Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): III – Baía dos Tigres, de Pedro Rosa Mendes

Oh, mas quem é Pedro Rosa Mendes para estar numa lista de melhores livros? Bem, em primeiro lugar, o autor é um esplêndido escritor e jornalista português; em segundo lugar, minha lista não guarda ordem de precedência. Agora que já tomei esta medida profilática de me defender de meus sete leitores amantes dos grandes clássicos, vou tratar de explicar porque este livro é IMPRESSIONANTE.

Este livro é sobre coisas simples: a tranquilidade do medo e a vitalidade da morte. (…) A razão para tal projeto era a mais nobre de todas, ou seja, nenhuma em especial. As duas frases grifadas fazem parte da nota introdutória do livro. A que projeto refere-se Rosa Mendes? Em junho de 1997 ele chegou a Luanda, em Angola, às margens do Atlântico, com a ideia de atravessar a África até chegar a Quelimane, em Moçambique. No caminho, as sangrentíssimas guerras tribais e entre os países da região, minas por todo lado, além da pobreza absoluta, tanto material quanto moral. E fome. Para temperar um pouco mais a coisa, o autor descobre duas coisas em Luanda, uma boa e uma ruim. A boa: sua mulher lhe avisa que está grávida em Portugal, mas que ele terá o tempo necessário para a reportagem, pois seu rebento nascerá apenas dali a seis ou sete meses; a ruim: o prognóstico que recebe de todos com quem fala de seu plano: você não sobreviverá.

A voz do autor é serena e elegante. Não é uma história contada em ritmo frenético, o andamento é o do humanista que deseja ouvir e compreender todos os envolvidos. Estive na palestra de Rosa Mendes na Flip de 2005. Ele estava com Jon Lee Anderson — o americano falava sobre a Guerra do Iraque e o português sobre a Guerra de Angola — e Anderson fez uma pergunta curiosa ao português: Baía dos Tigres recebeu muitos prêmios destinados a livros de ficção, por quê? A resposta foi típica da pessoa modesta que pareceu ser Rosa Mendes. Ele deu muitas voltas até dizer que era em função da linguagem do livro. E, diante da insistência de Anderson, ele acabou deixando escapar: ora, é que acharam que era bem escrito e não devia misturar-se a textos jornalísticos. Anderson respondeu com a gargalhada de quem já sabia antecipadamente a resposta.

Para dar ideia do que é este livro — que reencontrei na semana passada numa estante da Siciliano –, vou resumir algumas das histórias. Como a do encontro com um técnico francês que estava no país para testar o efeito das minas. Umas explodiam assim, outras assado. Umas eram cedidas a um grupo e, puxa, matavam mesmo; então recebi outras e repassei ao lado contrário. Essas eram melhores, as pessoas ficavam efetivamente mutiladas, deixavam os caras bem feridos, davam um trabalhão às equipes. Querem mais? Que tal a história das famílias de angolanos que operam suas vacas a fim de tirar-lhe alguns bifes, depois as costuram com alguns pontos e tratam de recuperá-la, pois não podem sobreviver sem elas? Por falar em mutilações, que tais as que são feitas na genitália feminina das africanas? Mas o melhor do livro é a narrativa dos interesses envolvidos. Portugal, Estados Unidos, Cuba, Brasil (Petrobrás e Odebrecht), mais os de grupos armados como UNITA, MPLA, FNLA, FRELIMO, RENAMO, etc. Sobre tudo isso, a total falta de observadores internacionais.

É. Onde não há dinheiro, as “forças de paz” não aparecem e os direitos humanos não interessam. Não ocorre nem a venda da  “democracia salvadora” e de eleições livres. Um grande livro.

De Luanda (imagem recente retirada de um site angolano) ...
... a Quelimane.

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Relatório Pessoal sobre a Flip 2005

Publicado em 13 de julho de 2005

Quando saímos de Porto Alegre, o termômetro que temos em frente de casa indicava 3 graus, mas quando chegamos a São Paulo estava quente e eu já suava. A Mônica, do Crônicas Mônica, e seu marido vieram nos buscar em Cumbica e fomos direto a Parati. Viagem boa, conversa fácil. Compramos os ingressos para as mesas que nos interessavam e finalizamos o primeiro dia indo ao show de Paulinho da Viola. Um espanto. Duas horas de clássicos e de algumas músicas novas. Nem deu para sentir o inimigo insidioso que preparava-se. Quando saímos do espetáculo, ele já estava armado: um inesperado frio de rachar. Mesmo querendo dar uma de gaúcho e desejando dizer que tantos agasalhos era frescura de cariocas, não havia como negar. Eu tremia e representava mal a coragem gaúcha para o frio.

