Há um capítulo muito famoso, mais exatamente o oitavo, no Doutor Fausto de Thomas Mann, em que o imaginário professor Kretzschmar dá uma aula sobre o tema “Porque Beethoven não escreveu o terceiro movimento da Sonata Op. 111“.
Talvez não haja verdades absolutas sobre algo tão aberto, criado numa arte que é intangível ar sonoro, mas o resultado é que, relendo o espetacular capítulo, resolvi pensar um pouco sobre uma questão que, se é significativa no romance de Mann, é apenas curiosa fora dele. Houve um corajoso Schindler (jornalista ou músico) que perguntou a Beethoven sobre a razão da inexistência do terceiro movimento. A resposta do compositor foi típica de seu mau humor: “Não tive tempo de escrever um!”. Mann explorou habilmente a história e só quem leu o Dr. Fausto sabe da profunda impressão que a aula de Kretzschmar causou a Adrian Leverkühn, o personagem principal do livro.
Pois o incrível é que li que havia a intenção de um terceiro movimento para esta sonata e que Beethoven parece ter desistido dele. Inclusive no manuscrito onde está o primeiro movimento há uma anotação: segundo movimento – Arietta; terceiro movimento – Presto. Também não encontrei referências de que a Arietta (segundo movimento) fosse algum tipo de adeus, conforme disse o Kretzschmar de Mann. Claro que a invenção dessa despedida foi uma das muitas liberdades poéticas tomadas pelo ultra entusiasmado professor. Está bem, foi a última sonata para piano de Beethoven, porém ao Op. 111 seguiram-se obras até o Op. 137 e dentre estas há todos os últimos quartetos, a Nona Sinfonia (Op. 125), as Variações Diabelli (Op.120) , as Bagatelas (Op. 126), a Missa Solemnis (Op. 123), etc. Ou seja, quando Beethoven escreveu o Op. 111, ele era um compositor em plena atividade e com vários projetos diferentes a desenvolver, não obstante a doença.
Porém, o mais interessante é tentar explicar porque esta obra provoca tanto e a tantas pessoas. A linguagem altamente abstrata que Beethoven alcançou em suas últimas obras nos perturba tanto aqui como nos últimos quartetos. A imaginação de quem criou a Arietta é arrebatadora. O professor Kretzschmar tem toda a razão ao proclamar que tudo aquilo vem de um simples dim-dada, ou seja, de três notas que não despertariam a atenção de nenhum artista comum, e é sobre este quase nada que Beethoven cria uma imensa construção, onde há lugar para a delicadeza, a simplicidade, o sublime e até para a explosão de uma desenfreada dança semelhante ao jazz que os negros inventariam 100 anos depois. Ele sempre foi dado à utilização de temas curtos e afirmativos, mas convenhamos, aquele dim-dada está mais para um balbucio de criança… Não seria isto o que nos surpreende tanto? A música se inicia como um balbucio, depois cresce mui modernamente, quase que por livre associação e depois retorna ao início. Será esta a despedida a que Kretzschmar se refere? Nascimento, vida e morte?
Não reli a aula de Kretzschmar antes de escrever este post. Fazendo rápida e severa autoanálise penso que talvez tenha entrado neste assunto apenas como pretexto para pensar em músicas que não são somente belas, mas demonstrativas de inteligência e engenhosidade. Outras do mesmo gênero seriam os quartetos de Béla Bártok, alguns dos últimos quartetos de Beethoven (principalmente o Op. 132), as Variações Goldberg, a Oferenda Musical de J.S. Bach e outras raríssimas. Não sei se me faço entender, mas acredito que o espírito mozartiano — que adentra muito no campo emocional — não poderia entrar aqui. São obras por demais cerebrais. São as minhas preferidas.
Olá Milton!
Comecei recentemente a leitura do romance de Thomas Mann e confesso que me emocionei de uma maneira incomum ao ler o capítulo VIII, tanto que me apaixonei por completo pela obra e pelo autor.
A despedida que ele se refere em relação à sonata Op. 111 – e veja, esse foi em grande parte o motivo de minha emoção com relação ao capítulo – é na verdade a despedida do cojunto de sonatas de Beethoven (afinal, a Op. 111 é a 32ª e última sonata do grande mestre) e, ainda mais além, a despedida ao gênero da sonata clássica, que atinge seu apogeu fantástico na obra de Beethoven e satura-se quase que por completo, para transfigurar-se no romantismo posteriormente e adquirir parâmetros muito mais idealísticos, programáticos e descritivos e muito menos formais. E é principalmente através de Beethoven que ocorre esse transição (classicismo/romantismo), ou, ao menos, que essa transição se mostra de maneira mais evidente no decorrer de suas obras.
Transcrevendo o trecho em que isso se faz mais evidente, temos:
“Acontecera que a sonata, no segundo, no imenso segundo movimento, havia alcançado seu fim, um fim sem nenhum retorno. E ao referir-se ‘à sonata’ , não pensava apenas nessa, em dó menor, e sim na sonata em si, na forma, no gênero artístico tradicional: ela mesma tinha sido levada ao seu término, cumprira seu destino, além do qual não existia caminho, anulara-se e dissolvera-se, despedira-se; o aceno de adeus dado pelo motivo de ré-sol-sol, melodicamente consolado pelo dó sustenido, era despedida também nesse sentido, despedida grande como a peça, despedida da sonata”.
Logo, não era a intenção do autor referir-se somente à despedida da obra de Beethoven, embora essa já havia atingido seu crepúsculo a essa altura, e as obras que sucederam a Op.111 também façam parte dessa fase.
Beethoven é um compositor de fases, e, se analisarmos todas as sonatas, poderemos constatar 3 fases muito bem delimitadas, cronologicamente no delongo dos Opp., incluindo as últimas cinco sonatas já na terceira e última fase.
Ao ler esse trecho, fiquei arrepiado, e não me contive até ouvir a Op. 111 inteira. Fiquei realmente tocado pela sensibilidade e riqueza da escrita, de fato, Thomas Mann é insurpassável nesse sentido, sinto constantemente suas carícias através das palavras.
Méritos também ao tradutor da obra, que realizou a tarefa com excelência.
Até mais!
Que fique claro que, de fato, desconheço provas concretas de que o segundo movimento seja de fato tal despedida, apenas uma análise dos fatos e uma romantização por parte do autor do livro, hipotetizando a suposição. Pelo menos, isso faz muito sentido e ultrapassa o prosaico.
O fato de Thomas Mann ter criado essa ponte ou mesmo tê-la incluído no romance através de outra fonte qualquer, se é que tal bibliografia existe, revela um profundo conhecimento musical e histórico por parte do autor. Eis aí o motivo de tamanha comoção de minha parte. Genial.
Perfeito, Pedro.