Clube da Esquina, um jovem aos 40 anos

Publicado originalmente no Sul21 em 1º de maio de 2012

Clube da Esquina (1972). Clique para ampliar.

A capa de Clube da Esquina, fundamental álbum duplo de Milton Nascimento e Lô Borges, que completou 40 anos no mês de abril deste ano, era enganadora. Nada poderia ser mais despojada do que a fotografia dos dois meninos ao lado. Durante muito tempo pensou-se que era uma foto da infância de Bituca e Lô — de Milton Nascimento e seu parceiro Lô Borges. Não. É uma foto de Tonho e Cacau, clicados pelo  fotógrafo Cafi (Carlos da Silva Assunção Filho) a caminho da fazenda da família de um dos letristas do disco, Ronaldo Bastos. Eles nunca mais foram reencontrados pelos autores do disco e pelo fotógrafo. Apenas no mês passado, o jornal o Estado de Minas colocou-se em campo atrás da dupla. Após mais de 50 consultas no entorno da cidade fluminense de Nova Friburgo, sempre com o disco de vinil na mão, os repórteres Ana Clara Brant e Carlos Marcelo chegaram à dupla, que ainda reside nas redondezas.

Ouvindo-se o disco hoje, ele impressiona por vários motivos e gera alguma incompreensão, a começar pelo mais datado dos questionamentos: por que a maioria dos críticos da época o destroçaram? Pensando retrospectivamente na música que havia na época, só podemos colocar Clube da Esquina ao lado dos trabalhos de Caetano, Gil e dos Mutantes. E mais: num contexto onde ainda eram comuns gravações sem o menor apuro técnico, o disco de Milton e Lô estava atualizado não apenas com a qualidade dos trabalhos dos Beatles e do rock progressivo do exterior, mas com a irreverência dos Mutantes, ao menos no âmbito dos arranjos. E ainda mais: ele significava um passo adiante ao saltar sobre os ombros da bossa nova e da MPB para ver mais adiante. Tão adiante que, ao ouvirmos o disco hoje, não achamos que esteja entrando na quinta década.

Milton e Lô Borges compondo na sala da casa dos pais de Lô, em BH | museuclubedaesquina.org

Ele vem de uma época bem diferente da atual. Os discos de vinil eram caros e a maioria das pessoas comprava um ou dois discos por mês. Como disse o jornalista e escritor Luiz Biajoni, naquela época, antes do surgimento dos CDs e da digitalização da música, nós “economizávamos uma grana suada para comprar um bolachão de vinte e poucos minutos de cada lado a fim de escutá-lo um mês inteiro, pois a grana para o próximo disco só pingaria no mês seguinte”. Segundo Biajoni, esta atenção ao artefato cultural tornava mais significativos os trabalhos dos músicos, principalmente se comparada com a verdadeira “Síndrome de Babel” que hoje nos deixa armazenar milhares de discos num computador para ouvi-los sem maior carinho. Como Clube da Esquina era um álbum duplo, ele requeria um investimento dobrado — um investimento de dois meses, se pensarmos em como comprávamos discos na época —  e era um considerável objeto de cobiça. Tal fato reforçava em muito o caráter mítico do disco. Poucos eleitos o possuíam em casa (a não ser que fossem filhos — caso deste comentarista — de um pai melômano e de ouvidos abertos). Então, ele circulava muito em fitas cassete, depois do proprietário dizer com ar casual: “Eu tenho o disco em casa. Se vocês quiserem, posso gravar”.

A surpresa deste disco de Milton Nascimento era a presença de Lô Borges como co-autor. Afinal, Milton já tinha quatro discos gravados e uma firme reputação como cantor e compositor. Era o autor de Travessia, de Morro Velho e de alguns outros sucessos. Repentinamente, ele fez à gravadora Odeon dois pedidos quase escandalosos: o de gravar um álbum duplo e o de dar a parceria do álbum ao desconhecido Lô Borges. “Eu era um menino, aquilo era uma novidade completa em minha vida porque eu não tinha nem carreira musical. Era um iniciante, não sabia nem se queria ser um músico profissional. Minha única credencial era a de ser co-autor de Para Lennon e McCartney”, comenta Lô.

Porém, Milton Nascimento estava determinado a gravar Clube da Esquina de qualquer maneira e de não alterar o projeto, segundo Lô Borges: “Quando o Milton fez o convite-convocação, a gravadora ainda nem tinha topado a gravação do disco. Ele tinha um contrato com a Odeon e foi logo dizendo que, se não topassem fazer a coisa,  procuraria outro grupo para oferecer o projeto”. Havia também a questão familiar. Lô tinha 18 anos e precisaria ir ao Rio de Janeiro gravar o disco. “Estávamos debaixo de uma ditadura barra pesada. Minha mãe não queria que eu fosse, eu viajei meio rompido com a família. Só depois eles perceberam que era algo significativo na minha vida. Era aquele terror da ditadura, né? Três ou quatro pessoas morando juntas em uma casa já eram consideradas subversivas”, diz.

