Os Concertos de Brandenburgo, de Johann Sebastian Bach

Os Concertos de Brandenburgo, de Johann Sebastian Bach

Há uma série cômica de livros ingleses que nos ensina a como blefar culturalmente, a como falar sobre coisas que absolutamente desconhecemos. A série chama-se Manual do Blefador e divide-se em Literatura, Música, Filosofia, Artes Plásticas, etc. No livrinho de Música, o verbete Bach diz o seguinte: se você quiser impressionar um chefe ou uma potencial futura namorada ou namorado que conheça Bach, jamais tente enganá-los, pois a obra do compositor é muito extensa, há muita coisa de alta qualidade — as pessoas tornam-se fanáticas por ele — e não se pode adivinhar sobre o que fanático vai querer falar aquele dia. Então o jeito é preparar o melhor suspiro possível e dizer dramaticamente “Ah…, Bach!”, indicando que está absolutamente sem palavras. Deixe que o outro fale.

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Pois é surpreendente o porte e o grau de influência de Bach, assim como sua colocação como pedra fundamental de toda a nossa cultura musical. O mundo criado por Bach foi desenvolvido numa época em que não havia plena noção de obra; ou seja, Bach não se colecionava para servir à posteridade como os autores passaram a fazer logo depois. Ele escrevia para si, para seus alunos e contemporâneos. O que se sabe é que ele gostava das coisas bem feitas e era um brigão — passava grande parte de seu tempo solicitando mais e melhores músicos e procurando empregos mais rendosos. Tinha família enorme, conta-se 20 filhos, dos quais dez passaram pela alta mortalidade infantil do início do século XVIII.

À época, procurar empregos mais rendosos poderia ser um grande problema. Os empregadores consideravam traidores quem fazia isso. Por exemplo, quando Bach recebeu uma oferta do Príncipe Leopold, de Köthen – falaremos dele depois – Bach pediu permissão para deixar Weimar, onde trabalhava. Mas o Duque de Weimar não quis perder os serviços de seu brilhante músico e recusou o pedido. Como Bach insistisse, o Duque não teve dúvidas em colocá-lo na prisão, isso sem nenhum processo. Bach passou trinta dias preso.Porém, ao sair da prisão, em dezembro de 1717, partiu imediatamente para Köthen com sua família já de quatro filhos, sendo nomeado mestre de capela da corte do Príncipe Leopold.

Sabe-se pouco a respeito das opiniões e da vida não profissional de Bach, há apenas um episódio pessoal bem conhecido.

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Ele havia feito uma longa viagem de trabalho e ficara dois meses fora. Ao retornar, soube que sua mulher Maria Barbara e dois de seus filhos haviam falecido. Dias depois, Bach limitou-se a escrever no alto de uma partitura uma frase: “Deus, fazei com que seja preservada a alegria que há em mim!”. Pouco tempo depois ele casou de novo, continuou fazendo um filho depois do outro e, como não existiam, na época, equipes de futebol, ele pode criar, em seu próprio seio familiar, uma orquestra de câmara…

Bach costumava ganhar mais que seus colegas, mas nada que fosse espantoso. Ele era respeitado mais como virtuose do que como compositor — Telemann era considerado o maior compositor de sua época. Nosso herói também produzia cerveja em casa, mas este é um tema sobre o qual podemos falar outro dia. Pois ele, com toda esta família e mais alunos, produzia cerveja em enormes quantidades.

Príncipe Leopoldo de Köthen
Príncipe Leopoldo de Köthen

Por falar em quantidade, a perfeição e o número de obras que Bach criava e que era rápida e desatentamente fruída pelos habitantes das cidades onde viveu, era inacreditável. Tentaremos dar dois exemplos: (1) Suas obras completas, presentes na coleção Bach 2000, estão gravadas em 153 CDs. Grosso modo, 153 CDs são 153 horas ou 6 dias e nove horas ininterruptas de música… original.

Mas, como se não bastasse (2), ele parecia divertir-se criando dificuldades adicionais em seus trabalhos. Muitas vezes o número de compassos de uma ária de Cantata ou Paixão, corresponde ao capítulo da Bíblia onde está o texto daquilo que está sendo cantado. Em seus temas também aparecem palavras — pois a notação alemã (não apenas a alemã) é feita com letras. Ou seja, pode-se dizer que ele sobrava…

E imaginem que durante boa parte de sua vida Bach escrevia uma Cantata por semana. Em média, cada uma tem 20 minutos de música. Tal cota, estabelecida por contrato, tornava impossível qualquer “bloqueio criativo”. Pensem que ele tinha que escrever a música, copiar as partes e ainda ensaiar para apresentar domingo, todo domingo.

