Julio Cortázar: o incrível escritor que encolheu

Publicado em 28 de agosto de 2012 no Sul21

Cena de “O Incrível Homem que Encolheu” (1957), filme B de Jack Arnold

Até meados da década de 80, Julio Cortázar (26 de agosto de 1914 – Paris, 12 de fevereiro de 1984), um gigante de quase dois metros de altura, era um escritor lido no mundo inteiro, era quase popular. O tempo e a reavaliação por parte da crítica e dos leitores, tratou de afastá-lo do lugar que ocupava naquela época, mas ainda é um escritor respeitado, principalmente em nosso país. Já fora do Brasil, principalmente na Argentina, Cortázar foi desconstruído primeiramente pela crítica, que jogou seu ácido sobre vários pedaços da ficção do autor, e depois passou a um segundo plano no gosto dos leitores. Hoje, é personagem secundário nas livrarias de Buenos Aires e Montevidéu, fato que não ocorreu com a maioria de seus pares.

Tal recuo não chegou a ser fatal para a memória do escritor, apesar da agressividade de alguns críticos hispano-americanos, mas o retirou da posição de escritor vanguardista para recolocá-lo mais atrás, num posto de autor de alguns grandes livros. O encolhimento de Cortázar deu-se principalmente no âmbito de que ele deixou de ser considerado um escritor revolucionário para acomodar-se numa poltrona mais conformista do ponto de vista estético. A internacionalmente respeitada Beatriz Sarlo foi uma das ensaístas que desmistificou a obra-magna de Cortázar, O Jogo da Amarelinha. Chamou-a de obra precocemente carcomida pelo tempo. Verdade. Sarlo diz que a possibilidade de ser lido em qualquer ordem de capítulos é um fato menor, até porque o sentido do livro não se altera se for adotada outra ordem, o que torna o expediente um acessório meramente pirotécnico.

Cortázar: autor popular apenas para uma ou duas gerações?

Cortázar está longe de ser um embuste, mas boa parte da obra do autor passou a ser considerada sob uma luz menos indulgente, na verdade sob a luz das repetições que afetariam seus romances e livros de contos escritos após de Todos os fogos o fogo. Com pouca margem de erro, pode-se projetar que o escritor argentino vá em futuro próximo fazer companhia a Hermann Hesse como autor de uma ou duas gerações.

Sue, a escolha francesa na época de Balzac. Quem entende?

As reavaliações artísticas não são novidade. Os contemporâneos de Balzac consideravam Eugène Sue o maior escritor francês de sua época. Quando comparamos os autores e ficamos sabemos que um dos principais intentos da vida de Balzac era o de desafiar a supremacia de Sue, passamos a desconfiar daquela contemporaneidade parisiense. O que pensavam? Sue é um escritor paupérrimo, certamente, mas sabia falar aos leitores europeus do século XIX. Balzac não está sozinho em sua luta contra a incompreensão da sociedade onde estava inserido. Quem era o maior compositor da época daquele que é hoje considerado o maior compositor de todos os tempos? Telemann. Sim, os contemporâneos de Bach não o reconheciam, mas amavam o hoje periférico Telemann. De alguma forma, Telemann, como Sue, sabiam o que o contexto onde estavam inseridos exigia. Não é pecado saber agradar a seus leitores imediatos.

Cortázar: Che Guevara como personagem

A “queda” de Cortázar — um escritor considerado vanguardista em sua época —  é um fenômeno. Ele não deve ser comparado a Sue em qualidade. Seu requinte formal, seu charme e suas histórias o colocaram na linha de frente dos ficcionistas mundiais de sua época. Basta dizer que seu conto A Autoestrada do Sul (de Todos os fogos o fogo) inspirou o filme Weekend (1967), de Jean-Luc Godard, e As Babas do Diabo (de As Armas Secretas)o clássico Blow-up (1966) de Michelangelo Antonioni. Ou seja, era um escritor que gozava de reconhecimento mundial. Na política, também era de vanguarda. Cortázar apoiou a revolução cubana, combateu as ditaduras argentinas, defendeu o Governo sandinista. Poucas vezes um escritor ousou entronizar um revolucionário como personagem de uma de suas narrativas como fez Cortázar com Che Guevara, o narrador asmático do conto Reunião, também de Todos os fogos o fogo.