Então, começamos a nos aquecer com a pinga de Parati. Para quem não está acostumado a beber álcool, aquilo tinha um efeito muito confortável. O frio passava e já não sabia se nossos amigos Mônica e Luiz eram realmente agradáveis e engraçados ou se era apenas mais um dos efeitos das Salinas, Nêgas Fulos, Coqueiros e Santa-Não-Sei-O-Quê que bebíamos. O resultado no outro dia? Nada. Nenhuma dor de cabeça, só uma vontade louca de dormir que nos fez perder as primeiras palestras da FLIP.

Conseguimos apenas assistir à mesa 3, às 15h do dia seguinte. Marina Colasanti, Vilma Arêas e Benedito Nunes falavam sobre Clarice. Apesar do enorme conhecimento de Vilma, foi médio. Ficou a impressão de que se ela estivesse sozinha, seria fantástico. Depois pulamos para a mesa de David Grossman e Michel Ondaatje, que foi monótona para quem não conhecia suas obras. Eles se referiam demasiadamente a questões judaicas bem conhecidas e Grossman parecia muito ressentido com o mundo, enquanto Ondaatje queria falar sobre poesia. Havia um chiado preocupante que parecia sair dos altos falantes. Uma falha técnica? Não! Era a chuva, que viera para acompanhar o frio. Fomos para o Restaurante do Fogo. Ali, eles flambam tudo com cachaça e é aquele fogaréu. Entramos molhados pela chuva fria e começamos a função tomando uma Gabriela, que é uma cachaça licorosa, com cravo e canela. Muito boa. A comida era excelente, apesar das porções resumidas. Resolvemos reforçar o estômago com uma sobremesa. Entramos num bar em que havia música esplêndida de jazz e bossa nova. Os caras eram ótimos mesmo. Não sei quem eram. Comemos e ficamos assistindo ao grupo acompanhados novamente daquele líquido, agora em versão incolor, apesar do apelido de “branquinha”. Ficamos com sono – eu e a Claudia – e fomos para o hotel. Perdi o grande momento em que a Mônica foi convidada a cantar desafinada, ops, Desafinado, Garota de Ipanema e todo o cerne do repertório jobiniano. Ela costuma cantar enquanto caminha, enquanto anda de carro, enquanto come, ela está sempre cantando. Tem uma voz grave, rouca e afinada. Cantava em sua mesa no bar e foi chamada ao palco. O problema é que seu marido começou a fazer gestos indicando que o couvert teria de ser dividido entre ele – agora travestido de empresário – e os músicos; desta forma, sua carreira foi abortada por uma dispensa entre risos. Perdi tudo isto! E, para completar, as fotos estão sob inflexível censura.

No dia seguinte, tornamo-nos intelectuais sérios. Assistimos à melhor palestra da FLIP: Beatriz Sarlo e Roberto Schwarz (Um Lugar para as Idéias). Deveria ter sido gravada. Foi uma inesquecível lição sobre Jorge Luis Borges, Machado de Assis, engajamento, compromisso intelectual e Juan José Saer.

Fomos almoçar no Bartolomeu, que tem boa comida e uma loira gostosa que olhava para mim e que provocou ciúmes não na Claudia, mas no Luiz, pois ele não fora aquinhoado com os mesmos olhares… Depois chegaram outras mulheres lindas – lindas mesmo – e ele dizia: tudo bem, me dá a pior e eu fico satisfeito! Eu e a Mônica ficamos boiando enquanto ele e a Claudia conversavam de forma minuciosa sobre comida. Antes de 2002, não conhecia pessoas assim. A Claudia estava encantada, porque o Luiz “pensava” a comida de forma semelhante a dela. Trocavam receitas e receitas, inventavam pratos, faziam variações mentais a respeito e elas pioravam ou melhoravam. Concordavam em tudo e reviravam os olhos de prazer, enquanto eu e a Mônica observávamos. E informo-lhes que estavam sempre sóbrios. (Descobri um fato que desconhecia. Esses chefs em potencial escolhem seus restaurantes pelo cheiro. É ele que determina se a comida oferecida é boa. Estou definitivamente fora desta especialidade. Sou um insensível.)

