A crítica musical em nossa província: isso também pode ter ideologia

A Mona Lisa de Duchamp
A Mona Lisa de Duchamp: de bigode

Lembro que quando começamos o PQP Bach, tínhamos que decidir o tom das postagens. Os poucos blogs do gênero só mostravam a capa do disco, as obras que continha e o link. Nós queríamos ser um pouco mais explicativos, dada a baixa informação do público brasileiro sobre música erudita. A ideia era a de fazer uma espécie de curadoria. Como criador da coisa, tratei de utilizar delicadamente meus argumentos a fim de não constranger meus pares. E fiquei muito feliz quando meus companheiros tenderam naturalmente ao tom bem-humorado e zombeteiro. Era o que eu queria.

Após anos lendo programas de concertos (e contracapas de discos) absolutamente horríveis — os quais utilizavam as metáforas de maior mau gosto que já li até hoje –, fiquei feliz de poder demonstrar ao público da internet minha ideologia de que a arte é filha da criatividade, da habilidade, do conhecimento, da inteligência e do artifício. E que todos estes itens guardam parentesco maior com a alegria do que com a sisudez.

Mais do que qualquer outra, a música erudita costuma se encastelar em torres inacessíveis. Muitos não gostam da crítica. E uma das formas de evitá-la é a de exigir a presença da filha maior da burrice: a seriedade. As alegações são as de qualquer professor inseguro: falta de respeito ou desconhecimento. Na Europa, algumas publicações já furaram este bloqueio e os músicos aprenderam a conviver com esses possíveis opositores. Mas em alguns locais como a provinciana Porto Alegre, permanece o ranço e muitos músicos só conseguem suportar o aplauso. Quando criticados, ficam amuados e, é óbvio, voltam à tradição de se considerarem intocáveis e de reclamarem dos termos seculares utilizados. Ou seja, exigem respeito quando nunca houve desrespeito…

“Minha ideologia” é antiga e, na verdade, não é nada minha. No Brasil, ela começou lá com os modernistas e, por alguma razão, ficou fora das avaliações musicais e acadêmicas. Em 1919, Marcel Duchamp já pintava uma Mona Lisa de bigodes. É claro que era uma brincadeira, mas uma brincadeira muito séria, que mostrava a disposição modernista para dessacralizar a arte. Pois a arte partiu há muito tempo do sagrado para o profano e mesmo aquela música que era ouvida apenas em igrejas vê que suas novas catedrais são as salas de concerto.

Detesto coisa sem graça. Então, corro não apenas da má literatura na ficção. Acho que a má literatura da crítica — vide o que se escreve no Brasil e em nossa aldeia, com raríssimas exceções — consegue afastar boa percentagem dos candidatos a ouvintes. Não é casual que não sejam lidos. O ar de grande importância que estes textos dão a si mesmos constroem um assustador espantalho em parceria com alguns músicos que se consideram semideuses por serem membros de uma orquestra qualquer.

Essas pessoas são tão bobocas.

8 comments / Add your comment below

  1. Cê sabe que eu sou o fã número 1 do PQPBach. Tiete mesmo. Adoro os textos e o humor simpático que beiram a truculência. Emocionei-me certa vez quando vc me mandou antecipado, por e-mail, antes da publicação do post, os links para download de álbuns do Mozart. E um dos momentos gratificantes da minha vida cibernética foi reconhecer que um dos leitores do meu blog não era ninguém menos que o grande Carlinus, o ser mais gentil e revestido de uma cordialidade imbatível da blogosfera_ só páreo para o Farinatti.

    Estava esperando minha filha e minha esposa no balé, ontem, no maior tédio, daí encontrei no porta-malas uma revista Piauí antiga que foi a salvação para passar o tempo. E reli essa maravilhosa matéria, lembrando que deveria surgir alguma situação para que eu a passasse para vc. Acho que esta é a situação. Trata do mercado fonográfico da música erudita, e de uma de suas maiores e mais desconcertantes fraudes. Um texto que é uma obra prima e me fez dar um suspiro profundo diante da beleza das minúcias da condição humana.

    Aqui está:

    http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-17/variacoes-musicais/fantasia-para-piano

      1. O último parágrafo é o que um escritor uma vez disse ser o “ponto de estocada”, a parte da narrativa em que o escritor faz o leitor sentir um arrepio na nuca e uma aproximação a uma verdade mais superiora sobre a vida. Achei magnífico este último parágrafo. Digno do arrepio dos melhores contos de Raymond Carver.

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