A capa dos concertos dedicados ao Margrave de Brandenburgo
A capa dos concertos dedicados ao Margrave de Brandenburgo

Poucas obras musicais são tão amadas e interpretadas como os seis Concertos de Brandenburgo. Tais concertos exibem uma face mais leve do gênio de Bach e, na verdade, fizeram parte de um pedido de emprego. Em 1720, aos 35 anos, Bach parecia feliz em Köthen. Ganhava adequadamente, seu patrono não só amava a música como era um músico competente.

O príncipe Leopoldo de Köthen, parte do Sacro Império Romano Germânico, gastava boa parte de sua renda para manter uma orquestra privada de 18 membros e convidava artistas viajantes para tocar com eles. A orquestra era excelente, com alguns dos melhores músicos daquela parte da atual Alemanha. Como calvinista, o Príncipe Leopoldo utilizava pouca música religiosa, liberando Bach para compor e ensaiar música instrumental. No entanto, o relacionamento pode ter azedado quando Bach solicitou a compra de um órgão. O pedido foi rejeitado. E vocês sabem como Bach era brigão.

O Margrave de Brandenburgo Christian Ludwig
O Margrave de Brandenburgo Christian Ludwig

Então, em 1721, Bach apresentou-se ao Margrave (comandante militar) Christian Ludwig de Brandenburgo. Ele foi com um manuscrito encadernado contendo seis concertos para orquestra de câmara com base nos Concertos Grossos italianos. Não há registro de que o Margrave tenha sequer agradecido a Bach pelo trabalho. Ele jamais imaginaria que aquele caderno — mais tarde chamado de Concertos de Brandenburgo — se tornaria uma referência da música barroca e ainda teria o poder de mover as pessoas quase três séculos mais tarde.

Em outras palavras, Bach escreveu os Brandenburgo como uma espécie de demonstração de suas qualidades, um currículo para um novo emprego. A tentativa deu errado. O Margrave de Brandenburgo nunca respondeu ao compositor e as peças foram abandonadas, sendo vendidas por uma ninharia após sua morte. Mesmo rejeitados, os Concertos de Brandenburgo sobreviveram em seus manuscritos originais, aqueles mesmos que tinham sido enviados para o Margrave de Brandenburgo no final de março de 1721. O título que Bach lhes dera era o de: “Seis Concertos para diversos instrumentos”).

Como foram encontrados? Ora, no inventário do Margrave dentro de um lote maior de 177 concertos de “obras mais importantes” de Valentini, Venturini e Brescianello.

Logo após a morte de Bach, sua música instrumental foi esquecida. Só sua música religiosa permaneceu, ainda que pouco interpretada.

Os Concertos de Brandenburgo são destaques de um dos períodos mais felizes e mais produtivos da vida de Bach. É provável que o próprio Bach tenha dirigido as primeiras apresentações em Köthen. O nome pelo qual a obra é hoje conhecida só apareceu 150 anos mais tarde, quando o biógrafo de Bach, Philipp Spitta, chamou-os assim pela primeira vez. O nome pegou.

Bach pensava nos concertos como um conjunto separado de peças. Cada um dos seis requer uma combinação diferente de instrumentos, assim como solistas altamente qualificados. O Margrave tinha sua própria orquestra em Berlim, mas era um grupo de executantes em sua maioria medíocre. Todas as evidências sugerem que estes concertos adequavam-se mais aos talentos dos músicos de Köthen.

Joshua Rifkin oferece uma explicação para que os Brandenburgo fosse ignorados por quem os recebera: “Como iria acontecer tantas vezes em sua vida, o gênio de Bach criava obras acima das capacidades dos músicos comuns e por isso eram esquecidas. Só mesmo em Coethen poderiam ser interpretadas!”. Com efeito, os Concertos permaneceram desconhecidos por meia dúzia de gerações, até que foram finalmente publicados em 1850, em comemoração ao centenário da morte de Bach. Mesmo assim, sua popularidade teria de esperar pelos toca-discos.