Citamos três vezes Todos os fogos o fogo. Neste livro — que é uma espécie de súmula do Cortázar contista e é uma das últimas seleções de contos seus realmente boas — , já se nota sinais de repetição e cansaço. O clássico A Autoestrada do Sul, por exemplo, narra a história fantástica de um extraordinário engarrafamento numa rodovia que vai dar em Paris. Todos os carros parados. Por horas, dias, semanas, muda a estação e eles ali. Os gregos inventaram a “hipérbole”, que é a intensificação de um fato até o inconcebível, um superexagero que transforma os fatos em outra coisa. Os carros passam um ano inteiro parados na estrada. São criadas novas relações, um novo comércio, outra vida, outras disputas, outras formas de sobrevivência. Quando os carros voltam a andar, o leitor lamenta. Parece uma brilhante variação do também excelente A casa tomada, de 1951. Era 1966 e — pensa-se atualmente – a hora de Cortázar repensar sua literatura. Não foi o que aconteceu. Ele seguiu repetindo-se e publicando seus livros e uma velocidade cada vez maior.

Em sua casa, em Paris.

O professor de literatura latino-americana da Universidade de Tulane (EUA), Idelber Avelar, provocou a ira de muitos leitores brasileiros com uma crítica talvez demasiadamente acerba ao escritor argentino, mas que continha uma análise do esquema — ou fórmula — dos contos de Julio Cortázar que é difícil de rebater. Segundo Idelber, há uma:

(…) tediosa previsibilidade. Essa fórmula pode ser resumida em três ou quatro movimentos: 1) um personagem, sempre homem, topa-se com um lá-fora, um estrangeiro, um desconhecido: o réptil no zoológico em “Axolotl”, o acidente de moto em “La noche boca arriba”, a queda do avião em “La isla al mediodía”, a artista de cinema em “Queremos tanto a Brenda”, a Revolução Sandinista em “Apocalipsis en Solentiname” etc. 2) O choque produz no sujeito um desassossego que o descoloca, e instala uma esfera “fantástica” diferente da que estava presente na ordem anterior: o visitante do zoológico começa a transformar-se em réptil em “Axolotl”, o acidentado de “La noche boca arriba” começa a ter alucinações de que é um prisioneiro azteca, o passageiro do avião em “La isla al mediodía” passa a ter a visão perfeita da ilha, o fã começa a se fundir com a atriz em “Queremos tanto a Brenda”, as fotografias tiradas na Nicarágua começam a revelar uma realidade terrível que o protagonista não havia visto etc. 3) O conto conclui com a esfera “fantástica” coexistindo com ou substituindo a realidade anterior, enquanto o leitor sente que, catarticamente, passou por uma purgação, uma aventura através da qual a ficção lhe deu o vislumbre de uma outra dimensão. A execução desses passos é intercalada com pitadas de humor piegas à la María Elena Walsh, algumas piadas machistas e um ou outro comentário supostamente high-brow sobre alguma esfera da cultura de massas, em geral o jazz.

A previsibilidade é tal que basta ler sete ou oito contos de Cortázar – falo dos textos posteriores a Bestiário – para que se adivinhe, sem muitos problemas, como terminarão os outros relatos. Leia Todos os fogos, o fogo, e depois faça o exercício com As armas secretas. É muito mais fácil que adivinhar final de telenovela ou bang-bang.

