O Passeio Repentino de Kafka

Estou com saudades de uma pessoa, de uma mulher. Acabei lembrando deste texto de Kafka. Ah, você acha que Kafka é sempre terrível e kafkiano? Negativo, meu amigo, negativo. Confira a seguir:

O Passeio Repentino

Quando à noite parece ter-se tomado a decisão definitiva de permanecer em casa, vestiu-se o roupão, depois do jantar ficou-se sentado à mesa iluminada, às voltas com aquele trabalho ou jogo ao término do qual habitualmente se vai dormir, quando lá fora há um tempo inamistoso que torna natural permanecer em casa, quando já se passou tanto tempo quieto à mesa que ir embora teria de provocar espanto geral, quando até as escadas já estão escuras e a porta do prédio fechada, e quando apesar disso tudo, num mal-estar repentino, fica-se em pé, troca-se o roupão, surge-se imediatamente vestido para ir à rua, se esclarece que é preciso sair, faz-se isso depois de breve despedida, acreditando-se ter deixado maior ou menor irritação conforme a rapidez com que se bate a porta do apartamento, quando se está de novo na rua com membros que respondem com uma mobilidade especial a essa liberdade inesperada que lhes foi concedida, quando se sente, através dessa decisão, concentrada em si mesmo toda a capacidade de decidir, quando se reconhece com um senso maior que o comum que se tem mais energia do que necessidade de produzir e suportar a mais rápida das mudanças, e quando assim se vai às pressas pelas longas ruas – então por essa noite está-se totalmente desligado da família, que desvia seu rumo para o inessencial enquanto, firme de alto a baixo, os contornos com as linhas carregadas, dando tapas na parte traseira das coxas, ascende-se à sua verdadeira estatura.

Tudo fica mais reforçado quando, a essa hora tardia da noite, se procura um amigo para ver como ele vai.

Franz Kafka (Trad. de Modesto Carone) – Retirado do livro “Contemplação / O Foguista” editado pela Brasiliense (1991) e reeditado pela Cia. das Letras .

Desenhos de Franz Kafka
Desenhos de Franz Kafka

11 comments / Add your comment below

  1. Esse Kafka é fantástico…
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    FAROL
    by Ramiro Conceição
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    O rever de amigos antigos
    é semelhante aos barcos
    à noite, no entorno de um farol:
    não se sabe ao certo o porquê daquilo ter chegado
    a isso, após o mar bravio; nessa hora, não importa
    se ruim ou boa, acender as luzes de popa a proa
    pra que se enfeite o tempo com uma beleza à toa.

    1. Eis o fruto do encontro com um grande amigo…
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      A PERGUNTA
      by Ramiro Conceição
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      Meu filho de 4 anos, de repente, perguntou-me: “Papai, você vai morrer logo…?”. Por ter 60, um relâmpago flechou meu coração: “Filhinho, por que você tá perguntando isso?”. “Porque você tem cabelos brancos…; você é velho…; se você morrer, vou sentir saudade…; você vai morrer logo…?”. “Não sei, filhinho…; todo mundo morre…; você já viu as folhinhas das árvores, não viu?”. “Vi”. “Então, elas nascem e crescem verdinhas, depois ficam amarelinhas, marronzinhas e depois… elas caem na rua, não é verdade?”. “É…, mas, papai, você vai morrer logo?…”. “Não, filhinho, vou ficar bem velhinho, até você ficar um homem mais alto que o papai…”. “Então, tá bom…”. (meu deus… meu deus… meu Deus!).

        1. Piegas?
          Não sei se você está se referindo ao “Farol” ou “A Pergunta”. Se o seu comentário estiver associado ao último: pouco posso fazer, pois essa foi a sequência do diálogo, quase literal, do acontecido. Se associado ao primeiro, também pouco posso fazer, pois literalmente aconteceu. Se houve alguma pieguice, então, desculpe-me, Charlles: sou fruto do RIDÍCULO que sou…

          1. Charlles, se você soubesse a dificuldade que tive…, pois o tal chororô estava na face do meu filho…, enquanto o fixava, com segurança, na cadeirinha do meu carro…(pois, acabara de pegá-lo na creche…)
            Acredite, Charlles, foi uma baita ginástica mental… para tranquilizá-lo.

            PS: vou repensar o texto com o objetivo de retirar alguma possível gordura sentimental (vai me dar um baita trabalho…). Mas, vamos lá…

  2. Os poetas e empresários hoje em dia tem uma expectativa de vida ótima. Acima dos 80 anos. Você vai ver seu filho saindo da faculdade; isso se, já aos 60, não se tornar um velho precoce remoendo as eternas dores da passagereidade (aliás, acho que inventei essa palavra: passagereidade, pelo menos é o Google fala).

      1. Charlles, o problema é o seguinte: meu filho, de 4 anos, percebeu que sou um desregrado total: fumo; bebo; troco a noite pelo dia; há duas semanas: sai do Instituto, da sala de aula, e fui, sozinho, dirigindo, até hospital da Unimed: peguei uma pneumonia galopante, no pulmão esquerdo…: sou o que se poderia chamar de um marginal, mas com um salário associado à alta classe média brasileira. Não sei como ainda estou vivo… Devo ser um pangaré que se atreve a correr com os ditos “puros-sangues”. Salvei-me com antibióticos cavalares, enquanto lia os livros que comprei do Llosa (que você indicou…) e, ao mesmo tempo, comentando, aqui. Rezo mais por estas bandas…, e no seu blog (já que a Rachel e o Marcos mandaram para o espaço o seu respectivo…), do que, quase…, para Deus.

  3. Ramiro, pare de beber tanto e, definitivamente, pare de fumar. Eu fui fumante, e, sério, agora que me enoja me aproximar de qualquer pessoa que fuma, seja desses charutos intelectualmente policialescos que raras as vezes acontecem aqui pelo blog, ou seja a versão cancerígena mais evidente dos Marlboroughs (não sei como se escreva e que se foda!), que vemos de 3 a 4 por aí. Tudo é uma grande merda. Tive um fetiche filhodaputa com esse cosmético de “tabagista”, e costumava arvorar essa bestial estupidez: “não sou fumante, sou tabagista”. Eu era um porre de um filho da puta, isso sim. Parei, inexoravelmente, insofismavelmente; nem a Gloria Pires, que recebeu 750 mil reais do Marconi para dizer que Goiás é o Éden Talmúdico, seria capaz de me demover dessa extrema convicção. Cigarro é uma merda. E ponto. Se há uma certeza em minha vida, é essa: jamais voltarei a fumar. Posso deixar minha família e me casar com o sapateiro do bairro, ou tatuar uma flor de lis no braço e sair pelo nordeste em uma Harley-Davidson, mas fumar, nunca mais. Eu fumava uma carteira por dia, e hoje sinto um asco inenarrável quando penso em cigarro, ou charuto, ou cachimbos.

    Já o vinho, eu percebo que só o abandono às custas de ensaios mais determinados. O vinho é a minha savana africana onde jamais estive, é meu leão alvejado e minha amante comida na barraca do amigo ao lado.

    Mude sua vida, cara. Senão, é mesmo só mais umas 5 primaveras pela frente. E gastadas em pieguices, o que é pior.

    Palavras da salvação.

    (Pelo visto, algumas coisas entre você e o FM 37 ou 47 ou que diabo seja aquilo, são bastante semelhantes.)

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