Há uma série cômica de livros ingleses que nos ensina a como blefar culturalmente, a como falar sobre coisas que absolutamente desconhecemos. A série chama-se Manual do Blefador e divide-se em Literatura, Música, Filosofia, Artes Plásticas, etc. No livrinho de Música, o verbete Bach diz o seguinte: se você quiser impressionar um chefe ou uma potencial futura namorada ou namorado que conheça Bach, jamais tente enganá-los, pois a obra do compositor é muito extensa, há muita coisa de alta qualidade — as pessoas tornam-se fanáticas por ele — e não se pode adivinhar sobre o que fanático vai querer falar aquele dia. Então o jeito é preparar o melhor suspiro possível e dizer dramaticamente “Ah…, Bach!”, indicando que está absolutamente sem palavras. Deixe que o outro fale.
Pois é surpreendente o porte e o grau de influência de Bach, assim como sua colocação como pedra fundamental de toda a nossa cultura musical. O mundo criado por Bach foi desenvolvido numa época em que não havia plena noção de obra; ou seja, Bach não se colecionava para servir à posteridade como os autores passaram a fazer logo depois. Ele escrevia para si, para seus alunos e contemporâneos. O que se sabe é que ele gostava das coisas bem feitas e era um brigão — passava grande parte de seu tempo solicitando mais e melhores músicos e procurando empregos mais rendosos. Tinha família enorme, conta-se 20 filhos, dos quais dez passaram pela alta mortalidade infantil do início do século XVIII.
À época, procurar empregos mais rendosos poderia ser um grande problema. Os empregadores consideravam traidores quem fazia isso. Por exemplo, quando Bach recebeu uma oferta do Príncipe Leopold, de Köthen – falaremos dele depois – Bach pediu permissão para deixar Weimar, onde trabalhava. Mas o Duque de Weimar não quis perder os serviços de seu brilhante músico e recusou o pedido. Como Bach insistisse, o Duque não teve dúvidas em colocá-lo na prisão, isso sem nenhum processo. Bach passou trinta dias preso.Porém, ao sair da prisão, em dezembro de 1717, partiu imediatamente para Köthen com sua família já de quatro filhos, sendo nomeado mestre de capela da corte do Príncipe Leopold.
Sabe-se pouco a respeito das opiniões e da vida não profissional de Bach, há apenas um episódio pessoal bem conhecido.
Ele havia feito uma longa viagem de trabalho e ficara dois meses fora. Ao retornar, soube que sua mulher Maria Barbara e dois de seus filhos haviam falecido. Dias depois, Bach limitou-se a escrever no alto de uma partitura uma frase: “Deus, fazei com que seja preservada a alegria que há em mim!”. Pouco tempo depois ele casou de novo, continuou fazendo um filho depois do outro e, como não existiam, na época, equipes de futebol, ele pode criar, em seu próprio seio familiar, uma orquestra de câmara…
Bach costumava ganhar mais que seus colegas, mas nada que fosse espantoso. Ele era respeitado mais como virtuose do que como compositor — Telemann era considerado o maior compositor de sua época. Nosso herói também produzia cerveja em casa, mas este é um tema sobre o qual podemos falar outro dia. Pois ele, com toda esta família e mais alunos, produzia cerveja em enormes quantidades.
Por falar em quantidade, a perfeição e o número de obras que Bach criava e que era rápida e desatentamente fruída pelos habitantes das cidades onde viveu, era inacreditável. Tentaremos dar dois exemplos: (1) Suas obras completas, presentes na coleção Bach 2000, estão gravadas em 153 CDs. Grosso modo, 153 CDs são 153 horas ou 6 dias e nove horas ininterruptas de música… original.
Mas, como se não bastasse (2), ele parecia divertir-se criando dificuldades adicionais em seus trabalhos. Muitas vezes o número de compassos de uma ária de Cantata ou Paixão, corresponde ao capítulo da Bíblia onde está o texto daquilo que está sendo cantado. Em seus temas também aparecem palavras — pois a notação alemã (não apenas a alemã) é feita com letras. Ou seja, pode-se dizer que ele sobrava…
E imaginem que durante boa parte de sua vida Bach escrevia uma Cantata por semana. Em média, cada uma tem 20 minutos de música. Tal cota, estabelecida por contrato, tornava impossível qualquer “bloqueio criativo”. Pensem que ele tinha que escrever a música, copiar as partes e ainda ensaiar para apresentar domingo, todo domingo.