Amor ao jazz, o cult repetidamente citado | Foto: Alberto Jonquieres

Mas a época de Cortázar aprovava. Quando Idelber fala em comentários intelectuais sobre o jazz, lembramos que o aval de Cortázar era importante para muitos ouvintes iniciantes do gênero. O jazz foi tema e fonte em grande parte de sua obra literária de forma tão insistente que hoje o autor nos deixa a impressão de abraçar uma espécie de pedagogia jazzística. Tal postura sobre este e outros assuntos empurra-lhe um fardo que, há 30 anos, ninguém esperaria que Cortázar recebesse: o de escritor para adolescentes, a de um autor para pessoas em formação. É o que diz, por exemplo, o excelente ficcionista César Aira, que afirma que o que ficará de Julio Cortázar serão os livros de contos Bestiário e Todos os fogos o fogo.

Neste sentido, ocupa uma posição singular o livro Histórias de Cronópios e de Famas. Publicado em 1962, o livro oferece narrativas hilariantes dentro de um mundo dividido entre “cronópios”, “famas” e “esperanças”. Os cronópios são distraídos e poéticos. São indiferentes ao secular, sofrem acidentes, choram, perdem seus pertences, atrasam-se, viajam levando coisas inúteis. As narrativas dedicadas a eles torna-os irresistivelmente simpáticos e sedutores. Os famas são o inverso. Objetivos, são organizados, práticos e cuidadosos. Quando viajam, por exemplo, pesquisam preços e a qualidade dos lençóis de cada local onde ficarão. Na volta, fazem álbuns de fotografias. Suas histórias são as mais engraçadas por suas compulsões. Já as esperanças são a maioria silenciosa. Deixam-se levar. Este pequeno volume é hoje indicado em escolas hispano-americanas como uma hilariante introdução de jovens ao mundo da literatura. Ou seja, é encarado efetivamente de outra forma daquela com que era lido anos atrás.

Zweig, famoso nos anos 20, hoje é pouco lembrado, mesmo no Brasil, para onde veio.

Porém, no Brasil, o prestígio de Cortázar segue estranhamente inabalado. Espécie de novo Stefan Zweig, Cortázar segue com uma legião de entusiastas em nosso país. É um fenômeno brasileiro. Vindo de uma literatura cujo prestígio mundial iniciou com a descoberta de Jorge Luis Borges nos anos 60, principalmente pela França, que na época era um país capaz de consagrar um escritor, Cortázar, segundo Beatriz Sarlo, viu-se na ponta de lança da internacionalização da literatura latino-americana por duas razões: o primeira é o desenvolvimento da própria literatura da região e a segunda é a propaganda da Revolução Cubana. Autores que se identificavam com Cuba ganharam rápida repercussão internacional. Esse é exatamente o caso de Cortázar e do colombiano Gabriel García Márquez, mas não de Borges, de Juan José Saer, do mexicano Juan Rulfo ou do uruguaio Juan Carlos Onetti, que seriam, sem dúvida alguma, escritores muito maiores.

A América espanhola parece concordar com estas palavras. O Brasil é que não.

Os anos 60  e 70, décadas de grande sucesso de Cortázar, eram muito estranhos.

Relatório Pessoal sobre a Flip 2005

Publicado em 13 de julho de 2005

Quando saímos de Porto Alegre, o termômetro que temos em frente de casa indicava 3 graus, mas quando chegamos a São Paulo estava quente e eu já suava. A Mônica, do Crônicas Mônica, e seu marido vieram nos buscar em Cumbica e fomos direto a Parati. Viagem boa, conversa fácil. Compramos os ingressos para as mesas que nos interessavam e finalizamos o primeiro dia indo ao show de Paulinho da Viola. Um espanto. Duas horas de clássicos e de algumas músicas novas. Nem deu para sentir o inimigo insidioso que preparava-se. Quando saímos do espetáculo, ele já estava armado: um inesperado frio de rachar. Mesmo querendo dar uma de gaúcho e desejando dizer que tantos agasalhos era frescura de cariocas, não havia como negar. Eu tremia e representava mal a coragem gaúcha para o frio.

