O ardente manuscrito (sobre ‘O Mestre e Margarida’)

Clássico de Mikhail Bulgákov traz o diabo como única força motriz possível para renovar a literatura numa Rússia ateísta

Por Arthur Marchetto — No Jornal Rascunho

Em 1928, já sofrendo as restrições impostas pelo regime stalinista, Mikhail Bulgákov começou a escrever sobre o dia em que satã e sua comitiva chegaram em Moscou e a deixaram de cabeça para baixo. A história, concluída postumamente doze anos depois e intitulada O Mestre e Margarida, só chegou ao público 40 anos depois daquela primeira linha. O longo tempo para finalizar o livro está relacionado às dificuldades que Bulgákov enfrentou.

Além da pressão econômica e política promovida pelo Estado soviético, o escritor foi diagnosticado com neurosclerose hipertônica e perdeu quase todos os movimentos e a visão. Até sua morte, o escritor ditou ajustes e correções para sua terceira esposa, Ielena Serguêievna, que finalizou a obra. Publicado pela primeira vez na revista Moscou em duas edições, em 1966 e 1967, a edição teve cerca de 14 mil palavras censuradas.

Ao longo dos anos, os originais foram submetidos a diversos especialistas e muitas versões do livro coexistiram. Na tentativa de unificá-los, a pesquisadora Ielena Kolycheva promoveu um extenso estudo para chegar a uma versão mais próxima da vontade de Bulgákov, utilizando seus manuscritos e duas versões em circulação. Foi o estabelecimento do texto gerado na conclusão da pesquisa, publicado em 2014, que a Editora 34 utilizou como base para a tradução do livro, lançado em 2017.

O Mestre e Margarida é considerada a grande obra-prima de Bulgákov porque seu estilo, procedimentos artísticos e críticas sobre o regime soviético estão em plena forma. O próprio escritor sentia isso. Segundo o relato da viúva, quando estava morrendo o escritor disse: “Talvez isso esteja certo. O que poderia eu escrever depois de O Mestre?”.

Em suas obras, Bulgákov utilizou a sátira, o sarcasmo e a ironia como armas políticas. Escrevia contra a nova política econômica (NEP), contra o burocratismo, contra o discurso oficial e sua influência no homo sovieticus. Em seus livros, a história contemporânea e sua autobiografia aparecem como fortes elementos, mas revestidos por uma forte dose de fantasia.

Bulgákov nasceu em Kiev, atual capital da Ucrânia, onde estudou e se formou em medicina. Antes de começar a escrever, começou uma carreira médica no serviço militar na primeira guerra. Sua relação com o regime soviético sempre foi conflituosa e, na Guerra Civil, lutou ao lado dos Brancos. Em 1920, Mikhail largou o exército e começou seu trabalho como escritor na imprensa, publicando folhetins e reportagens já com seu tom sarcástico. Pouco tempo depois, arriscou-se na escrita de novelas e contos.

Na metade da década, quando já estava consolidado no círculo literário russo, começou a ter o mesmo tratamento que era destinado aos outros dissidentes, como seu amigo Evguênii Zamiátin, autor de Nós. Gradualmente deslocado para fora da cena literária numa espécie de ostracismo, passou por dificuldades econômicas e perseguição política. Em 1926, seus diários e novelas foram apreendidas, a crítica começou a execrá-lo e ele declarou que estava em uma “morte em vida”. Foi dentro desse contexto que, em 1930, escreveu uma carta para Stálin solicitando sua ida ao estrangeiro. A correspondência foi respondida por um telefonema do próprio Josef Stálin que, além de garantir que não havia nenhuma perseguição ao escritor, declarou sua admiração pela peça O dia dos Turbin e lhe garantiu um emprego no Teatro de Arte de Moscou.

No entanto, a passagem pelo teatro foi conturbada e a censura continuou. Nesse período, diversos textos do escritor foram apreendidos e devolvidos tempos depois. Com medo, Bulgákov queimou esses manuscritos. Anos depois descobriu-se que o Estado havia feito cópias de seus escritos e arquivado tudo num dossiê sobre o escritor. Dentro de O Mestre e Margarida, tal contexto e experiência de vida se tornam mais uma das diversas referências espalhadas pela narrativa, assim como seu conhecimento musical e literário, sua vida nos teatros e o cotidiano dos soviéticos.

