100 anos do genocídio armênio, o massacre que “inspirou” Hitler

100 anos do genocídio armênio, o massacre que “inspirou” Hitler

Publicado em 18 de abril de 2015 no Sul21

A data de 24 de abril de 1915, o Domingo Vermelho, foi estabelecida como a de início do genocídio armênio, por ter sido o dia em que dezenas de lideranças armênias foram presas e deportadas em Istambul. Apesar da negativa quase centenária do governo turco em reconhecer o massacre, o fato está firmemente estabelecido como verdadeiro. Há evidências de um plano organizado do Império Otomano para eliminar sistematicamente os armênios. O evento serviu de “inspiração” para Hitler e os nazistas porem em prática o Holocausto judeu durante a Segunda Guerra Mundial. Em defesa do holocausto e de seu esquecimento futuro, Hitler afirmou: “Quem lembra do extermínio dos armênios?”. Cerca de 1,5 milhão de armênios foram mortos e outro tanto foi deportado.

Até hoje a Turquia rejeita o termo genocídio organizado e nega que as mortes tenham sido intencionais. Por outro lado, a França reconhece dois genocídios por lei: o dos judeus, durante a Segunda Guerra Mundial, e o armênio. O texto prevê pena de prisão por um ano e multa de 45 mil euros para a negação pública de um genocídio reconhecido pela lei. Após a promulgação, em 2011, a Turquia suspendeu as visitas políticas e os acordos de cooperação militar com a França.

O Brasil não reconhece o genocídio armênio, ainda que a presidente Dilma Rousseff seja de origem búlgara. A Bulgária foi outro país que sofreu por séculos violências sob o domínio do Império Otomano. Na última segunda-feira (13), o papa Francisco defendeu a posição da Igreja de considerar genocídio os massacres de armênios há um século. A declaração irritou as autoridades turcas, que classificaram de insultuosas as palavras do pontífice e retiraram seu embaixador no Vaticano.

Três dias depois, foi a vez do Parlamento Europeu deixar furioso o governo turco.  Os eurodeputados exigiram que a Turquia “reconhecesse o genocídio armênio, abrindo caminho para a verdadeira reconciliação entre os povos turco e armênio.” O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, respondeu que o apelo europeu lhe “entrou por um ouvido e saiu pelo outro”.

armenian-genocide

Os antecedentes históricos

Desde o século XV, os armênios estavam sob o domínio otomano. Quando a ideia de independência amadureceu, o império reagiu matando 20 mil armênios no episódio conhecido como o Massacre de Adana (1909), nome de uma província otomana. Foi uma série de pogroms (atos de violência em massa, premeditada ou espontânea) anti-armênios em todo o distrito, protagonizados pelas forças imperiais. Além disso, durante a Primeira Guerra Mundial, o Império Otomano recrutou soldados para a guerra. Muitas minorias étnicas eram contra o recrutamento, inclusive os armênios. Com isso, em 24 de abril de 1915, o governo turco reuniu 250 líderes da comunidade armênia, alguns foram deportados, outros, executados. Depois de privar os armênios de suas principais lideranças, começou a deportação e o massacre dos armênios.

Justificando o ato de 24 de abril de 1915 , o ministro do interior, Mehmed Talat Bey, alegou que os comitês armênios “há muito tempo perseguem autonomia administrativa e este desejo é exibido uma vez mais, em termos inequívocos, com a inclusão dos armênios russos que assumiram uma posição contra nós”. A Primeira Guerra Mundial estava acontecendo e o texto dizia que “os armênios estão em conluio com o inimigo. Eles vão lançar um levante em Istambul”.