Então, começamos a nos aquecer com a pinga de Parati. Para quem não está acostumado a beber álcool, aquilo tinha um efeito muito confortável. O frio passava e já não sabia se nossos amigos Mônica e Luiz eram realmente agradáveis e engraçados ou se era apenas mais um dos efeitos das Salinas, Nêgas Fulos, Coqueiros e Santa-Não-Sei-O-Quê que bebíamos. O resultado no outro dia? Nada. Nenhuma dor de cabeça, só uma vontade louca de dormir que nos fez perder as primeiras palestras da FLIP.

Conseguimos apenas assistir à mesa 3, às 15h do dia seguinte. Marina Colasanti, Vilma Arêas e Benedito Nunes falavam sobre Clarice. Apesar do enorme conhecimento de Vilma, foi médio. Ficou a impressão de que se ela estivesse sozinha, seria fantástico. Depois pulamos para a mesa de David Grossman e Michel Ondaatje, que foi monótona para quem não conhecia suas obras. Eles se referiam demasiadamente a questões judaicas bem conhecidas e Grossman parecia muito ressentido com o mundo, enquanto Ondaatje queria falar sobre poesia. Havia um chiado preocupante que parecia sair dos altos falantes. Uma falha técnica? Não! Era a chuva, que viera para acompanhar o frio. Fomos para o Restaurante do Fogo. Ali, eles flambam tudo com cachaça e é aquele fogaréu. Entramos molhados pela chuva fria e começamos a função tomando uma Gabriela, que é uma cachaça licorosa, com cravo e canela. Muito boa. A comida era excelente, apesar das porções resumidas. Resolvemos reforçar o estômago com uma sobremesa. Entramos num bar em que havia música esplêndida de jazz e bossa nova. Os caras eram ótimos mesmo. Não sei quem eram. Comemos e ficamos assistindo ao grupo acompanhados novamente daquele líquido, agora em versão incolor, apesar do apelido de “branquinha”. Ficamos com sono – eu e a Claudia – e fomos para o hotel. Perdi o grande momento em que a Mônica foi convidada a cantar desafinada, ops, Desafinado, Garota de Ipanema e todo o cerne do repertório jobiniano. Ela costuma cantar enquanto caminha, enquanto anda de carro, enquanto come, ela está sempre cantando. Tem uma voz grave, rouca e afinada. Cantava em sua mesa no bar e foi chamada ao palco. O problema é que seu marido começou a fazer gestos indicando que o couvert teria de ser dividido entre ele – agora travestido de empresário – e os músicos; desta forma, sua carreira foi abortada por uma dispensa entre risos. Perdi tudo isto! E, para completar, as fotos estão sob inflexível censura.

No dia seguinte, tornamo-nos intelectuais sérios. Assistimos à melhor palestra da FLIP: Beatriz Sarlo e Roberto Schwarz (Um Lugar para as Idéias). Deveria ter sido gravada. Foi uma inesquecível lição sobre Jorge Luis Borges, Machado de Assis, engajamento, compromisso intelectual e Juan José Saer.

Fomos almoçar no Bartolomeu, que tem boa comida e uma loira gostosa que olhava para mim e que provocou ciúmes não na Claudia, mas no Luiz, pois ele não fora aquinhoado com os mesmos olhares… Depois chegaram outras mulheres lindas – lindas mesmo – e ele dizia: tudo bem, me dá a pior e eu fico satisfeito! Eu e a Mônica ficamos boiando enquanto ele e a Claudia conversavam de forma minuciosa sobre comida. Antes de 2002, não conhecia pessoas assim. A Claudia estava encantada, porque o Luiz “pensava” a comida de forma semelhante a dela. Trocavam receitas e receitas, inventavam pratos, faziam variações mentais a respeito e elas pioravam ou melhoravam. Concordavam em tudo e reviravam os olhos de prazer, enquanto eu e a Mônica observávamos. E informo-lhes que estavam sempre sóbrios. (Descobri um fato que desconhecia. Esses chefs em potencial escolhem seus restaurantes pelo cheiro. É ele que determina se a comida oferecida é boa. Estou definitivamente fora desta especialidade. Sou um insensível.)