Os Concertos de Brandenburgo talvez sejam um dos maiores exemplos do pensamento criativo de Bach, pois compreende estilo contrapontístico, variedade de instrumentação, complexa estrutura interna e enorme profundidade. Eles não se destinavam a deslumbrar teóricos ou a desafiar intelectuais, mas sim causar puro prazer a músicos e ouvintes.

Manuscrito do terceiro Concerto de Brandeburgo de Bach
Manuscrito do terceiro Concerto de Brandeburgo de Bach

O concerto era a forma mais popular de música instrumental durante o barroco tardio, o principal veículo de expressão para os sentimentos, papel depois assumido pela sinfonia. Cada Brandenburgo segue a convenção do concerto grosso, em que dois ou mais instrumentos solo são destacados de um conjunto orquestral. Os concertos também observam a convenção de três movimentos, rápido-lento-rápido.

O único Concerto em quatro movimentos é o primeiro, ao qual foi adicionada uma dança final. Sua orquestração é incomum, podendo quase ser chamado de uma sinfonia. Talvez Bach quisesse dar um começo forte e rústico, destinado a alguém preguiçoso que fosse julgar o conjunto apenas por sua abertura.

Como dissemos, a inventividade de Bach também reside nas curiosas combinações instrumentais: no quarto concerto, por exemplo, o grupo habitual de cordas e contínuo acompanham o violino solo e duas flautas em um discurso musical brilhante. No quinto, Bach faz uso de uma flauta transversal, de violino e do cravo, mas o que resulta parece ser um antecessor dos grandes concertos para teclado. Ouçam, para exemplo, sua elaboradíssima cadenza do primeiro movimento.

Os outros concertos – a partir do N 2 – estão mais próximos do modelo de concerto grosso padrão. Para o meu gosto, apesar de suas qualidades, o pesado Concerto Nº 1 é o patinho feio da coleção.

É a partir do segundo — para violino, flauta, oboé e trompete — que a leveza, a ousadia e a invenção tomam conta do conjunto, indo até o final. O concerto Nº 3 for escrito para 3 violinos, 3 violas, 3 violoncelos e contínuo, formado normalmente por cravo e contrabaixo. O Nº 4 foi escrito para violino e duas flautas. O 5º para flauta transversa, violino e cravo. O 6º é uma festa para as violas. Nem tem violinos.

Sem prejuízo dos outros concertos do ciclo, faço uma menção àquele que me trouxe para “dentro” da música erudita: o terceiro, que foi projetado para três grupos instrumentais que consistem em três violinos, três violas e três violoncelos, mais baixo contínuo. Escrito em três movimentos, com o segundo sendo um passeio no campo da improvisação, tem no primeiro e terceiro movimentos fascinantes e alegres temas e contrapontos, verdadeira exposição do virtuosismo de Bach como compositor. Para mim, ele é “o concerto barroco por excelência”.

(Sim, eu estava no banheiro quando meu pai colocou a agulha do toca-discos no começo do Concerto Nº 3. Saí de lá aos gritos, perguntando o que era aquilo. Nunca me recuperei).

(Em minha cabeça, esses concertos são das peças mais tocadas. Muitas vezes caminho pelas ruas assobiando-as. E tenho a melhor das convivências com elas).

As 100 obras essenciais da música erudita segundo a Bravo! ou Vendendo ignorância

Sou um sujeito que está sempre rindo. Morro um pouco a cada dia, mas abstraio-me autenticamente do fato. Então, às vezes quero escrever uma coisa bem alegre ou criativa, esquecendo a Mônica Leal e a Pâmela, mas não dá. Me chamam de volta para que eu meta o pau.

A lista de cem obras essenciais da música erudita da revista Bravo! parece ter sido feita… Sei lá, quem sabe por ocorrências no Google? Proponho um acerto com você, caro leitor. Acho que você concorda que é fácil fazer listas e, quanto mais longas forem, mais fácil fica, certo? Se a lista contiver alguns absurdos, você diz que é questão de gosto e fim. Pois a Bravo! conseguiu fazer a lista errada, aquela que demonstra claramente que seus autores não têm a menor vivência na audição de obras do gênero erudito. Essa lista não é questão de gosto, é questão de polícia.

