Ludwig van Beethoven (16 de dezembro de 1770 – 26 de março de 1827) foi um compositor cuja existência mostrou ser tão adequada a romances e filmes que as lendas em torno de sua figura foram se criando de forma indiscriminada, às vezes paradoxal. Sua surdez, por exemplo, contribuiu muito para popularizá-lo e para que fosse lamentado. Victor Hugo dizia que sua música era a de “Um deus cego que criava o Sol”, mas quem o conhecesse talvez reduzisse o tom de piedade.
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— Anotações sobre Beethoven (Parte I)
Beethoven era uma pessoa absolutamente segura de seu talento – não mentiríamos se o chamássemos de arrogante – e tinha certeza da imortalidade de sua obra. Ele tinha a perfeita noção de que estava criando um conjunto espetacular de obras musicais. A surdez representava uma tragédia muito mais do ponto de vista social, das relações amorosas e das de amizade, além prejudicar de forma fatal sua carreira de grande pianista, mas nunca foi encarada por ele como um obstáculo no plano da criação.
O problema começou a manifestar-se aos 26 anos de idade e aos 46 o compositor estava praticamente surdo. Ao final da primeira apresentação pública da 9ª Sinfonia, Beethoven permaneceu absorto na leitura da partitura e não percebeu que estava sendo ovacionado até que um amigo, tocando em seu braço, voltou a sua atenção para o que acontecia na sala, onde a platéia o aplaudia em pé. Ou seja, aos 54 anos, época da composição da Nona, ele era totalmente surdo.
Com isso, não estou dizendo que ele não tenha sofrido muito com o progressivo ensurdecimento. Sofreu a ponto de ter pensado em suicidar-se. Era 1802, Beethoven tinha 31 anos – idade com que Schubert morreu – e pensava em matar-se. Ao que se sabe, nunca fez uma tentativa, mas, se a fizesse e fosse bem-sucedido, talvez ainda assim estivéssemos falando dele.
Beethoven não era fácil. Em seus anos de aluno, ele utilizava harmonias que eram consideradas inadmissíveis. Quando lhe diziam que eram estranhas, perguntava de volta: “Quem as proibiu?”. Em 1792, quando Haydn visitou Bonn, foi apresentado a ele. Aos 21 anos, Beethoven mostrou-lhe algumas de suas obras e Haydn, impressionado, propôs que se mudasse para Viena a fim de que pudesse ser seu aluno. No mesmo ano, Beethoven instalou-se em Viena, mas recebia aulas de forma irregular, pois Haydn estava no auge de sua carreira e tinha de sair frequentemente da cidade.
Beethoven estava descontente devido a pouca dedicação de Haydn para com ele. Sabe-se que Haydn ensinou-lhe muito, apesar de considerá-lo um chato. Chamava Beethoven de Sua Majestade. Assim, em 1794, Beethoven aproveitou-se de uma viagem de Haydn a Londres e procurou um novo mestre: Georg Albrechtsberger. A relação entre ele e o novo professor também não foi muito tranquila. Tanto que Albrechtsberger, depois que foi dispensado, acabou proferindo uma daquelas frases que fazem a alegria dos biógrafos. Ele disse: “Não percam tempo com ele. Ele nada aprendeu e nada fará de bom”. Assim é que se faz para entrar na história pela porta dos fundos…
Hoje, quase 250 anos depois, não temos a intenção de contar os casos em que fica comprovado que Beethoven era um brigão — procuremos ver sua postura por um lado mais indulgente: era sujeito orgulhoso, consciente do próprio valor e, no caso do pobre Albrechtsberger, claramente superior.
Há um fato muito curioso na formação de Beethoven. Desde cedo ele teve uma noção muito curiosa sobre aquilo que lhe faltava: faltava-lhe conhecer literatura. E ele, com entusiasmo, atirou-se à leitura de Homero, Shakespeare, Goethe e Schiller. Pensava que só assim – e tendo bons professores de composição – poderia ser o que tinha planejado para si: tornar-se o Tondichter da Alemanha, o poeta dos sons.
Mais poesia do que isso?
As obras escritas antes de seus 30 anos obedeciam e traíam seus mestres. Apesar de respeitar as estruturas aprendidas, ele já anunciava os procedimentos expressivos que utilizaria nas fases seguintes — temas curtos e afirmativos, súbitos silêncios, uso simultâneo de graves e agudos do teclado, a primazia do ritmo. O seu “classicismo vienense” era, na verdade, um classicismo muito pessoal.
O uso dos silêncios
Os temas curtos sob os gestos incríveis do maestro Masato Usuki
Sua vida artística pode ser dividida em três fases — o que é tradicionalmente aceito. A primeira começa com a mudança para Viena, em 1792. Nove anos depois, em 1801, Beethoven afirmou não estar satisfeito com o que compusera até então, decidindo tomar um “novo caminho”. Tudo parecia levá-lo ao épico e, dois anos depois, em 1803, surge um grande fruto desse “novo caminho”: a Sinfonia Nº 3, Eroica. Ela abre um verdadeiro ciclo épico. A Sinfonia era para ser dedicada a Napoleão Bonaparte, pois Beethoven admirava os ideais da Revolução Francesa e Napoleão. Porém, quando Napoleão autoproclamou-se Imperador da França em maio de 1804, Beethoven retirou a dedicatória de forma pessoal, mas violenta… Foi à mesa onde estava a sinfonia já pronta, pegou a primeira página e riscou o nome de Napoleão tão violentamente que ficou um buraco no papel. Ele apagara a napoleônica referência com uma faca… E que música havia ali!
https://youtu.be/by2TA_yDlJg
O ciclo épico iniciado pela Eroica seguiu com obras verdadeiramente espantosas e originais, que cantavam a força da humanidade, a paixão pela liberdade e a vitória do espírito humano.
Vieram a Sinfonia Nº 5, a Nº 6, Pastoral, as sonatas Waldstein e Appassionata, o Concerto para Piano Nº 5, chamado Imperador, a Fantasia para piano, orquestra e coro. Eram músicas altamente belicosas, intensas, triunfantes e românticas. Importante explicar o título Imperador do Concerto Nº 5 para piano e orquestra. O compositor jamais quis este apelido para o Concerto. Quem deu este nome foi o editor responsável pela publicação da partitura na Inglaterra. Este acreditou ser aquele um Concerto tão grandioso como nenhum outro e o chamou de “Emperor”. O próprio Beethoven não gostou do apelido, mas isso de nada adiantou.
Na época da morte de Haydn, em 1809, ainda na primeira fase beethoveniana, foram anos de grande fertilidade criativa e, junto com as obras citadas, obras-primas brotavam de sua pena como beterrabas. Vieram também o Concerto para Piano nº 4, Op. 58 — recentemente interpretado por André Carrara com a Ospa; os Três Quartetos de Cordas, intitulados Razumovsky, em 1806; e o Concerto para Violino, Op. 61.
(continua)
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