Ela vai com sua mãe e o irmão para uma realidade paralela. À princípio, ficam deslumbrados com a perfeição e beleza daquele mundo; mas logo notam que tudo ali é falso. O leite é de tinta, as bolachas são de borracha, o telefone é caramelado e comestível. Logo ficam entediados e querem sair.
Só que é complicado. É necessário entrar por um buraco, dar uma cambalhota, entrar por um segundo buraco para afinal cair na cartola que os levará ao mundo real. Eles decidem ir e o irmão gentilmente dá-lhe a chance de ir na frente. Ela vai; porém, no segundo buraco, depois que a cabeça e o tronco já passaram, ela é presa pelas pernas. O buraco fecha mais e mais. Dói. Ela acorda.
Sonho 2
Ela está numa competição de hipismo e dirige-se a um obstáculo. O cavalo salta e, quando cai do outro lado, não há chão. Eles caem longamente e, não suportando mais a angústia, ela solta-se do animal. Então ela vê o chão aproximar-se. Acorda.
Hoje eu tive um sonho. Estava pintando o quadro abaixo. Eu era Pieter Bruegel, o Velho e pintava em meu atelier A Parábola dos Cegos, certo? Há mais: estava emocionadíssimo porque um dos cegos — qual seria? — era meu pai e era do maneira abaixo que ele se deslocava com seus pares. Um negócio desesperador. Mesmo! Eu pintava e chorava.
Assim como para a Caminhante, Ernesto Sábato e José Saramago,a cegueira e suas metáforas, mas principalmente a cegueira sem metáfora, é algo que assusta e causa perplexidade, pena, medo, profundo interesse, tudo.
Quando acordei, a imagem da obra-prima de Bruegel foi substituída pela da galinha abaixo, vista ontem no Google Images. Bem, sei lá.
P.S. — Meu pai, morto em 1993, nunca teve deficiência visual.
Eu tinha onze anos e achava lindo aquilo. A Apolo 11 levava o Módulo Lunar Eagle e este pousaria no Mar da Tranquilidade. Era o mês de julho de 1969 e nosso professor de Ciências explicou tudo direitinho; eu sabia que não havia água por lá mas o nome da região lunar onde a nave desceria — o tal Mar da Tranquilidade — foi das primeiras poesias involuntárias que ouvi. O Mare Tranquillitatis foi imaginado por mim sob várias formas. Como sabia que a gravidade de lá era menor que a nossa, via a água daquele mar bater em minhas pernas salpicando-me de pingos que subiam por metros e metros. Havia peixes que saíam d`água em vôos espetaculares. Eu pulava as ondas em direção ao enorme planeta sobre mim e via o mar metros abaixo, sabendo que a presença da grande esfera garantia saltos maiores e pousos serenos. Enquanto subia e descia, fazia piruetas sem som no ar, acompanhado de pingos salgados nos quais brincava de dar tapinhas.
Num daqueles dias, dei de cara com um livro na biblioteca de meu pai: Mar de Histórias. Abri: a expressão que dá nome à coleção vem de uma antiga coletânea da Índia, do século XI; é a tradução do nome sânscrito Kathâsaritsâgara, que significa “mar formado pelos rios de histórias”. Um verdadeiro oceano de narrativas, muitas delas célebres, etc. Gostei do livro, mas nada como o outro mar. Quando veio o dia 20, assisti Neil Armstrong caminhar na Lua. Dei só uma olhadinha e voltei para o quarto. Não vi graça nenhuma.
Mas hoje, mais de quarenta anos depois, voltei a sonhar com o lento Mar da Tranquilidade. Permanece lindo.
Estava em casa, lendo numa mesa de fórmica branca, daquelas que se faziam anos 60 e 70, quando Shakespeare chegou. Em meu sonho, ele falava um português machadiano. Sentou-se tranquilamente em meu antigo quarto com aquela mesma cara das pinturas, só que um pouco mais corado, e declarou que gostaria que eu começasse uma carreira de poeta. Propôs-se a ser meu ghost writer.
– Aliás – riu-se Shake -, já o sou.
