Corvos na Chuva, de Ernani Ssó

Corvos na Chuva Ernani SsóQuando falei com Ernani, ele me disse que Corvos na chuva era uma coletânea de contos escritos nos últimos, sei lá, 25 ou 30 anos. Logo fui torcendo o nariz, achei que leria uma série contos desiguais em suas perspectivas, temas ou em qualidade, mas errei. O saldo foi muito, muito positivo. Acho que Ernani passou um bom filtro na coleção e, dos 15 contos do livro, deliciei-me verdadeiramente com uns 12, mas quando não gostei, a coisa foi realmente séria. Cheguei a reler Nana, nenê, O anjo exterminador e Safáris. Estava desconfiado de mim, queria conferir se não estava sonolento ou cansado demais para entender a intenção do autor. Porque o resto é excelente, a começar pelo conto que dá título ao livro e fecha o volume.

Corvos na chuva é uma realização extraordinária. Tem história clara e bem contada — onde todas as revelações vêm na hora certa — sob uma furiosa e sofisticada metalinguagem. Coisa rara. Olha, é arrebatador mesmo. Outros excelentes contos são Primeira comunhão, O rei da sanfona e o curtíssimo As férias do coveiro. Os dois primeiros são interessantes e diferentes abordagens ao amor adolescente. Já o terceiro é para se dobrar de rir. Deve ser da fase inicial e mais humorística de Ssó. Puro humor negro.

Os outros contos revelam um autor com pleno domínio de seus meios. Seu virtuosismo e ritmo dobra-se facilmente às necessidades de cada história. Ou seja, nenhum dos oito contos não citados são esquecíveis e um deles… Bem, vamos escrever algumas frases sobre o ousado Outra missa.

Outra missa é uma nova versão de Missa do galo, obra-prima de Machado de Assis. Ssó passa a narração em primeira pessoa para Conceição. Meus sete leitores são cultos e sabem que, no original, o narrador é o estudante Nogueira. A nova versão é respeitosa e nela as intenções da moça ficam, obviamente, mais claras para o leitor. Afinal, Conceição é o “polo ativo”, por assim dizer, da rarefeita história. Mas a sutileza de mostrar ao leitor o crescendo no qual a sedução ainda é possível (e até provável) e a demonstração de que o momento de decisão tinha passado e não seria mais possível recuperar, só estão no conto de Machado e no de Ssó. Lembro de um antigo livro em que vários autores — Autran Dourado, Lygia Fagundes Telles, Antônio Callado, Osman Lins, Nélia Piñon… mais alguém? — recriaram o conto de Machado e nenhum deles chegou perto desta pequena joia criada por Ernani Ssó.

Recomendo muito.

P.S. — Ernani me esclarece por e-mail: “As férias do coveiro é o penúltimo conto escrito. O último foi o Outra missa“.

Ernani Ssó | Foto: Ramiro Furquim/Sul21.com.br
Ernani Ssó | Foto: Ramiro Furquim/Sul21.com.br

8 comments / Add your comment below

  1. Milton
    Fiquei com vontade de ler o livro depois de ler esse seu texto. Se era a intenção você pode se considerar realizado.
    A foto do autor também está muito, parabéns ao fotógrafo. Esse cara realmente manja de como tirar um retrato.

  2. Recebi essa sugestão da Caminhante para a dedicatória do Ernani para mim:

    “Charlles, mau é antônimo de bom e mal é antônimo de bem. No mais, vai tomar bem no meio do olho do teu cu. Do seu, Ernani Ssó.”

  3. Finalmente puder ler.
    Gostei muito mesmo. Concordo contigo, é uma coletânea homogênea, sem ser monocromática. Os temas do sexo e da morte, principalmente esta, perpassam toda a obra e se encontram no último conto, o excelente “Corvos na Chuva”.
    A morte aparece no livro em muitos de seus avatares. Há cemitérios, fantasmas, anjos, assassinatos, cadáveres, pedaços de cadáveres, memória e esquecimento. E tudo isso permeado com humor na medida certa, mas também crueldade e compaixão. Não é fácil equilibrar tudo isso.
    Mas, como sempre num livro de contos, os leitores têm percepções diferentes do que gostaram ou não. Não gostei tanto de “Primeira Comunhão”. Em compensação, gostei de “Nana, Nenê”.
    Por outro lado, também gostei muito do curto “As férias do coveiro”. Achei “Jogo é Jogo” muito bom, como praticamente todos. “O Anjo Exterminador” parece ser o mais fraco mesmo.
    Agora, o que mais gostei, dentro todos, o que me pegou de jeito foi “Um pedaço de mulher”. É um dos melhores contos que li nos últimos tempos.

Deixe uma resposta para Luís Augusto Farinatti Cancelar resposta