Deixamos minha loira e fomos para Orhan Pamuk (Mar de Histórias II: As Mil e uma Noites). A Flip tinha engrenado. O turco Pamuk é uma metralhadora informativa. Explicou-nos a imensa influência de Borges na divulgação das Mil e Uma Noites no mundo e a visão do oriente e do ocidente sobre o livro. Pamuk não esperava pelas perguntas, interrompia o entrevistador, sorria aparentemente sem motivo, mexia pernas e mãos para falar, era de tal forma agitado que era difícil manter a atenção em seu discurso. Depois de uma hora, a Claudia irritou-se e disse que não conseguia mais fixar sua atenção naquele maluco. Foi embora, enquanto eu jogava o corpo para a frente, tentando não perder nada do diferenciado conhecimento daquele homem que estava física e intelectualmente sobre aquela ponte de Istambul que é Àsia de um lado e Europa de outro e que tomava os dois mundos num só olhar. Outra grande palestra. À noite, assistimos a um recital es-pe-ta-cu-lar de Hamilton de Holanda. Garanto-lhes que o homem é um gênio e que nunca tinha visto alguém tocar bandolim daquela maneira.

O dia seguinte começou com a concorrida mesa de Arnaldo Jabor e do rapper MV Bill. Não a assisti, mas toda Parati estava lá. A mesa seguinte teve uma Parati desatenta e dispersa, mas foi do mesmo nível da de Schwarz e Sarlo. Chamava-se Zona de Conflito e foram entrevistados os correspondentes de guerra Jon Lee Anderson (Guerra do Iraque) e Pedro Rosa Mendes (Guerra de Angola). O educadíssmo americano Anderson cedeu grande parte de seu tempo para que o português falasse sobre uma guerra desconhecida e sobre o seu multi-premiado livro Baía dos Tigres, que descreve a guerra. Desculpem, não dá para resumir. Ouvimos um tremendo documento humano sobre uma população paupérima – e em grande parte mutilada pelas minas – subjugada por interesses de vários países, entre eles Portugal, Estados Unidos, Cuba e Brasil (Petrobrás e Odebrecht) e curvado por interesses tribais e de grupos armados como UNITA, MPLA, FNLA, FRELIMO, RENAMO, etc., etc. etc., além de por ditadores riquíssimos que dominam o cenário, o qual é literalmente tão minado e estropiado que criou uma cultura dantesca. Por exemplo, alguns angolanos cortam suas vacas a fim de tirar-lhe alguns bifes, depois, costuram alguns pontos e tratam de recuperá-la, pois não podem sobreviver sem ela. Assim, todos são mutilados. Lembrei do Holy Grail (do Monty Phyton), lembrei daquele guerreiro que quer lutar sem braços e pernas, mas aqui não tratava-se de comédia.

Saímos de lá e vimos a Sílvia Chueire. Estava acompanhada do escritor português Paulo José Miranda, que me presenteou com um livro de sua autoria onde a ficção entrelaça-se com metáforas sempre musicais. Li um pouco e parece tratar-se de algo muito bom. Recebeu alguns prêmios, mas esqueci-me deles. Desculpa, Paulo. Os dois foram encantadores e Paulo fez-nos dar risadas com suas histórias, além de revelar-se um exímio conhecedor de futebol.

** Atualização feita no mesmo dia, às 14h40. Nos comentários a este post, o Paulo explica: O prémio que esqueceste é o primeiro prémio José Saramago (que é extensivo a todos os países de língua portuguesa). Mas não tem problema, não! Problema mesmo é essa sua fixação pelo SLB (Benfica). Abraço, Paulo. **

À noite, chegou a vez de Salman Rushdie (O Equilibrista), que fez uma mesa muito alegre, inteligente e comovente. Fez a platéia emocionar-se – é um perfeito ator! – durante a leitura de um trecho de seu último livro em que refere-se a sua Caxemira natal, depois endureceu dizendo que só um idiota escreveria um simples livro pastoril de memórias sobre a Caxemira, que a literatura deve espelhar a realidade e que impôs-se a destruição daquela Caxemira, tal como o fizeram indianos e paquistaneses. Disse que chorava ao escrever a segunda parte do livro e perguntava-se a cada momento se valia a pena torturar-se daquela forma, mas concluíra que tinha de ir em frente. Naquela noite, não houve festa, pois a Claudia e a Mônica tombaram de cansaço.

