que ouviu Beethoven… Ops, que gostou muito do que ouviu. Então, recuando de sua posição atacante, vamos a alguns comentários a respeito do que vimos e ouvimos no Theatro São Pedro no último sábado.
Gente, nosso amigo LvB queria escrever uma ópera de qualquer maneira. A primeira versão de Fidélio apareceu em 1805 e deu tudo errado. A ópera, em três atos, era longa demais, ineficiente do ponto de vista teatral, foi mal recebida e retirada de cartaz antes do prazo inicial. No ano seguinte, reapareceu bem mais curta sob o nome de Leonore, mas voltou a não agradar. Quando já estava praticamente arquivada como um projeto fracassado, o Theater am Kärntnertor de Berlim pediu a obra a Beethoven. Mas ele já tinha uma reputação a zelar e não desejava errar pela terceira vez. Então, fez nova reforma, desta vez chamando um novo libretista para retrabalhar a história. E, enquanto Beethoven dava um jeito naquela música que não dera muito certo, Georg Friedrich Treitschke acertava o texto e a ação teatral. Ufa!
Fidélio não é daquelas óperas que mais parecem um rosário formado por canções em sequência, amarradas por um fio de história. Suas árias não são melodias simples acompanhadas por violinos ardentes. É Beethoven, dá trabalho, são muitas notas, exige concentração. Sua densidade fica longe da ópera italiana, a orquestra dialoga com os cantores, servindo às árias não apenas como ornamento. Ou seja, não é um passeio no parque para ninguém.
Eu conheço pouco a obra, ouvi-a apenas na noite de sábado; ou seja, não tenho qualificação nem tanta memória para destacar onde cada cantor brilhou mais — e como brilharam! — mas faço questão de distinguir o início do 2º ato, aquela ária que veio antes de Rocco (Ricardo Barpp) dizer a Leonore (Birgit Beckherrn) a frase Vielleicht ist er tot e ouvir dela como resposta outra indagação: Ihr meint es? (escrevo com meus dois semestres de alemão, tá?), o dueto que segue e daí até o final, pois as árias que seguem essas palavras são realmente de dobrar qualquer ouvinte..
O grupo de cantores, Birgit Beckherrn, Juremir Vieira, Luiz Molz, Ricardo Barpp, Lina Mendes, Flávio Leite, Carlos Serapião, acompanhados pelo narrador Luiz Paulo Vasconcellos, deram um banho. Ia fazer um destaque para os melhores, mas selecionei cinco nomes, então deixa pra lá. A orquestra também esteve muito bem — assim como os poucos e bons do Coro Sinfônico do maestro Manfredo Schmiedt — , sob a compreensiva regência de Carlos Spierer, mas senti falta da tradução do que era dito nas árias e recitativos. Isto não é uma crítica a Luiz Paulo, mas que é sempre bom acompanhar o trabalho de ator dos cantores. Por exemplo, só pude valorizar o trabalho do careca Ricardo Barpp após me aproximar muito do palco no segundo ato, porém não imaginava o que ele dizia…