Os métodos

No extermínio foram utilizados a incineração coletiva,

O tenente Hasan Maruf, do exército otomano, descreve como os habitantes de uma aldeia foram reunidos e depois queimados: “prisioneiros turcos que tinham presenciado algumas dessas cenas ficaram horrorizados e enlouquecidos com a lembrança desta visão. Russos afirmaram que, vários dias depois, o odor da carne humana queimada ainda impregnava o ar. As populações civis foram fechadas em igrejas e queimadas, reduzidas a cinzas” .

afogamentos,

O cônsul italiano de Trebizonda, em 1915, Giacomo Gorrini, escreveu: “Vi milhares de mulheres e crianças inocentes colocadas em barcos que foram emborcados no Mar Negro. Outros, foram jogados amarrados no Eufrates”.

agentes químicos e biológicos,

O psiquiatra Robert Jay Lifton, ao descrever os crimes dos médicos nazistas: “talvez os médicos turcos, em sua participação no genocídio contra os armênios, foram os que mais se aproximaram dos nazistas disto, como comprovarei a seguir”.

como overdose de morfina, gás tóxico e inoculação de tifo, além de enfocamentos, deportações em massa e as chamadas Marchas da Morte.

Abril de 1915: armênios escoltados por soldados turcos marchando em direção à Síria.
Abril de 1915: armênios escoltados por soldados turcos marchando em direção à Síria.

As Marchas da Morte

Parte da população armênia foi levada para a cidade síria de Deir ez-Zor e para o deserto ao redor. O governo otomano não forneceu quaisquer instalações ou suprimentos para sustentar os armênios durante a sua deportação, nem quando eles chegaram. Privados de seus pertences e marchando para o deserto, centenas de milhares de armênios morreram. O general Friedrich von Kressenstein observou que “A política turca de causar a fome é uma prova muito óbvia de que a Turquia está decidida a destruir os armênios”.

Um registro fotográfico especialmente chocante é o de um oficial turco mostrando um pão para crianças armênias famintas.

Oficial turco exibindo um pão, para provocar crianças armênias famintas (1915)
Oficial turco exibindo um pão, para provocar crianças armênias famintas (1915)

Acredita-se que 25 grandes campos de extermínio existiram, sob o comando do ministro Mehmed Talat. A maioria deles situavam-se perto das atuais fronteiras da Turquia, Síria e Iraque.

Um fato que torna ainda mais absurda a negação dos turcos em admitirem o genocídio é o julgamento ocorrido em janeiro de 1919. Nele, o tribunal militar fala claramente sobre o “desejo” do Comitê de União e Progresso de eliminar os armênios fisicamente, através da chamada organização especial.

“Levando em consideração os crimes acima mencionados, o tribunal marcial declara, por unanimidade, a culpabilidade, como principais autores destes crimes os fugitivos: Mehmed Talat. (…) A Corte Marcial pronuncia, a Lei a pena de morte contra Talat, Enver, Cemal e Dr. Nazim”.

Porém, em uma sessão da Assembléia Nacional, realizada em 17 de outubro de 1920, Hasan Fehmi Bey, deputado de Bursa, talvez tenha dado o pontapé inicial para a negação:

“A questão da deportação foi um evento que fez o mundo protestar e fez todos nós sermos considerados assassinos. Nós sabíamos, antes de termos feito isso, que o mundo cristão não toleraria isso e que iria dirigir sua fúria contra nós. Por que imputar o título de assassina a nossa raça? Por que entramos numa luta decisiva e tão difícil? Ora, isso foi feito apenas para garantir o futuro de nosso país que nós conhecemos como mais precioso e sagrado do que nossas vidas”.

Cerca de 1,5 milhão de armênios foram mortos durante o genocídio. Dentre eles, vários morreram assassinados por tropas turcas, em campos de concentração, queimados, enforcados e jogados amarrados ao Rio Eufrates, mas a maior parte dos armênios morreu por inanição, ou seja, falta de água e alimento. Dois milhões de armênios instalaram-se em outros países, na chamada Diáspora Armênia. O número de armênios no Brasil, conforme estimativas, chega a 25 mil, sendo em sua maioria em São Paulo.

armenios enforcados

As perdas culturais

A destruição do patrimônio cultural, religioso, histórico e comunitário armênio também foi um objetivo do genocídio e da campanha de negação pós-genocídio. Igrejas armênias e mosteiros foram destruídos ou transformados em mesquitas. Cemitérios armênios foram destruídos, e, em várias cidades, bairros armênios foram demolidos.