Sorri e disse-lhe que não lia muita poesia e que era incapaz de um verso, mas que concordava com o esquema. (Um belo oportunista ou um homem preocupado em divulgar altíssima cultura? O primeiro, certamente.) Então, ele passou a me ditar os poemas mais sublimes e perfeitos, dos quais não lembro, é claro. Só lembro da profunda emoção que me causaram e da dificuldade que tinha para escrever com o lápis na fórmica, pois as lágrimas me atrapalhavam. Enquanto fungava, ouvia e copiava a maior e mais inédita das obras. Às vezes, perguntava-lhe onde deveria mudar de linha ou onde acabava a estrofe, essas coisas técnicas. Minha caligrafia era belíssima. (Minha letra é horrorosa.)
Depois de muitos sonetos – a mesa de meu sonho era imensa -, meu novo amigo cansou e pediu-me para levá-lo até a porta. Enquanto o acompanhava, ele garantiu que voltaria.
– Voltarei! – falou ele bem alto, para minha alegria.
Não parecia um espectro. Quando voltei, nossa empregada estava de joelhos sobre a mesa, esfregando-a com produtos de limpeza bastante eficientes. (Não vi suas marcas, então não posso indicá-los.) Vi a mesa branca, ainda úmida, e caí em abissal desespero. Acordei apavorado. Não é sempre que se perde um ghost desses.
Seu rosto era exatamente este, só que, como já disse, mais corado.
Quando eu era pequeno, gostava do Natal. Na verdade, adorava, claro, porque meus pais nos enchiam de presentes. A festa era diferente, era matinal. A gente ia dormir pensando naquilo que o Papai Noel nos deixaria durante a noite e, quando acordávamos, nossa, ele tinha adivinhado nossos mais profundos desejos! Lembro especialmente de quando ganhei um autorama, mas isso é outro papo.
Depois, meu esfriamento em relação à data chegou a grau zero. Ainda na pré-adolescência, sem ler nada e sem maior influência, tornei-me ateu, um ateu natural e a data, que originariamente é uma festa pagã, passou a me irritar em razão de seu substrato religioso. Acho que todos os meus sete leitores sabem que a origem da festa não guarda o menor ranço de cristianismo: é o Solis Invictus (Sol Invencível), o Solstício de inverno. Era uma enorme festança que acontecia na noite mais longa do hemisfério norte para comemorar o recomeço, pois dali por diante os dias seriam mais longos, pouco a pouco mais quentes, e haveria a possibilidade de novas e fartas colheitas. Uma belíssima data do hemisfério norte, uma data bem realista que nos foi tomada pela igreja. De certa forma, era mais ou menos (eu escrevi mais ou menos) o que é nossa virada de ano, com suas renovadas esperanças, resoluções e renovação.
Depois, quando vieram as crianças, cheguei a me vestir de Papai Noel. No segundo ano, o Bernardo ficou me olhando como quem diz “Mas esse aí é o meu pai” e, perguntado se não era no dia seguinte, neguei e desisti de novas tentativas. A Bárbara deve ter aproveitado menos dessas festinhas. Também pudera! Ela, com três anos de idade e já sob a influência do irmão três anos mais velho, costumava observar aos coleguinhas de maternal que nem Deus nem Papai Noel existiam, fato que a deixava extremamente popular entre seus amiguinhos e objeto de desconfiança dos outros pais. Quem seria aquela crespinha louca, de três anos, que fazia proselitismo ateu num maternal?
Hoje, nem dou bola para o Natal, mas acho que está na hora dos movimentos ateus serem menos mal humorados. A data é nossa. Simples assim. Por exemplo, o presidente da Atea (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, da qual sou sócio), Daniel Sottomaior, comemora tranquilamente e não se incomoda com a data. Ele tem uma filha de 8 anos que adora o 25 de dezembro. Diz ele: “Nossa árvore é uma árvore de referência a Isaac Newton, que nasceu nesta data e que descobriu a Lei da Gravidade. Ela tem maçãs e luzes. Os outros simbolismos – perus, renas, presentes, árvores, Roberto Carlos – , nada disso nasceu com o Natal”. E completa: “Estamos apenas retomando uma data pagã que nos foi roubada pela igreja e que foi comemorada por sete mil anos antes do século III”.