Poucas obras musicais são tão amadas e interpretadas como os seis Concertos de Brandenburgo. Tais concertos exibem uma face mais leve do gênio de Bach e, na verdade, fizeram parte de um pedido de emprego. Em 1720, aos 35 anos, Bach parecia feliz em Köthen. Ganhava adequadamente, seu patrono não só amava a música como era um músico competente.
O príncipe Leopoldo de Köthen, parte do Sacro Império Romano Germânico, gastava boa parte de sua renda para manter uma orquestra privada de 18 membros e convidava artistas viajantes para tocar com eles. A orquestra era excelente, com alguns dos melhores músicos daquela parte da atual Alemanha. Como calvinista, o Príncipe Leopoldo utilizava pouca música religiosa, liberando Bach para compor e ensaiar música instrumental. No entanto, o relacionamento pode ter azedado quando Bach solicitou a compra de um órgão. O pedido foi rejeitado. E vocês sabem como Bach era brigão.
Então, em 1721, Bach apresentou-se ao Margrave (comandante militar) Christian Ludwig de Brandenburgo. Ele foi com um manuscrito encadernado contendo seis concertos para orquestra de câmara com base nos Concertos Grossos italianos. Não há registro de que o Margrave tenha sequer agradecido a Bach pelo trabalho. Ele jamais imaginaria que aquele caderno — mais tarde chamado de Concertos de Brandenburgo — se tornaria uma referência da música barroca e ainda teria o poder de mover as pessoas quase três séculos mais tarde.
Em outras palavras, Bach escreveu os Brandenburgo como uma espécie de demonstração de suas qualidades, um currículo para um novo emprego. A tentativa deu errado. O Margrave de Brandenburgo nunca respondeu ao compositor e as peças foram abandonadas, sendo vendidas por uma ninharia após sua morte. Mesmo rejeitados, os Concertos de Brandenburgo sobreviveram em seus manuscritos originais, aqueles mesmos que tinham sido enviados para o Margrave de Brandenburgo no final de março de 1721. O título que Bach lhes dera era o de: “Seis Concertos para diversos instrumentos”).
Como foram encontrados? Ora, no inventário do Margrave dentro de um lote maior de 177 concertos de “obras mais importantes” de Valentini, Venturini e Brescianello.
Logo após a morte de Bach, sua música instrumental foi esquecida. Só sua música religiosa permaneceu, ainda que pouco interpretada.
Os Concertos de Brandenburgo são destaques de um dos períodos mais felizes e mais produtivos da vida de Bach. É provável que o próprio Bach tenha dirigido as primeiras apresentações em Köthen. O nome pelo qual a obra é hoje conhecida só apareceu 150 anos mais tarde, quando o biógrafo de Bach, Philipp Spitta, chamou-os assim pela primeira vez. O nome pegou.
Bach pensava nos concertos como um conjunto separado de peças. Cada um dos seis requer uma combinação diferente de instrumentos, assim como solistas altamente qualificados. O Margrave tinha sua própria orquestra em Berlim, mas era um grupo de executantes em sua maioria medíocre. Todas as evidências sugerem que estes concertos adequavam-se mais aos talentos dos músicos de Köthen.
Joshua Rifkin oferece uma explicação para que os Brandenburgo fosse ignorados por quem os recebera: “Como iria acontecer tantas vezes em sua vida, o gênio de Bach criava obras acima das capacidades dos músicos comuns e por isso eram esquecidas. Só mesmo em Coethen poderiam ser interpretadas!”. Com efeito, os Concertos permaneceram desconhecidos por meia dúzia de gerações, até que foram finalmente publicados em 1850, em comemoração ao centenário da morte de Bach. Mesmo assim, sua popularidade teria de esperar pelos toca-discos.
Os Concertos de Brandenburgo talvez sejam um dos maiores exemplos do pensamento criativo de Bach, pois compreende estilo contrapontístico, variedade de instrumentação, complexa estrutura interna e enorme profundidade. Eles não se destinavam a deslumbrar teóricos ou a desafiar intelectuais, mas sim causar puro prazer a músicos e ouvintes.