Moacy Cirne, neste post, já havia destruído a relação da e com a Bravo! utilizando como arma apenas uma obra ausente, as Vésperas da Virgem, de Claudio Monteverdi. Bastou. Trata-se de uma omissão que realmente desqualifica toda a lista. Tem razão a maior autoridade brasileira das histórias em quadrinhos, uma lista de uma centena sem as Vésperas é como deixar de fora Grande Sertão: Veredas ou Cidadão Kane em listas análogas de romances brasileiros ou cinematográfica. Mas não apenas o Moacy merece divertir-se, eu também! Analisarei uma poucas coisinhas… HÁ absurdos inacreditáveis na lista.

82º) Concerto para Oboé, de Mozart: é óbvio que o autor da lista não fez teste de bafômetro. Por favor, meu caro ouvinte, ouça este concerto e depois a Sinfonia Concertante para Violino e Viola, ou quaisquer dos Concertos para Piano de 23 a 27 do mesmo Mozart. Um bêbado, sem dúvida.

71º) Tocata e fuga em ré menor: aqui, tenho a primeira convulsão séria. Obra menor de Bach, o alcoolizado autor da lista deixou de FORA TODOS OS SEIS CONCERTOS DE BRANDENBURGO!!!

57º e 83º) A Morte e a Donzela e Trio Op. 100, de Schubert: são obras excelentes, mas esquecer o Quinteto de Schubert é embriaguez de cair deitado.

49º) Missa em Si Menor, de Bach: aqui, a piada foi a de colocá-la atrás da Sinfonia Fantástica de Berlioz. Não, a piada foi muito maior. Há certo consenso que a Missa seria uma espécie de Cidadão Kane da história da música, ou seja, que seria estaria no topo de todas as listas, mas o chumbeado autor coloca-a lá no meio…

11º) Dichterliebe, de Schumann: HAHAHAHAHA, os lieder de Schubert ficaram de fora — exceção feita aos Winterreise — e o Quarteto e Quinteto de Schumann também, mas essas cançõeszinhas de Schumann, simplesinhas e humildes, quase chegaram ao Top 10 do borracho.

4º) O cachaceiro botou a Sagração da Primavera, de Stravinski, em quarto lugar. Será necessário um alongamento muito severo para que alguém razoável admita que a obra esteja colocada no Top 10. Muuuuuito alongamento.

13º) Mais risadas, um único quarteto de cordas de Beethoven está na lista e não é o 130, nem o 132, nem a Grosse Fugue, Op. 133. Estranhamente o pinguço acertou bem onde não devia: no meio. O Op. 131 é belo com seus sete movimentos e um Andante avassalador, mas convenhamos.

84º) Questão de gosto: a Pastoral não poderia estar nesta lista. Mas o bebum a trouxe.

58º) O que faz Dvorak aqui? Hein, beberrão?

38º) Sinfonia “Inacabada”, de Schubert: essa entrou no carteiraço. E a Nona, conhecida como “A Grande”, biriteiro? Em que ela é menor? É por ter sido “Acabada”?

22º) Quadros de uma Exposição, de Mussorgski, é a vigésima-segunda obra essencial de todos os tempos do ébrio…

48º) Réquiem, de Verdi: é uma surpresa encontrá-lo aqui, mas já que o gambá o conhecia, por que deixou-o apenas em 48º? Merecia o Top 20!

95º) 4`33, de Cage: bem, se A Sagração estava em quarto pela importância histórica, esta obra de Cage deveria estar nas imediações, junto de algo de Stockhausen, um dos grandes ausentes da lista, pau d`água.

93º) Intermezzo, Op. 118, de Brahms: a imensa música de câmara — sonatas para violoncelo e clarinete, trios, septetos — de Brahms está inteiramente ausente da lista… Por quê, meu Deus, o esponja escolheu isto?

76º) Carmina Burana, de Orff: sem comentários. Viu, chupa-rolha?

É absolutamente necessário rir de uma publicação dessas, senão vêm as dores de cabeça, úlceras, etc. E citei apenas os primeiros absurdos que me ocorreram, nem explorei os despautérios cometidos ao barroco. Não me perguntem onde vai parar um jornalismo cultural que orienta assim os jovens e inexperientes. O cara que fez esta lista estava desnorteado, aturdido. Menos mal que o blog P.Q.P. Bach recebe 60.000 visitas por mês. E está à distância de um clique. E não custa nada.