Aqui em casa, durante o Natal, meu filho costumava — esse ano ele não fez (por quê?) — escrever no quadro de avisos da cozinha em letras garrafais: Natalis Solis Invictus, isto é, Nascimento doSol Invencível. O nascimento do Sol Invencível é o momento em que o Sol inicia a Sua ascensão triunfante, representando, neste momento, a Luz que nunca morre e vence sempre, reflexo da imortalidade. (E que acabará com a Terra, daqui a 5 bilhões de anos…). Á época, a data era uma coisa tão forte que a igreja trouxe o nascimento de Jesus justo para o 25 de dezembro… Vergonha.
Então, meu sonho de Natal é que o paganismo retome a data. E que, no hemisfério sul, a gente invente um modo bem livre e religiosamente incorreto de comemorá-lo. Eu acharia muito justo se os namorados perseguissem uns aos outros nus pelas ruas, algo assim. É sonho, e em sonhos vale tudo.
P.S. — Rodrigo Cardia que, assim como eu, odeia o verão, escreveu: O texto do Milton Ribeiro me fez lembrar do significado original da celebração: o solstício de inverno no hemisfério norte, noite mais longa do ano, depois elas começam a ficar mais curtas. E então percebo que tenho algo a celebrar: aqui no hemisfério sul as noites começam a ficar mais longas…
Era noite fechada quando fui ao cemitério visitar o túmulo do meu pai. Estava desconfiado de que ele tivesse sido enterrado vivo. Com aquela facilidade só encontrada nos sonhos, tirei o mármore, puxei o caixão e levei-o para o carro. Lá chegando, baixei os bancos de trás, pus o caixão no porta-malas e fui embora — afinal de contas, queria conferir o conteúdo sozinho, com toda a calma.
Saí de Porto Alegre e fui até Guaíba, entrei à direita na estrada para Pantano Grande e parei depois de alguns quilômetros. Desci um barranco bastante íngreme ao lado da estrada e ali, escondido, tirei o caixão do porta-malas, coloquei-o na frente do carro, liguei as lanternas do carro e abri o ataúde. Estava tudo direitinho. Meu pai estava conservado, frio e morto, tal como o vira pela última vez. Quando estava fechando o caixão, vi milhares de abóboras de todas as cores e formatos pelo chão inclinado. Era lindo de ver o contraste das cores e das sombras projetadas. Decidi levar algumas, digamos, centenas.
Comecei a encher o porta-malas de abóboras. Quando lotou, reabri o ataúde para utilizar seus vãos. Meu pai ficou adornado por abóboras. Ela ficaram entre suas pernas, ao lado de seu corpo, de sua cabeça. Passei tanto tempo trabalhando naquilo que amanheceu. Tomado de susto e com a lógica própria dos sonhos, resolvi livrar-me de tudo, pois não haveria como recolocar o féretro em seu lugar sob a luz do dia. Não sei como consegui enfiar o caixão no porta-malas cheio, mas deu certo e fui adiante. Dobrei à direita em Pantano e cheguei a Rio Pardo. A cidade é banhada pelo Rio Jacuí, onde há uns barrancos que proporcionam belas paisagens aos habitantes da cidade, além de servirem para várias outras coisas. Fui até o rio, estacionei embaixo de uma ponte e tchum com o caixão. Coisa inaceitável: ele ficou boiando. Entrei no rio e voltei a abri-lo. Joguei água dentro a fim de que afundasse. Deu certo.
Quando fui embora havia centenas de abóboras flutuantes descendo o rio. Era bonito de ver.
Acordei com absoluta certeza de que meu pai não estava mais no cemitério e de que tinha perdido centenas de lindas abóboras.
Obs. 1: Dia desses, alguém falou neste sonho para mim. Não lembro quem foi, só lembro que me disseram: li há anos no teu blog. Só que hoje, certamente em função da lembrança do amigo, voltei a abrir o caixão de meu pai enquanto dormia. Desta vez dei apenas uma olhada. Obs. 2: Meu pai faleceu em 11 de dezembro de 1993.