Deixamos minha loira e fomos para Orhan Pamuk (Mar de Histórias II: As Mil e uma Noites). A Flip tinha engrenado. O turco Pamuk é uma metralhadora informativa. Explicou-nos a imensa influência de Borges na divulgação das Mil e Uma Noites no mundo e a visão do oriente e do ocidente sobre o livro. Pamuk não esperava pelas perguntas, interrompia o entrevistador, sorria aparentemente sem motivo, mexia pernas e mãos para falar, era de tal forma agitado que era difícil manter a atenção em seu discurso. Depois de uma hora, a Claudia irritou-se e disse que não conseguia mais fixar sua atenção naquele maluco. Foi embora, enquanto eu jogava o corpo para a frente, tentando não perder nada do diferenciado conhecimento daquele homem que estava física e intelectualmente sobre aquela ponte de Istambul que é Àsia de um lado e Europa de outro e que tomava os dois mundos num só olhar. Outra grande palestra. À noite, assistimos a um recital es-pe-ta-cu-lar de Hamilton de Holanda. Garanto-lhes que o homem é um gênio e que nunca tinha visto alguém tocar bandolim daquela maneira.

O dia seguinte começou com a concorrida mesa de Arnaldo Jabor e do rapper MV Bill. Não a assisti, mas toda Parati estava lá. A mesa seguinte teve uma Parati desatenta e dispersa, mas foi do mesmo nível da de Schwarz e Sarlo. Chamava-se Zona de Conflito e foram entrevistados os correspondentes de guerra Jon Lee Anderson (Guerra do Iraque) e Pedro Rosa Mendes (Guerra de Angola). O educadíssmo americano Anderson cedeu grande parte de seu tempo para que o português falasse sobre uma guerra desconhecida e sobre o seu multi-premiado livro Baía dos Tigres, que descreve a guerra. Desculpem, não dá para resumir. Ouvimos um tremendo documento humano sobre uma população paupérima – e em grande parte mutilada pelas minas – subjugada por interesses de vários países, entre eles Portugal, Estados Unidos, Cuba e Brasil (Petrobrás e Odebrecht) e curvado por interesses tribais e de grupos armados como UNITA, MPLA, FNLA, FRELIMO, RENAMO, etc., etc. etc., além de por ditadores riquíssimos que dominam o cenário, o qual é literalmente tão minado e estropiado que criou uma cultura dantesca. Por exemplo, alguns angolanos cortam suas vacas a fim de tirar-lhe alguns bifes, depois, costuram alguns pontos e tratam de recuperá-la, pois não podem sobreviver sem ela. Assim, todos são mutilados. Lembrei do Holy Grail (do Monty Phyton), lembrei daquele guerreiro que quer lutar sem braços e pernas, mas aqui não tratava-se de comédia.

Saímos de lá e vimos a Sílvia Chueire. Estava acompanhada do escritor português Paulo José Miranda, que me presenteou com um livro de sua autoria onde a ficção entrelaça-se com metáforas sempre musicais. Li um pouco e parece tratar-se de algo muito bom. Recebeu alguns prêmios, mas esqueci-me deles. Desculpa, Paulo. Os dois foram encantadores e Paulo fez-nos dar risadas com suas histórias, além de revelar-se um exímio conhecedor de futebol.

** Atualização feita no mesmo dia, às 14h40. Nos comentários a este post, o Paulo explica: O prémio que esqueceste é o primeiro prémio José Saramago (que é extensivo a todos os países de língua portuguesa). Mas não tem problema, não! Problema mesmo é essa sua fixação pelo SLB (Benfica). Abraço, Paulo. **

À noite, chegou a vez de Salman Rushdie (O Equilibrista), que fez uma mesa muito alegre, inteligente e comovente. Fez a platéia emocionar-se – é um perfeito ator! – durante a leitura de um trecho de seu último livro em que refere-se a sua Caxemira natal, depois endureceu dizendo que só um idiota escreveria um simples livro pastoril de memórias sobre a Caxemira, que a literatura deve espelhar a realidade e que impôs-se a destruição daquela Caxemira, tal como o fizeram indianos e paquistaneses. Disse que chorava ao escrever a segunda parte do livro e perguntava-se a cada momento se valia a pena torturar-se daquela forma, mas concluíra que tinha de ir em frente. Naquela noite, não houve festa, pois a Claudia e a Mônica tombaram de cansaço.