A narrativa do romance nos guia conforme satã, representado pela figura do prof. Woland, chega em Moscou com seu séquito — a vampira Hella, um gato que fala e anda em duas patas chamado Behemoth, um ruivo pequeno e bronco com um canino de fora chamado Azazello e seu escudeiro alto e desengonçado, chamado de Koroviév ou de Fagote — e instaura o caos gradualmente.

Sua primeira aparição é no Lago do Patriota, interferindo na discussão entre um poeta, Ivan Nikoláievitch, e um editor de revista, Mikhail Berlioz. Ambos discutem o texto encomendado que, segundo o desejo do editor, deveria defender a existência de Jesus como um absurdo ao invés de caracterizá-lo como uma personagem histórica desmistificada. Woland interrompe a conversa, questionando a certeza de Berlioz sobre a inexistência de Jesus e de quaisquer forças superiores.

Essa conversa entre os três sujeitos introduz uma narrativa secundária que permeará toda a história: o julgamento de Jesus por Pôncio Pilatos — em um primeiro momento, contada por Woland em frente ao lago, mas que se revelará como o livro escrito pelo Mestre, personagem que dá nome ao romance.

Esses capítulos iniciais servem como ponto de entrada para a descrição de uma sociedade controladora e paranoica, deixam a atitude covarde de Pilatos em pé de igualdade com o cotidiano dos cidadãos nos tempos stalinistas e apresenta a ideia de um ateísmo militante presente naquele tempo na Rússia. Nesse contexto, com tantas certezas de que Deus não existe, o diabo se torna a força motriz possível para os russos.

Fáustico
O Fausto, de Goethe, e mais ainda sua adaptação operística por Gounod, aparecem como fortes inspirações para a inversão de realidade que critica a sociedade por meio do escárnio, tão presente nas obras de Bulgákov. O Mefistófeles do original é bem diferente do criado por Bulgákov. Ele não faz pactos pela alma de ninguém, não se torna servo. Sua intenção é ser servido e realizar o baile anual de primavera no submundo, tendo como pré-requisito uma anfitriã aleatória chamada Margarida.

O livro se mostra mais carnavalesco do que infernal, mesclando o bem e o mal, o humano e o divino. A epígrafe do livro, também retirada do Fausto de Goethe, insinua a mistura entre as duas faces opostas: “— Pois bem, quem és então?/ — Sou parte da Energia que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria”. É por meio desse poder “diabólico” que Bulgákov trata da arte e do amor, e de como libertá-los de suas amarras.

Sobre a arte, Bulgákov traz dois criadores incompreendidos, o poeta Ivan Nikoláievitch e o Mestre, dentro de um contexto em que a literatura era subordinada às forças oficiais, onde os escritores eram assim considerados pelo seu credenciamento no Estado e não pela qualidade do que escreviam. Como dito no próprio livro, tais “artistas” estavam mais preocupados com suas férias no campo do que com o desenvolvimento estético.

No entanto, apesar da realidade perversa, a verdadeira literatura se mostra forte e resistente, simbolizada pelo trabalho do Mestre. A frase “os manuscritos não ardem”, repetida ao longo da narrativa, dialoga com a vida de Bulgákov. Além dos manuscritos apreendidos pelo Estado que queimou posteriormente, também tentou queimar o rascunho de O Mestre e Margarida, impedido pela esposa. Dentro do romance, o Mestre também queima os manuscritos de seu livro em uma fornalha, mas as forças diabólicas de Woland o recuperam.

Por fim, no campo do amor, Margarida aparece como uma força celestial, um poder feminino necessário na criatividade masculina. Além disso, a personagem se relaciona com as mulheres do Fausto de Goethe, a terceira esposa de Bulgákov, Ielena Serguêievna, e ao amor incondicional da doutrina ortodoxa na Rússia.

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Músicas inéditas e o melhor concerto da Ospa em 2015

Músicas inéditas e o melhor concerto da Ospa em 2015
O maestro Petri: esse eu respeitei
O maestro Petri: esse eu respeitei

Ontem, tivemos o melhor concerto da Ospa deste ano. Como faz diferença um bom regente e um bom programa! A presença de muitos músicos na plateia confirmava o óbvio: o repertório a ser apresentado era de primeira linha. Ah, e também um grupo orquestral mais arredondado, com menos rebarbas que o habitual, principalmente nos violinos. As cordas, tão criticadas por este ignaro e severo comentarista, estiveram muito melhores na noite de ontem. E não era um programa simples, pelo contrário. Tínhamos duas composições complexas e inéditas entre nós — uma de compositor contemporâneo e outra de um cara que nasceu há 150 anos, mas que tem obra pouco divulgada, apesar da alta qualidade.