Nossos termômetros chegaram a 36,4 graus e era 7 de setembro. Não temos termômetros malucos, somos apenas gaúchos. Pela manhã, não acreditava no calor que sentia; abri a janela e vi algumas pessoas caminhando com blusas de mangas compridas (estes confiam cegamente no calendário) e outras de camiseta ou sem camisa (os realistas). Eu e as crianças fomos para a piscina, mas é inverno e poucas estavam prontas para uso. Não senti frio algum quando entrei na água. Pensei: é setembro, tenho um monte de coisas por fazer, a Claudia ficou revisando um livro que recém traduziu e eu aqui, brincando de afogar o Bernardo e a Bárbara. Quem sabe volto para casa e dou um jeito de ser produtivo? Não, continuei na piscina.
Como a temperatura subiu, quis mudar de leitura. Ora, se o contexto é outro – calor, piscina, braços e pernas à mostra -, mude-se o livro! Peguei um comprado em Buenos Aires em 1990, El Mago, de John Fowles. Seu início é arrebatador, mas já estão dizendo que vai esfriar no próximo fim de semana e aí voltarei à mistura de Graciliano e Paul Auster em que me encontrava. O jornal decidirá. Abro na previsão do tempo: ficaremos entre 9 e 14 graus no próximo sábado. Sei que o jornal está certo, vivo neste estado há muito tempo e sei o quanto o tempo pode ser louco. I´m going back to Graciliano and Auster.
Há anos não lembro de meus sonhos. Eles se evaporam. Invejo a Claudia quando ela vem me contar o que sonhou logo cedo. Nunca tenho nada para contrapor e fico ouvindo suas histórias delirantes e cheias de ratos. Talvez tenha sido o calor, o fato é que lembrei de um sonho.
O SONHO. O começo é comum ao sonho de todos os brasileiros: ganhei na Megasena. Porém, minha primeira providência foi algo que nunca pensei fazer. Viajei imediatamente à Alemanha, mais exatamente à Freiburg para falar com meu amigo Marcelo Backes. Propus a ele fundarmos uma editora – a Ribeiro & Backes. Eu tinha a grana, estava rico. Instalamos a firma na casa de minha mãe, que é bem grande e logo ficamos com a garagem e todos os cantos cheios de Luiz Ruffato, Sergio Faraco, Fernando Monteiro, Luís Vilela, etc. Reeditamos também clássicos brasileiros em pocket. As capas eram espantosamente belas, como só se vê em sonhos ou na Cosac & Naify. Com Marcelo indicando os livros, conversando e pagando os editores culturais de várias publicações brasileiras e portuguesas, começamos a ganhar notoriedade e dinheiro. Só trabalhávamos à tarde. Pela manhã, tínhamos outras atividades. Por volta das 18h, fazíamos um happy-hour reunindo amigos e champanhe. Lembro de só de uma cena que nos incluía, além da Alda, Claudia, Franklin, Branco, Helen e alguns funcionários desconhecidos.
Um dia, com a bunda posta numa pilha do enorme, notável e nunca traduzido romance Daniel Martin, de John Fowles, um best-seller exclusivo da R & B (já sabem que não me refiro a Rhythm & Blues e sim a Ribeiro & Backes) , propus ao Marcelo lançarmos pockets de blogs. Em meu sonho disse-lhe para ler o Literatus, a Mônica, o Guiu, a Tchela, o Tiagón, a Meg, o Inagaki, a Mafalda Crescida, a Praia no Nelson, o Zadig e a Nora, lembro destes. (Calma, gente, isto é só o começo da coleção e o melhor fica para o final…) Marcelo era contra, mas resolveu aceitar; afinal, eu era o cara do dinheiro e meu plano era de fazer livros baratinhos com 100 páginas no máximo. Algo para se ler em duas horas. A capa da coleção – chamada apenas “Blogs” – era linda. Vi um exemplar do livro do Tiagón: letras pretas sobre fundo laranja: Bereteando com Tiago Casagrande – 50 Posts do Ano da Graça de 2004 e, abaixo, fotos em preto e branco e coloridas com referências à cultura pop. Só que a parte colorida formava um desenho que era plastificado – o restante era fosco – e, quando prestávamos atenção, víamos um pterodáctilo. Quem conhece o Tiago entende o motivo da presença do lagartão. Quando vi esta capa, acordei. Apesar desta descrição, juro-lhes, meus amigos, no meu sonho a capa era linda! Deve ter vendido bem.