No último dia, almoçamos num indiano ótimo (Ganges) que a Claudia descobrira pelo cheiro, é claro… Foi nossa melhor refeição, não foi, Luiz? Depois, assistimos à palestra O Sabor da Letras, de Anthony Bourdain, ex-chef do badalado restaurante “Les Halles”, de Nova York, e que escreve sobre gastronomia, além de trafegar na área da literatura policial. O cara, que é excelente escritor, já era conhecido do Luiz e, por sugestão deste, era a leitura da Claudia durante a FLIP. Ela engoliu as 400 páginas do livro Cozinha Confidencial em tempo recorde e chegou entusiasmada, como todos nós, para assistir à mesa. Mas a entrevistadora era uma débil mental. Acho que foi ela quem tornou o excelente Bourdain tão desbocado e desmotivado.

Tiagón perguntou-me ontem: o chef que a Claudia engoliu é o Bourdain? Essa era a mesa que eu mais queria assistir. Li Cozinha Confidencial umas dez vezes… Viram? O cara tem leitores realmente qualificados.

Foi uma boa Flip. De resto, houve as merecidas babações para Clarice, o contínuo frio estranho que impediu as escunas de saírem e que nos atirou para dentro dos restaurantes, bares e casas de espetáculos (todos os músicos bons estavam lá, incrível!) e… para a pinga salvadora. Ah, e houve o susto de Parati, pois a prefeitura de Ouro Preto quer desesperadamente sediar a próxima edição. Porém Liz Calder já disse: no way, ficamos em Parati. O evento é daqui. Alívio dos nativos.

Como no ano passado, retiramos-nos já com saudades e planejando a Flip 2006. Porém, é indiscutível que o fato principal da edição 2005, do ponto de vista pessoal, foi a presença da Mônica. Ela é a pessoa com quem tenho a relação mais curiosa da blogosfera. Em dois anos de amizade, tivemos duas enormes brigas. A primeira, causada por um comentário horrível e desajeitado que fiz em seu blog, durou uma semana; a segunda durou muito mais, houve um afastamento de uns quatro meses e conseguimos conversar somente após a providencial intervenção de sua irmã . Não éramos obrigados a reatar, não somos parentes e nem nos conhecíamos pessoalmente, mas os vínculos que a blogosfera e as palavras criam não podem ser chamados de fracos ou descartáveis. Já amiguinhos de novo, acertamos a viagem dos dois casais através do MSN e foi a decisão mais correta. Estas viagens são de alto risco; podem ser chatas pelo contato intensivo, pelo comportamento inesperado de alguém, pelas manias que se revelam, por coisas que não sabemos avaliar previamente, etc. Fazíamos juntos as refeições e o festerê, mas hospedamo-nos em hotéis separados. Quando a coisa parecia demais, ou seja, quando já estávamos muito tempo juntos, o casal Mônica e Luiz sumia como que por encanto (como eles adivinharam a hora certa?), a ponto de eu pensar se não tinha cometido nenhuma grosseria (quem não é um pouquinho paranóico?). Depois, nos reencontrávamos e a mágica se restabelecia. A Claudia e o Luiz são pessoas encantadoras e tranqüilas, e demonstraram perfeita disponibilidade para conhecerem-se e conviverem, com cachaça ou sem. Sempre houve um sincero interesse de uns pelos outros, rimos muito (o Luiz é um piadista nato) e tudo foi simples como conversar com velhos amigos num bar conhecido. Passamos a noite de domingo na belíssima casa deles em São Paulo e, ao saírmos de madrugada (3h45) para ir ao aeroporto, pisamos – eu, a Claudia e o taxista – em volumosos cocôs de cachorros que decoravam a calçada. Dizem que é sorte.

(Mais, melhor e a origem das fotos: aqui.)