No último dia, almoçamos num indiano ótimo (Ganges) que a Claudia descobrira pelo cheiro, é claro… Foi nossa melhor refeição, não foi, Luiz? Depois, assistimos à palestra O Sabor da Letras, de Anthony Bourdain, ex-chef do badalado restaurante “Les Halles”, de Nova York, e que escreve sobre gastronomia, além de trafegar na área da literatura policial. O cara, que é excelente escritor, já era conhecido do Luiz e, por sugestão deste, era a leitura da Claudia durante a FLIP. Ela engoliu as 400 páginas do livro Cozinha Confidencial em tempo recorde e chegou entusiasmada, como todos nós, para assistir à mesa. Mas a entrevistadora era uma débil mental. Acho que foi ela quem tornou o excelente Bourdain tão desbocado e desmotivado.

Tiagón perguntou-me ontem: o chef que a Claudia engoliu é o Bourdain? Essa era a mesa que eu mais queria assistir. Li Cozinha Confidencial umas dez vezes… Viram? O cara tem leitores realmente qualificados.

Foi uma boa Flip. De resto, houve as merecidas babações para Clarice, o contínuo frio estranho que impediu as escunas de saírem e que nos atirou para dentro dos restaurantes, bares e casas de espetáculos (todos os músicos bons estavam lá, incrível!) e… para a pinga salvadora. Ah, e houve o susto de Parati, pois a prefeitura de Ouro Preto quer desesperadamente sediar a próxima edição. Porém Liz Calder já disse: no way, ficamos em Parati. O evento é daqui. Alívio dos nativos.

Como no ano passado, retiramos-nos já com saudades e planejando a Flip 2006. Porém, é indiscutível que o fato principal da edição 2005, do ponto de vista pessoal, foi a presença da Mônica. Ela é a pessoa com quem tenho a relação mais curiosa da blogosfera. Em dois anos de amizade, tivemos duas enormes brigas. A primeira, causada por um comentário horrível e desajeitado que fiz em seu blog, durou uma semana; a segunda durou muito mais, houve um afastamento de uns quatro meses e conseguimos conversar somente após a providencial intervenção de sua irmã . Não éramos obrigados a reatar, não somos parentes e nem nos conhecíamos pessoalmente, mas os vínculos que a blogosfera e as palavras criam não podem ser chamados de fracos ou descartáveis. Já amiguinhos de novo, acertamos a viagem dos dois casais através do MSN e foi a decisão mais correta. Estas viagens são de alto risco; podem ser chatas pelo contato intensivo, pelo comportamento inesperado de alguém, pelas manias que se revelam, por coisas que não sabemos avaliar previamente, etc. Fazíamos juntos as refeições e o festerê, mas hospedamo-nos em hotéis separados. Quando a coisa parecia demais, ou seja, quando já estávamos muito tempo juntos, o casal Mônica e Luiz sumia como que por encanto (como eles adivinharam a hora certa?), a ponto de eu pensar se não tinha cometido nenhuma grosseria (quem não é um pouquinho paranóico?). Depois, nos reencontrávamos e a mágica se restabelecia. A Claudia e o Luiz são pessoas encantadoras e tranqüilas, e demonstraram perfeita disponibilidade para conhecerem-se e conviverem, com cachaça ou sem. Sempre houve um sincero interesse de uns pelos outros, rimos muito (o Luiz é um piadista nato) e tudo foi simples como conversar com velhos amigos num bar conhecido. Passamos a noite de domingo na belíssima casa deles em São Paulo e, ao saírmos de madrugada (3h45) para ir ao aeroporto, pisamos – eu, a Claudia e o taxista – em volumosos cocôs de cachorros que decoravam a calçada. Dizem que é sorte.

(Mais, melhor e a origem das fotos: aqui.)

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