Eu estava dirigindo meu carro em Porto Alegre e ia deixá-lo na garagem de um casal de amigos. Depois, seguiria a pé para não sei onde. O portão estava aberto. Entrei e estacionei o carro quase encostado na parede da casa. Vi através de uma enorme e indiscreta janela de vidro a mulher de costas, levando o café escada acima. Rebolava cuidadosamente com a bandeja nas mãos; estava de blusão e calcinhas, mas aquilo não me interessou. Aquele café tinha um significado. Era o primeiro. O homem abriu a porta da frente e me disse que ela estava lá. Reconheci nele o Társis. Estava muito tenso e, quando o abracei, deu uma risada fora de tempo. Uma coisa estranha e meio cuspida.
Entramos e a Gabi desceu já sem o blusão, vestida com um chambre que lhe chegava aos pés. Meu daltonismo ficou indeciso quanto à cor. Ela me beijou e disse que eu adivinhava quando e onde havia pão novinho e quente. Ela sabe das coisas. Completou me acusando de ser um magro com cabeça de gordo. Já disse que ela sabe das coisas.
– O papai agora vai acordar cedo todos os dias para buscar pão na padaria da esquina. Para a filha, nada de coisa velha. De coisa velha basta eu.
Riu e olhou para o Társis, que escondeu o rosto na xícara enorme e cor de laranja. Ouvimos um som de passos descendo as escadas e uma voz infantil:
– Gabi, me ajuda?
– Milton, lá vem ela. Dá uma de tio bonzinho, seu monstro.
Sonho de hoje. Marquei um blind date (encontro com alguém que não se conhece) com uma mulher na Internet e estava chegando ao local combinado. Era o dia perfeito: luminoso, céu sem nuvens, temperatura agradável. Agendamos para o meio-dia no Clube Jangadeiros de Porto Alegre. Quem conhece, sabe que este clube náutico fica numa ilha onde dá para chegar de carro, pois há uma pequena ponte que faz a ligação. Sempre temendo ser recebido por alguém que fosse uma mistura de Aracy de Almeida com Néstor Kirchner, atravessei a ponte a pé. Meu trabalho seria o de encontrar um Ecosport vermelho de placas X e bater em seu vidro, atrás do qual deveria estar minha surpresa. Vi o carro, fiz o combinado e saiu de lá uma bela mulher cheia de silicone nos locais ou local apropriado, apropriadíssimo. Sem dúvida, era uma mulher que poderia figurar na capa da Playboy americana. Caminhamos juntos, conversando tranquilamente sobre assuntos filosóficos, tais como nossa posição e papel no mundo mas também sobre outros, todos sisudos e assexuados, enquanto observava vagamente aquelas interessantes protuberâncias. Depois de almoçarmos, ela me convidou para passear pelo Guaíba de barco. Ela tinha o seu atracado no clube. Fomos, eu e minha pin-up erudita. Pensava difusamente em algo de ordem sexual, mas estava mais atento a nossos temas, que agora versavam sobre troca de focos narrativos nos romances de Paul Auster. Estávamos como amigos. Ela me levou a um local afastado, muito parecido com a paisagem que se vê nas praias adjacentes à Angra dos Reis, apesar de estarmos navegando no Guaíba. Então ouvi-a dizer que ficaríamos ali por um tempo, que a paisagem era belíssima e que eu tinha passado no teste. Como? Passaste no teste, meu amigo; agora vais mudar de fase. Dito isto, ela enganchou uma pequena âncora dourada com o dedo mínimo e, num gesto incrivelmente feminino e sem nunca deixar de me encarar, largou-a na água. A âncora pesava uns cem gramas, no máximo. Completou a obra informando: estás em minhas mãos; a partir de agora, és minha cobaia. Era uma ameaça, mas as cobaias costumam ter boas expectativas, creio. Descemos para o quartinho de baixo (o nome técnico daquilo eu não sei). A cama era muito pequena – imagino que tinha 1 m de comprimento por 50 cm de largura – e a operacionalização do ato era extremamente complicada. Depois de prolongados beijos e desnudamentos em pé, decidimos deitar silenciosa e apaixonadamente. A muito custo, consegui encaixar a cabeça e o tronco da desejada desconhecida no exíguo espaço e ergui-lhe as pernas, enquanto ficava com as minhas fora da cama. Então, finalmente, consegui a penetração. Aí, bem neste ponto, acordei. Estava com uma brutal dor no pescoço e até agora faço alongamentos na frente do monitor, mas este já outro assunto.
