Ospa em noite de zumbis, trompetes e porvires

Ospa em noite de zumbis, trompetes e porvires
A maestrina Valentina Peleggi durante os ensaios para o concerto de ontem. Clique para ampliar.
A maestrina Valentina Peleggi durante os ensaios para o concerto de ontem | Foto de Augusto Maurer | Clique para ampliar.

Foram tantas emoções… Entrei num camarote lateral do Theatro São Pedro, olhei para baixo, observando a plateia presente, e lá estava minha ex-ex toda sorridente. Ergui os olhos e, bem na minha frente, no camarote oposto, estava minha ex com má cara. Estava começando a ficar desconfiado de uma armação cósmica quando olhei ainda mais para cima e vi que ali se encontrava a PMDB. Então, notei que minha companhia no camarote era, nada mais nada menos, do que a atual cônjuge do ex-marido de minha futura mulher, Elena, que estava no palco.

Eu pensava que era o James Stewart de A Janela Indiscreta, assistindo não a um desfile de paixões amorosas, mas a uma fusão de passado, presente e futuro… Quando já sentia um gesso em minha perna, a qual já começava a coçar à espera de Grace Kelly… Quando conjeturava sobre o mito de que, na hora da morte, a gente revê toda nossa vida… Bem, então, no final do concerto, vieram três trompetistas da orquestra para trombetear junto ao meu ouvido, pois Sibelius quisera colocá-los fora do palco. Adivinhem onde eles escolheram ir? Do meu ladinho, ora! Ainda bem que sou um sujeito brando, ameno e pacífico, nada paranoico e sempre disposto a achar graça de tudo. Ou seja, se não fosse o bobo alegre que sou, sucumbiria aos fatos.

Bem, o programa da noite:

Pietro Mascagni: Preludio e Intermezzo “Cavalleria Rusticana”
Erich Wolfgang Korngold: Concerto para violino
Maurice Ravel: Ma Mère l’Oye
Jean Sibelius: Karelia Suite

Regente: Valentina Peleggi
Solista: Cármelo de los Santos (violino)

O concerto iniciou por uma abertura, o que é uma redundância apenas aparente. Nas garrafas, a diversão começa para abertura da tampa; já nos concertos, a diversão não precisa começar por uma abertura, como a Ospa infelizmente convencionou para 2015. O Preludio e Intermezzo de “Cavalleria Rusticana” foi a mais feliz das aberturas de concerto deste ano, o que não é grande mérito, é mais ou menos como ganhar por 2 a 1 da União Frederiquense. Mas pudemos ver uma novidade no palco, o trabalho claro da maestrina Valentina Peleggi.

Intermezzo: minha opinião sobre maestrinas foi dada quando fiz a tradução deste belíssimo texto de Barbara Hannigan. Concordo inteiramente com ela e vou tratar Peleggi sem citar mais o fato de ela ser uma mulher no pódio. Deveria ser normal.

O Concerto para violino de Erich Wolfgang Korngold é mal disfarçada música para cinema. Nos anos 30 e 40 do século passado, o austríaco Korngold trabalhou em Hollywood fazendo música para filmes. Suas trilhas sonoras impulsionavam adequadamente as cenas e eram bem recebidas por diretores e público, o que o tornou famoso nos EUA. É óbvio que conheceu Bernard Herrmann, autor da banda sonora de A Janela Indiscreta. Mas não conheceu John Williams, autor do bis, a canção-tema de A Lista de Schindler. Nestas duas intervenções, o violinista Cármelo de los Santos foi impecável, mostrando-se um cantor muito superior àquilo que cantava, obras dispensáveis.

O livro de Perrault é de 1695
O livro de Perrault é de 1695

Conforme o esperado, a melhor peça da noite foi Ma Mère l’Oye (Mamãe Gansa), de Ravel, um sujeito que, assim como Brahms, era infalível. A peça foi escrita originalmente em 1910 para piano a quatro mãos, como um presente a duas crianças próximas do compositor, Mimie e Jean Godebsky. Foi inspirada em contos de fada de Charles Perrault e da condessa d’Aulnoy. A Mamãe Gansa não é um personagem ficcional específico, ela representa as mulheres contadoras de histórias, normalmente mães, na época. É uma atividade gloriosa. Um ano depois, em 1911, a peça foi orquestrada e ampliada pelo próprio Ravel, que a transformou num balé. Aqui, a segurança e os gestos claros de Valentina Peleggi — às vezes apenas um olhar mais significativo — fizeram a diferença, ao lado do flautista Artur Elias e do corne inglês de Paulo Calloni.

Esta igreja existe na Carélia e e foi feita de madeira, OK? Clique para amplar.
Esta igreja existe na Carélia e e foi feita de madeira, OK? Clique para ampliar.

A função foi finalizada pela alegria nórdica da Suíte Karelia. Não, não cairei no mau gosto de fazer um trocadalho do carilho com o título da peça do finlandês que completa 150 anos de nascimento este ano.

Esta suíte é um dos primeiros trabalhos de Sibelius e é muito popular. Ele tinha especial afeto pela região da Karelia (ou Carélia), que é pouco habitada e fica bem na fronteira com a Rússia, banhada em parte pelo Báltico. Em anos anteriores, ele havia encontrado inspiração na música local e, depois, até passou sua lua de mel lá. O caráter simples da música é deliberado: a intenção estética é a de capturar a pureza da base folclórica. É claro, sabemos que Sibelius foi um mega-nacionalista.

É curioso, no Sibelius, quando os três trompetes, los tres amigos, subiram até o meu camarote para me mostrar que aquela não era uma noite qualquer, pude ouvir e separar perfeitamente o som de cada um deles. E é notável a leveza, delicadeza e profundidade do som de Elieser Ribeiro.

À saída, na porta do teatro, a Sofia Cortese nos proporcionou enorme alegria ao chegar para a Elena e dizer de forma espontânea algo mais ou menos assim: como é bom te ver tocar, a tua figura, a tua postura, são muito bonitas de se ver. De minha parte, eu concordo integralmente e acrescento que ela é bonita de se ouvir, também.

Para vocês verem como falo a verdade: os três trompetistas e eu, à direita
Para vocês verem como falo a verdade: os três trompetistas e eu, à direita | Foto: Ana Eidam / Ospa