Além das mortes, os armênios perderam suas propriedade e bens, sem compensações. Empresas e fazendas foram perdidas e todas as escolas, igrejas, hospitais, orfanatos, conventos e cemitérios tornaram-se propriedade do Estado turco. Em janeiro de 1916, o Ministro Otomano do Comércio e Agricultura emitiu um decreto ordenando a todas as instituições financeiras que operavam dentro das fronteiras do império a entregar dos ativos armênios ao governo. Os ativos foram canalizados para os bancos europeus, incluindo Deutsche Bank e Dresdner Bank. Após o fim da Primeira Guerra Mundial, os sobreviventes do genocídio tentaram retornar e recuperar seus antigos lares e bens, mas foram expulsos pelo governo de Ancara.

Em 1914, o patriarca Armênio de Constantinopla apresentou uma lista dos locais sagrados armênios sob sua supervisão. A lista continha 2.549 lugares religiosos, dos quais 200 eram mosteiros e 1.600 igrejas. Em 1974, a Unesco declarou que, após 1923, de 913 monumentos históricos armênios na Turquia oriental, 464 desapareceram completamente, 252 estão em ruínas, e 197 necessitam restauração.

Pamik: problemas em casa
Pamik: problemas em casa

Pamuk, um exemplo

O romancista Orhan Pamuk é o primeiro e único cidadão turco a receber um Prêmio Nobel. Recebeu o de Literatura em 2006. Pamuk foi processado em dezembro de 2004 por “insultar e debilitar a identidade turca” (artigo 301 do código penal) em uma entrevista a um periódico suíço na qual disse a seguinte frase: “Na Turquia mataram um milhão de armênios e 30 mil curdos; ninguém fala nisso e me odeiam por fazê-lo”. A primeira sentença era uma condicional de seis meses, durante os quais devia abster-se de cometer quaisquer outros delitos do gênero para manter sua liberdade. Ele reafirmou suas palavras em outubro de 2005.

É claro que a posição de Pamuk sobre a questão armênia na Turquia tornou-o um personagem polêmico em sua terra natal. Enquanto alguns poucos admiraram-no, a maioria considerou-o um traidor. Houve uma campanha de ódio desencadeada contra o escritor e Pamuk deixou o país por algum tempo. Alguns meios de comunicação turcos escreveram que ele teria usado a pretensa perseguição como pretexto para ganhar dinheiro dando palestras na Universidade de Columbia, nos EUA.

Erdogan: entrou por um ouvido, saiu pelo outro.
Erdogan: entrou por um ouvido, saiu pelo outro.

A Turquia

Este ano, o estado turco marcou as comemorações da batalha de Galípoli para o dia 24 de abril — mesmo ela tendo começado em 25 de abril –, numa nova tentativa de encobrir o genocídio armênio. Na Batalha, forças britânicas, francesas, australianas e neozelandesas desembarcaram em Galípoli, numa tentativa de invasão da Turquia. Foram rechaçados no início do ano seguinte.

O curioso é que os dirigentes turcos, ao negarem o genocídio, parecem confirmá-lo: “Não deixaremos a nossa nação ser insultada por causa da sua história”, disse o primeiro-ministro turco, Ahmet Davutoglu. Faz cem anos que a negação deste crime se situa no coração da política e da diplomacia do Estado turco. Há cem anos que tal negação alimenta o nacionalismo, os conflitos étnicos e impede o desenvolvimento da liberdade de expressão na Turquia.

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Istambul, de Orhan Pamuk, e maisquememória, de Marcelo Backes

Lidos casualmente um após o outro, os livros de Pamuk (Istambul, Cia. das Letras, 399 págs.) e de Backes (maisquememória, Record, 399 págs.) podem parecer obras pertencentes a um gênero muito específico, o do memorialismo precoce e turístico, mas tal redução é injusta e, mesmo sendo tão diferentes, elas têm outras semelhanças além do número de páginas.