Programa:

Wolfgang Amadeus Mozart: Abertura de “As Bodas de Fígaro”
Christopher Theofanidis: Concerto para fagote e orquestra
Carl Nielsen: Sinfonia nº2

Regente: Luís Gustavo Petri
Solista: Martin Kuuskmann (fagote)

Tudo começou com a chatíssima Abertura de “As Bodas de Fígaro”, música que só faz sentido dentro da ópera. Mesmo com a grife Mozart, os aplausos foram merecidamente modestos. O mérito da coisa foi a brevidade. Esqueçamos.

Martin Kuuskmann
Martin Kuuskmann, que fagote!

Tudo mudou no Concerto para fagote do norte-americano Theofanidis, escrito entre os anos de 1997 e 2002. A obra foi dedicada justamente ao solista da noite, o estoniano Martin Kuuskmann, o qual não apenas mostrou ser um excepcional solista, mas que arrancou suspiros de quem se interessa por homens. Havia real duplo sentido na frase de algumas mulheres no intervalo. Elas diziam algo como “nunca vi um fagote desses”. E riam, felizes. Todos os movimentos da peça são interessantes (I. alone, inward / II. beautiful / III. threatening, fast), com destaque para o movimento central, beautiful, baseado em melodias que se poderiam ouvir em igrejas ortodoxas gregas — espécie de inflexões rápidas de notas longas que lembram o som de gaitas de foles. Um espanto! E que solista! (Falo do som).

A noite foi finalizada com a esplêndida Sinfonia Nº 2, Os Quatro Temperamentos, de Carl Nielsen. Nela, cada movimento é curiosamente dedicado a um temperamento — colérico, melancólico, fleumático e sanguíneo. Para completar, era o dia dos 150 anos de nascimento deste compositor pouco conhecido entre nós. O silêncio em torno de seu nome é dos mais imerecidos. Suas seis sinfonias, o quinteto do sopros, assim como os concertos para clarinete e flauta deveriam estar no repertório de qualquer orquestra digna deste nome.

E a Ospa respondeu muito bem ao desafio que interpretar esta sinfonia difícil, mesmo com um dia a menos de ensaios — o feriado da última quinta-feira. A sinfonia exige muito de toda a orquestra, mas tudo ia adiante de forma lisa e fluente. Os muitos episódios sucediam-se sem traumas, passando de um grupo de instrumentos a outro. Com a exceção de um novo e pequeno erro claro das trompas, tudo esteve bem melhor articulado que o habitual, prova do bom trabalho do excelente maestro Petri, que também é pianista e compositor. Petri deve conhecer profundamente o obra, pois regeu sem partitura. Espero que volte outras vezes à Porto Alegre.

Resta saber por quê, justo ontem, as cordas da Ospa — normalmente tão rebeldes e fugidias — tocaram tão bem, estiveram mais coesas e com muito menor desafinação. E como o violinista Nielsen escrevia bem para sopros! O Allegro comodo e flemmatico é a maior prova disso, dentro da Sinfonia Nº 2.

Saímos do concerto eufóricos e, bom sinal, com dificuldades para dormir. Afinal, tudo o que é bom a gente não quer tirar da cabeça, né?

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Ospa, o mau humor, o frio e a reconciliação

Ospa, o mau humor, o frio e a reconciliação
Albrechtsberger, o Cléo Kühn da música
Albrechtsberger, o Cléo Kuhn da música

Fui de mau humor ao concerto da Ospa de ontem. Tinha uma certeza: seria péssimo. E me enganei totalmente. Acontece que o programa não era nada estimulante…

R. Schumann: Abertura Manfred
J. G. Albrechtsberger: Concerto para Trombone Alto e Cordas
L. v. Beethoven: Sinfonia nº 6 “Pastoral”
Regente: Guilherme Mannis
Solista: José Milton Vieira (trombone)

… e vou tentar explicar o motivo. A conhecida Abertura Manfred, de Schumann, é verdadeiramente um horror. Ela não melhorou ontem à noite e só fez com que eu afundasse ainda mais em minha cadeira. Mas ali, ouvindo aquela mediocridade vinda de um Schumann cheio de alucinações em seu caminho para a loucura, pude notar que — coisa de luteranos — a Igreja da Reconciliação tem boa acústica. Outra óbvia observação que pude fazer, enquanto esperava que acabasse a tortura, foi de que tínhamos pouco mais de meia casa de lotação, o que, naquele momento, achei justificado em razão do programa e do frio.