O concerto era a forma mais popular de música instrumental durante o barroco tardio, o principal veículo de expressão para os sentimentos, papel depois assumido pela sinfonia. Cada Brandenburgo segue a convenção do concerto grosso, em que dois ou mais instrumentos solo são destacados de um conjunto orquestral. Os concertos também observam a convenção de três movimentos, rápido-lento-rápido.
O único Concerto em quatro movimentos é o primeiro, ao qual foi adicionada uma dança final. Sua orquestração é incomum, podendo quase ser chamado de uma sinfonia. Talvez Bach quisesse dar um começo forte e rústico, destinado a alguém preguiçoso que fosse julgar o conjunto apenas por sua abertura.
Como dissemos, a inventividade de Bach também reside nas curiosas combinações instrumentais: no quarto concerto, por exemplo, o grupo habitual de cordas e contínuo acompanham o violino solo e duas flautas em um discurso musical brilhante. No quinto, Bach faz uso de uma flauta transversal, de violino e do cravo, mas o que resulta parece ser um antecessor dos grandes concertos para teclado. Ouçam, para exemplo, sua elaboradíssima cadenza do primeiro movimento.
Os outros concertos – a partir do N 2 – estão mais próximos do modelo de concerto grosso padrão. Para o meu gosto, apesar de suas qualidades, o pesado Concerto Nº 1 é o patinho feio da coleção.
É a partir do segundo — para violino, flauta, oboé e trompete — que a leveza, a ousadia e a invenção tomam conta do conjunto, indo até o final. O concerto Nº 3 for escrito para 3 violinos, 3 violas, 3 violoncelos e contínuo, formado normalmente por cravo e contrabaixo. O Nº 4 foi escrito para violino e duas flautas. O 5º para flauta transversa, violino e cravo. O 6º é uma festa para as violas. Nem tem violinos.
Sem prejuízo dos outros concertos do ciclo, faço uma menção àquele que me trouxe para “dentro” da música erudita: o terceiro, que foi projetado para três grupos instrumentais que consistem em três violinos, três violas e três violoncelos, mais baixo contínuo. Escrito em três movimentos, com o segundo sendo um passeio no campo da improvisação, tem no primeiro e terceiro movimentos fascinantes e alegres temas e contrapontos, verdadeira exposição do virtuosismo de Bach como compositor. Para mim, ele é “o concerto barroco por excelência”.
(Sim, eu estava no banheiro quando meu pai colocou a agulha do toca-discos no começo do Concerto Nº 3. Saí de lá aos gritos, perguntando o que era aquilo. Nunca me recuperei).
(Em minha cabeça, esses concertos são das peças mais tocadas. Muitas vezes caminho pelas ruas assobiando-as. E tenho a melhor das convivências com elas).
Como seríamos mais pobres se estes concertos tivessem se perdido, como tanta coisa o foi.
Parabéns Milton Ribeiro! Excelente texto! Vou já, já atrás do concerto n. 3 para ouví-la. Uma informação importante: a Igreja de São Thomas em Leipzig já está vendendo ingressos para a Semana Santa do próximo ano (dias 13 e 14 de abril) será apresentada a Paixão Segundo Sāo João. Os ingressos para o dia 14 jå estão esgotados. Já reservei para o dia 13. Já estou vivendo em estado de graça por antecipação.
Estando no banheiro e ter ouvido pela 1ª vez o 3º é a glória, uma vida que já se justifica!
Cada um deles tem sua beleza e grandeza própria, mas apesar do trompete, sempre preferi o 6, depois o 3, o 5, o 2, 4 e 1, nessa ordem rs. O autor do livro Uma noite no palácio da razão – que recomendo fortemente – James Gaines, aponta no quinto concerto um curioso sentido sócio-simbólico. O cravo, subalterno entre os subalternos, de repente se ergue em meio à orquestra e se entroniza como solista. Algo a se pensar.
A alegria contagiante e quase infantil do numero 4 (flauta barroca/Bach = supimpa).