Conheci Pamuk numa Flip. Na verdade, fiquei (ficamos) abolhados com a metralhadora que é o homem. O tema de sua palestra era muito sedutor: “A influência de Borges sobre As Mil e uma Noites“. Sim, porque a admiração dos eruditos ocidentais, capitaneados argentino quando ainda não enxergava muito bem, causou tal furor nas pesquisas sobre o que havia de autêntico e o que tinha sido abusivamente alterado na obra, que, hoje, As Mil e uma Noites têm pouco a ver com a do começo do século XX. O tema era interessantíssimo, mas era o último da programação daquela dia na Flip e minha mulher desistiu no meio da fala daquele homem maluco que fazia tantas perguntas quanto respondia ao entrevistador. Mais: avisava que tinha pouco tempo e MUITO a contar. Falava com uma rapidez que deixava o tradutor audivelmente nervoso… OK, ela desistiu, mas eu fiquei ali ouvindo aquele homem estava em Parati mas que falava — palavras dele — desde a ponte de Istambul que liga a Europa à Ásia, voltando-se ora para um lado, ora para outro. Ao final daquele mesmo ano, aquele desconhecido turco maluco e inteligente receberia o Nobel.

Conheci Marcelo Backes num churrasco e não me arrependo até hoje. Ele devia ter uns 25 ou 26 anos, mas parecia ter lido 100 anos. Logo vi que era bom tê-lo por perto, pois Marcelo não apenas sabia muito como não se incomodava em ensinar. Desde lá, passaram-se mais de dez anos. Marcelo foi para a Alemanha finalizar mestrado e doutorado, publicou vários livros e traduziu mais de uma dezena, tendo percorrido desde Marx até Stanišić, passando por Kafka, Arthur Schnitzler e outros. De sua autoria, li A Arte do Combate, obra sobre a literatura alemã e seu caráter combativo em comparação com o habitual compadrio brasileiro; o sarcástico e aforístico Estilhaços (onde sou citado…) e agora este maisquememória. Hoje, Marcelo Backes mora no Rio. Falamos pouco, infelizmente.

Mas vamos antes às coincidências:

1. São ambos livros em grande parte de memórias, embora Backes chame, com razão, maisquememória de “romance”.
2. São ambos livros que falam muito eruditamente sobre história e artes em geral.
3. São ambos livros apaixonados, onde as cidades e a geografia participam na condição de personagens. Istambul parece levar a vida de Pamuk como a música de Bach leva adiante o texto de suas árias e Backes corre de cidade em cidade como se fosse um Lazarillo de Tormes moderno, mas a intenção não é só a de fazer graça e sim a de entabular diálogos — visuais, verbais e físicos — com a cultura local.
4. Istambul caracteriza-se pela melancolia (hüzun) e sabemos que Pamuk, de forma inacreditável e certamente sofrida, acabou separando-se da cidade que tanto ama e conhece, por fazer denúncias sobre o extermínio de armênios, enquanto maisquememória nos dá um itinerário muito sutil de como são emitidos e/ou ignorados os sinais que levam um casal à separação. Nos dois casos, ambos — e o “ambos” aqui é reforço de expressão — sabiam das conseqüências. Mas foram tragicamente em sua direção, como se outra coisa não fosse possível.
5. A pintura de Pamuk — pois o escritor é um ex-futuro pintor — é o fio condutor de grande parte do livro. Ela carrega todas as motivações, inclusive as sexuais, do autor. E Backes faz das obras de Oskar Kokoschka e de seu amor por Alma Mahler — desfeito por esta — um abrasador comentário paralelo, nem um pouco isento de sexo, sobre ocaso do casamento de seu personagem, matéria em pequena parte real e em grande parte ficcional.

Istambul é um livro para ser lido e admirado. Ganhar o livro de minha filha Bárbara como presente duplo de Dias dos Pais e aniversário, foi muito bom: ela não apenas escolheu o livro sozinha como comprou-o como sua própria mesada. Acertou em cheio. Fiquei folheando o livro (notem o ato falho: eu tinha escrito “filhando o livro”!) como forma de domar a comoção e a coisa só piorava, pois as fotos de Ara Güler que acompanham a obra e que pontuam minuciosamente a narrativa são lindíssimas, dignas de que você entre na livraria só para dar uma olhada, como numa pinacoteca. Mas faça isso no Brasil, pois o trabalho da Cia. das Letras é infinitamente melhor do que os da edição espanhola, argentina e mexicana.

