Minha aparição nas páginas policiais de Zero Hora

Legenda: ‘Em 18/11 quase foi atropelado. O carro travou em cima dele. Este é o exemplo da família!’

Meu tio João, irmão de minha mãe, era jogo duro. Eu, aos 11 anos, sabia que devia temê-lo um pouquinho, não muito. Vagamente, estava consciente de que não era adequado fazer brincadeiras com ele. O tio, na falta de seu pai, meu avô, àquela época muito doente, às vezes tentava substituí-lo, assumindo o cargo de reserva moral da família. Era maçom e aquilo tinha alguma importância naquela época. Só que ele vivia em Cruz Alta e nós em Porto Alegre, bem longe.

Um dia, recebemos um recorte de jornal. Era da Zero Hora. Nele, estava estampada uma fotografia minha: eu aparecia tranquilo, pronto a receber uma bola vinda da cobrança de um lateral pelo Batista (João Batista Carneiro Borges, meu melhor amigo da infância); em minha direção, além da bola, vinha o Cesare (Cesare Arturo Domenico Bianchini, onde andará?) correndo como um louco assassino, mais ou menos como o Guiñazu faz. Mas o craque, com segurança e completo domínio da situação, permanecia impassível… Tal lance ocorreu em 16 de novembro de 1968, quase dois meses após meus 11 anos.

O AI-5 logo ali e eu jogando bola feito um alienado…

Mas… Lembro bem. Almoçava quando minha mãe entrou na cozinha brandindo um envelope. Parecia pronta para uma briga. Logo soube que era uma carta do temido tio João. E contra mim!

— Milton Luiz, que forma de estrear nos jornais! Que vergonha!

Ela me entregou a foto e a carta, que não me interessou. Fiquei encantado com a foto; afinal, aparecer no jornal não era para qualquer um e nem minha irmã — a perfeita — havia conseguido aquilo. Meu pai entrou atrás, dizendo que aquilo era um absurdo. Só que senti que eles estavam bem humorados e logo meu pai perguntou se eu tinha visto o fotógrafo.

— O tio João escreveu meu nome errado, é com “z”.
— Responde à minha pergunta, por favor.
— Sim, vi. Ele falou conosco.
— E o que ele disse?
— Nada. Só que queria uma fotos de nós jogando bola.

Minha mãe revirou os olhos e olhou para minha irmã, visivelmente deliciada com o caso que demonstrava pela enésima vez que eu era um hooligan com um futuro de prisões e perseguições.

— Da próxima vez, não te deixa fotografar!!! — disse minha mãe.

Acho que meus pais sabiam que, trabalhando todo o dia fora — ambos eram dentistas –, não podiam cuidar muito de nós. Talvez até tivessem confiança em mim, sei lá. Ou sabiam que o futebol na Av. João Pessoa ou na Praça Piratini era inevitável. Uma horda de meninos passava a tarde jogando bola. Como evitar que eu fizesse o mesmo? Prendendo-me em casa? Minha mãe me advertiu frouxamente para cuidar com os carros ao buscar a bola. Perguntou sobre o tal carro que freara “em cima de mim”.

— Nunca, mãe. Pode perguntar pro Batista.

Naquele momento, tive algo como uma revelação. Os adultos não pensavam em bloco, a dureza de meu tio era amenizada pelos meus pais, que não me deram castigo nenhum e eu esqueci completamente da frase de meu tio “Este é o exemplo da família”.

Ontem, recebi por carta o recorte. Estava sem a carta de meu tio. Lembrei de tudo, inclusive do fato de que minha mãe o mostrava a seus clientes como um troféu… Olha como este guri é incontrolável, agitado e moleque! Só que, quando apresentava a prova de minha molecagem, seu cliente lia a frase ofensiva de meu tio, que era sistematicamente ignorada por ela.

Realmente, meu tio morava longe.

17 comments / Add your comment below

  1. A história da tal reportagem eu já conhecia, mas nunca a havia visto. Ontem, organizando alguns papéis, deparei-me com a famosa reportagem. O mais estranho é que nenhum deles jamais havia percebido a forte reprovação do tio, beirando a deselegância, só lembravam da bela estreia pública deste grande “traquinas” que é o Milton.

  2. Saudações, Milton.

    “Quase foi atropelado” é uma pérola! Chega a superar em dramaticidade a manchete, “Vida em Perigo”.

    Vejam, desconfio que o motorista do fusca estacionado logo atrás da árvore já estava prestes a arremeter o bólido contra o mal exemplo da família, mas só resistiu pois contava que o proto-Guiñazu o atropelasse com mais raça.

  3. O Zero Hora em 1968 não tinha muito para fazer, tapava buracos de matérias censuradas com croniquetas do cotidiano, ou na época Porto Alegre (isso para não falar em Cruz Alta, mas o jornal é da capital, não?) era uma cidadezinha do interior? Terá sido prenúncio do Maio de 68 pelo mundo afora ou consequência, logo o futebol na rua uma ação libertária e revolucionária? Outra hipótese é que o título é uma profecia não só relacionada à vida de Milton Ribeiro (e seus amiguinhos pernas de pau), mas à vida planetária, em perigo devido à ação superdestrutiva do capitalismo selvagem da época, hoje global, errante e errado. Pense bem no enorme potencial metafórico e semiótico da matéria…

  4. Adorei, Milton!

    1. Você apareceu no jornal jogando futebol, aos 11 anos de idade!

    2. Corria o ano de 1968 e você foi flagrado em atitude subversiva.

    3. Você estreou na mídia recebendo crítica da Zero Hora.

    Ah… Milton, enquadra isso e põe na parede!

    Se inveja matasse…

  5. KKK
    Se fosse hoje o repórter poderia ser processado.
    Eu já passei por esta, mas não desta forma.
    Eu meus irmãos e outras crianças saímos na extinta folha da tarde, ou da manhã, não lembro, pois tinha as duas na época, fazendo propaganda da Belina. Era lançamento do carro.
    Não ganhamos nenhum sorvete, mas todos ficaram felizes pela aparição.
    Simplesmente pediram para nós ficarmos sentados na traseira do carro com o porta-malas aberto e tiraram as fotos como se fôssemos uma família grande e exploraram isto no marketing do carro.
    Ahhh ganhamos algo sim, uma voltinha de carro na pista de atletismo da Sogipa.

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