Boa-noite Milton
O seu texto sobre os 6 concertos para diversos instrumentos é interessante, mas talvez devesse rever o das comumente chamadas Variações Goldberg. Desde logo no nome que, como saberá, está longe do original de Bach, que é, Clavier-Ubung bestehend in einer Aria mit verschiedenen Veränderungen vors Clavicimbal mit 2 Manualen, portanto, exercícios para tecla, compreendendo uma ária com diferentes variações, para cravo com dois teclados. E, se não me engano, foi mais uma vez Spitta quem no fervor do romantismo desvirtuou o original de Bach, sendo que, para Bach, como para outros autores da época, o que contava era o valor substantivo da peça e não o seu nome, este, meramente referenciativo.
Já o texto de Forkel me parece irrelevante para sustentar os objectivos/origens do BWV 988. Forkel era algo populista (como agora se usa dizer) e especulativo. Pouco estudou os originais (que eram poucos e pouco conhecidos à época), nem há memória de alguma vez ter viajado de Göttingen a Leipzig. Forkel conhecia sobretudo o que veio de Friedemann e de Carl Philipp (ambos seus conhecidos), sendo principalmente de Carl que recebeu documentos escritos para a sua biografia – e lendo-se a biografia de Forkel e as cartas que Carl lhe enviou, rapidamente se descobrem longos trechos EXACTAMENTE IGUAIS, até na pontuação.
Aparentemente, só Forkel defende a teoria de Goldberg, e não menciona fontes – embora mencionar “fontes” não fosse à época habitual.
Ninguém devidamente informado acreditará no disparate do BWV 988 como destinado ao relativamente incapaz Johann Gottlieb Goldberg. Na verdade, Bach destinou a “Ária” a uma parte inteira do seu Clavier-Übung, a 4ª parte. O que desde logo representa uma valorização do trabalho. Sendo que as quatro partes da grande colecção foram por Bach designadas para os mais sérios e comerciais motivos.
É evidente que o anterior não exclui uma oferenda para Dresden, até porque Goldberg (então com 14 anos) era protegido do amigo de Bach, barão Herman Karl von Keyserlingk; e Bach sempre quis trabalhar na capital do eleitorado; o que cerca de 1741 se enquadrava na intenção.
Mas mesmo que Bach tivesse enviado uma cópia para Dresden, o que ela por lá teria provocado era insónias, em vez de sono.
Mas a brilhante obra foi com certeza composta originalmente com propósitos diferentes, e bem mais próximos das intenções de Bach em prol da música de qualidade. Noção que afinal acaba por coordenar com os 6 concertos para diversos instrumentos, ou seja, aquilo que no todo ou na parte já existia antes de ser oferecido.
Nota para referir que, em Köthen, o que determinou a qualidade da orquestra foi sobretudo o gosto de Leopold pela música, associado ao dinheiro que durante muito tempo teve disponível para o efeito. Também por isso pôde ir buscar o descontente Konzertmeister de Weimar para o tornar num muitíssimo bem-pago Kapellmeister em Köthen. E não só Bach seria bem-pago, Anna Magdalena Wilcke, quando se tornou A. M. Bach, ascenderia igualmente ao topo dos mais bem pagos, logo abaixo do marido e de outro elemento. E quando eram precisos mais solistas vocais para as efemérides especiais (Ano Novo e aniversário de Leopold), Bach sempre escolhia gente de fora ultra-bem-paga – como provam alguns recibos sobreviventes. O dispositivo musical de Leopold consistia sobretudo em instrumentistas, e para tocarem no castelo, visto a música coral concertante não ser usada nas igrejas devido à linha calvinista da corte. De resto, o trabalho de Bach circunscrevia-se ao castelo e, aqui, a música coral ocorria principalmente nas duas ocasiões mencionadas.
Abraços,
Paulo Jorge Cruz
Boa noite, caríssimo maestro.
Sou escritor de periódicos na Noruega e gostaria de fazer menção de seu brilhante artigo e demais trabalhos.
Creio que será uma vitrine com holofotes mundiais sobre seus talentos.
Podemos fazer referência cruzada, um do outro, o que multiplica as visualizações.
Eu gostaria de uma conversa contigo.
Como não uso redes sociais, o meio mais fácil é via Whatsapp: 11-973924436.
Forte abraço e sucesso!
Seu servo e aprendiz,
Dan Berg.
LAUDATE DOMINUM