À parte o turismo, maisquememória trata de uma separação que vai sendo lentamente anunciada durante a leitura. Aliás, há dois fatos que vão se aprofundando durante a leitura. (1) A dissociação entre o personagem principal e seu “cavalo” acentua-se até que o cavalo acaba por revoltar-se contra o primeiro eu de Marcelo Backes (ou de seu personagem Marcelo Backes) com seu enorme ego e (2) os melancólicos intermezzi — que chegam ao leitor em belo ostinato — não servem apenas para mostrar como Kokoschka é interessante, mas vão adquirindo significado antes do anúncio da separação. São extratos do profundo e inaceitado abandono que obcecou Kokoschka por anos. Então, o “eu narrador”, enquanto fala do mundo lá fora, caminha – repito – tragicamente na direção daquilo que é o que efetiva e talvez inconscientemente deseja e do qual só desconhece o amargor, ou seja, o cerne. É estranho que alguns leitores revoltaram-se contra o memorialista, ignorando a palavra “Romance” que há na capa. Tudo o que é contado em primeira pessoa são verdades… ficcionais…

Istambul, a ex-capital do ex-Império Bizantino, ex-capital do ex-Império Turco-Otomano tornou-se, no século XX, uma cidade que oscilava entre o riqueza e a pobreza, entre a ocidentalização chique e o orientalismo démodé. Filho de uma família rica, cujos pais estavam sempre às turras pelas constantes traições dele – fato notável, pois a mãe de Pamuk era belíssima, uma das mulheres mais belas da alta sociedade de Istambul, como podemos comprovar nas fotos do livro, prova de a vida é mesmo estranha … -, Pamuk constrói uma tranqüila e bela narrativa sobre o mundo infantil dentro da cidade que tenta ocidentalizar-se até mesmo através de incêndios. As descrições do Bósforo, acompanhadas pelas imagens de Güler, tornam a obra a mais bela homenagem que conheço a uma cidade. Falei com vários amigos que conhecem Istambul e eles não reconhecem a tal melancolia de seus habitantes, tão explorada por Pamuk, prova de que não somente a vida é estranha, mas o turismo também, pois o texto de Istambul combina tão bem com as fotos apresentadas que Pamuk nos convence de forma inequívoca.

maisquememória é um livro que cresce muito em sentido durante sua leitura. Se de início ficamos de nariz torcido para o narrador arrogante que nos enche – e como! – de informações muito interessantes e úteis acerca de suas viagens, se o autor adentra de forma oblíqua os mais variados assuntos e come as mais variadas mulheres das mais variadas etnias e línguas, ele nos causa estranheza pela intervenção de um cavalo de bom senso (o cavalo é um outro eu de Marcelo, bem mais razoável) e pelo coral grego representado pela narrativa, jogada aqui e ali, da separação de Oskar Kokoschka e Alma Mahler. Ao longo do livro, curiosamente, o contraditório que está na cabeça do leitor passa ao livro, que combate as assertivas do primeiro Marcelo através das vozes do segundo Marcelo e da que descreve o amor de Kokoschka. Ao final, as três vozes discutem abertamente, sendo caracterizadas por fontes (refiro-me ao tipo de letra) diferentes. Ou seja, o contraditório, a objeção presente do leitor migra para dentro do livro. Sem dúvida, é original.

O que mais gostei nos livros. Istambul: a esplêndida descrição do primeiro amor e as caminhadas do casal pela cidade, que são arrepiantes; os apontamentos sobre o pitoresco casual da cidade; a história dos escritores que escreveram antes sobre ela, turcos ou ocidentais; sua relação com a mãe e irmão e a prosa de Pamuk com sua perfeita noção de estilo. Ele efetivamente consegue mudar de capítulo para capítulo. Há os líricos, os descritivos, os jocosos; enfim, trata-se de um escritor que aprecia “mostrar” sua habilidade. Ah, e as fotos de Güler, as fotos, as fotos!

maisquememória é estupidamente informativo e tem todo o gênero de comentários divertidos sobre cultura em geral, mas estas opiniões e descrições vão se intrometendo nas “memórias” de forma curiosa, principalmente quando Kokoschka manda fazer uma boneca — fato real — de sua (já não sua) Alma Mahler. Tal procedimento acaba por criar o clima perfeito para a grandiosidade humana que o romance adquire em suas seções finais.

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