Bem, quando finalmente Schumann despediu-se e foi para o sanatório, entrou Albrechtsberger. Este sujeito de nome longo, ao qual doravante chamaremos de A. foi professor de Beethoven. Pois é, Ludwig van chegou em 1792 a Viena recomendado por Haydn para procurar aulas com seu amigo Albrechtsberger (OK, eu escrevo). Com ele, Beethoven estudou harmonia e contraponto. Alguns anos mais tarde, Albrechtsberger fez questão de entrar na história da música com uma das maiores bobagens já proferidas por um professor: “Beethoven não aprendeu absolutamente nada e nunca vai conseguir compor nada decente”… Isso é que é uma previsão! Sim, foi o que ele disse, demonstrando confiança e dando feedback positivo a seu pupilo. Para completar minha desconfiança, certa vez um CD de A. ganhou o prêmio de um dos 3 piores publicados pelo PQP Bach, dentre mais de 3 mil.

E, dizia eu, entrou o compositor com José Milton Vieira seu trombone de vara. Senti o drama. Ele vinha para enfiar-nos Albrechtsberger com todas as letras. Só que eu gostei. A música era surpreendentemente boa, tinha um lindo Andante e um Finale muito divertido. Miltinho, para variar, tocou demais. Diego Biasibetti mostrou-se um belo cravista, fazendo um baixo-contínuo seguro e discreto, como deve ser. Foi muito animador receber aquela ducha de boa música após (argh!) Manfred.

Sem intervalo, fomos para a programática Pastoral com seus 5 movimentos divididos em 3 seções. Já dera para sentir nas primeiras peças do programa que o regente Guilherme Mannis tirara as cordas da letargia. E elas dominaram bem a trabalhosa sinfonia do mestre de Bonn, pois se o flautim toca 6 notas, elas tocam milhares naquele tagatagatagataga beethoveniano que a gente adora. Aliás, mantive meu olho atento às cordas.

O tranquilo spalla Omar Aguirre era bem acompanhado, mas The Usual Suspects estavam lá, dando cruéis desformatadas a golpes de arco. Nem tudo é perfeito. No terceiro movimento também houve uma trompa que derrubou alguns obstáculos e caiu na pista, mas nada grave — a concepção de Mannis e o núcleo duro da orquestra seguraram bem a coisa. Chamo de núcleo duro as duas linhas de excelentes músicos que ontem estavam formadas por Marcelo Piraíno (clarinete), Diego Grendene (idem) e Adolfo Almeida Jr. (fagote), tendo mais à frente Klaus Volkmann (flauta e chorinho especial para moças no pós-concerto), Viktoria Tatour (oboé) e Paulo Calloni (corne inglês). Eram as duas linhas de três do técnico Mannis.

No final, só me sobrava rir de meu engano. O concerto fora muito bom.

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Rimsky-Korsakov: Quinteto para flauta, clarinete, trompa, fagote e piano

Gosto muito deste primeiro movimento do curioso quinteto de R-K. As gravações são poucas, raras e boas em CD, mas no Youtube não tem quase nada. Encontrei este aqui, ó, de filmagem amadora, som mais ou menos e grande entusiasmo da moçada. Vale a pena dar uma olhadinha.

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Janáček – Concertino para piano, 2 violinos, viola, clarinete, trompa e fagote

O esplêndido Concertino de Leoš Janáček (1854-1928) que assisti ser tocado no ano passado por integrantes da OSESP recebe no vídeo abaixo uma boa interpretação, porém de som baixo. Mas dá para notar a qualidade desta música que gruda no ouvido.

Tal como o compositor, os músicos da gravação são checos, não?

Igor Ardašev – piano
P. Franců e V. Vostrá — violin,
D. Kalvodová — viola,
I. Venyš — clarinet,
M. Petrák — bassoon,
O. Vrabec — french horn

Gravado durante o XXXV Festival International de Música “Janáčkův máj”, no Janáček´s Conservatory Concert Hall, Ostrava no dia 2 de junho de 2010.

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