Empenhei-me em voltar ao sonho, mas o despertador do celular tocou o terceiro movimento da primeira sinfonia de Brahms. Era 6h45, minha hora de acordar. Apelei para a opção “Soneca” (quem deu este nome imbecil àquilo?), mas, 30 segundos depois, a X. me beijou e perguntou se eu queria um copo de leite. Aceitei. Liguei a TV. Novos temporais vêm por aí; o PIB do RS não acompanha o crescimento do país, claro.
Outra pergunta: vocês sabem quando a gente está acordando e volta a dormir? Pois bem, ontem, nesta circunstância, eu sonhei que uma mulher veio me dizer que eu era o pai de sua filha. Segundo ela — uma completa desconhecida, bem feínha — a criança tinha sido filha de um Carnaval (eu nunca pulei Carnaval, para mim ele é apenas um feriado dos bons) e da sarjeta, pois tínhamos transado num beco de Salvador. Cada vez eu achava a história mais engraçada e então fui conhecer minha nova filha. Tinha uns três anos, era loira, de olhos azuis e conseguia ser mais feia do que a mãe. Eu fui maldoso e disse que meus outros filhos, os verdadeiros, eram lindos. Ela desconheceu minha declaração, mas… A menina estava brincando com a Boneca Assadinha!
Então, eu tive que me envolver. Como ia ficar quieto se a guria embebia água quente num paninho e fazia a boneca chorar desesperadamente enquanto passava a coisa em seu púbis ultrarealista e depois a fazia rir quando passava um pano com água gelada? Começou a me dar um desespero e eu, com aquela facilidade dos sonhos, disse à mãe:
— Tudo bem, é minha filha se tu sumires. Vou dar uma educação a ela.
Aí, novamente com a facilidade dos sonhos, peguei a menina, levei para a casa e vi que ela estava toda machucada. Nada de ordem sexual, mas estava toda roxa, tinha tomado porrada mesmo. Fiquei com tanta raiva que fui ao Conselho Tutelar logo após o banho. Mostrei a menina aos conselheiros que foram buscar a mãe de camburão. Acharam-na logo, claro, era um sonho. Só que a mulher veio como louca. Parecia tomada pelo demônio, era uma Linda Blair loira: começou a bater nos conselheiros e já estava me enfiando uma faca no peito. Acordei.
Pesquisa: a Boneca Assadinha custava R$ 50,00 e era fabricada pela Cotiplás, de Laranjal Paulista (SP). Com assaduras pelo corpo, ela chorava quando recebia água quente sobre as mesmas e ria quando recebia água fria.
Até aí tudo bem. O problema é que os sensores que faziam a boneca reagir estavam localizados na região genital. A promotora da Infância e da Juventude de Panambi (RS), Caroline Mottecy de Oliveira, conseguiu proibir a venda da Assadinha em sua cidade e levou sua decisão ao resto do país.
Atraídas pelas reações da boneca, as crianças concentrariam seus atos de estímulo naquela região. Isto atrapalharia o desenvolvimento psicossexual dos pequenos. Nunca vi a boneca. na época, a psicóloga Roberta Haushahn declarou:
— A criança pode pensar que, se para uma boneca é interessante tocar na região genital, para ela ou o coleguinha também pode ser.
Mas que frases disse a psicóloga, hein? Nem vou analisar. Já a mãe de uma menina de 10 anos, achava que quanto mais as crianças conhecessem seu próprio corpo, melhor. A Cotiplás iria recorrer da decisão, mas talvez um advogado esperto tenha dito aconselhado melhor a empresa.
A mim, o nome Assadinha apenas remete a antigas e gostosas práticas comunistas. Ah, as vitelas… Afinal, sempre fui um comunista autêntico, swiftiano.