E foram morar na praia de Piratininga, em Niterói. “Milton ficava num quarto compondo, eu ficava noutro e o Beto Guedes circulando de quarto em quarto para ver o que o Bituca estava produzindo e o que eu estava fazendo”, recorda-se. “Eu era meio hippie, o Milton era mais politizado”.

Show no Clube Trespontano na época da composição de Travessia” (Três Pontas - MG) | museuclubedaesquina.org

O resultado foi um disco de referência para músicos e surpreendente para os ouvintes até hoje. Tantas daquelas canções foram regravadas por outros artistas que o Clube da Esquina mais parece uma antologia e não a produção de um artista em um período limitado de sua vida; isto é, não parece um disco rotineiro. Das 21 canções do álbum duplo, várias foram regravadas e estão na memória dos que ouvem MPB. Por exemplo, no mínimo Tudo que você podia ser, Cais, O trem azul, Cravo e Canela, San Vicente, Um girassol da cor do seu cabelo, Paisagem da JanelaMe deixa em paz, Nada será como antes, Saídas e bandeiras e Clube da Esquina Nº 2, são onze canções frequentes em rádios de bom nível e em bares idem. Boa parte delas fazem parte da memória comum de música brasileira presente em nossos cérebros.

Mas o que diferencia este disco de seus antecessores? Por que , além das razões que elencamos, ele é tão cultuado? Que novidades traz?

Em primeiríssimo lugar, traz a qualidade de Milton Nascimento como compositor. E não foi um caso único em sua carreira. Naqueles anos 70, Milton produziu maravilhas, uma atrás da outra. Era um artista sofisticado. Tanto que depois criou o altamente experimental Milagre dos Peixes, fruto de uma mente inquieta e dos problemas que tinha com a Odeon, e depois os impecáveis Minas, Geraes, Clube da Esquina Nº 2 (outro álbum duplo), Sentinela, Caçador de mim, ou seja, se o Clube não foi o caso único da produção de grande música na carreira de Milton, foi o primeiro.

Divulgação

Em segundo lugar, a diversidade. As fontes que Milton Nascimento — digamos claramente que Clube da Esquina é muito mais Milton que Lô — bebia. O caldeirão é grande, grosso e complexo. Na época, todos ouviam Beatles sem parar e Milton (e também Lô), faziam confessadamente o mesmo. Mas Milton aprofundou a influência do jazz que a Bossa Nova já apresentava e colocou uma batida latino-americana, chegando depois a cantar músicas com Mercedes Sosa, além de interpretar Violeta Parra, Victor Jara e os cubanos Pablo Milanes e Silvio Rodríguez. E não é só: há a presença do folclore a da religiosidade mineira.

Em terceiro lugar, a qualidade dos músicos, a presença de solos instrumentais — tão raros naquela época — e o uso de orquestra (como em Um Girassol da Cor do Seu Cabelo) quando estavam começando a aparecer os malfadados, apesar de econômicos, teclados.

Para completar, a repercussão do trabalho foi amplificada por ninguém menos do que Elis Regina, que tinha em Milton seu compositor preferido, no que era correspondida como cantora. Apesar de Milton ser um imenso intérprete, a partir do Clube da Esquina, passou a lançar suas canções com outros artistas como Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Chico Buarque, Simone, Clementina de Jesus, Gilberto Gil, Beto Guedes, Herbie Hancock, Paul Simon, Peter Gabriel, etc. Então, muitos de seus trabalhos posteriores eram coletâneas de canções já divulgadas, o que diminuiu a importância destes discos, pois as canções se tornavam conhecidas por outras vias.

Finalizando esta lista de razões e elogios ao disco, há o fato de Clube da Esquina ser um nome de disco, mas também de um movimento. Espécie de Tropicália mineira, o Clube da Esquina era formado por Milton, os irmãos Borges (Lô, Márcio e Marilton), Ronaldo Bastos, Fernando Brant, Tavinho Moura, Wagner Tiso, Beto Guedes, Flávio Venturini, Toninho Horta, e os integrantes do 14 Bis.

Aliás, 1972 teve uma safra de discos talvez (um pouco) menores, mas também extraordinários. É o ano de Acabou Chorare, dos Novos Baianos;  de Expresso 2222, de Gil; de mais um tremendo disco de Elis Regina, chamado, para variar, Elis; de Transa, de Caetano Veloso… Um grande ano para a música brasileira, mesmo sob a ditadura.

O CD é difícil de encontrar? Nem tanto, principalmente fora do país (clique no link e observe a avaliação dos visitantes da Amazon). Os Clubes da Esquina 1 e 2 estão à venda em sites estrangeiros, como a citada Amazon.com, por exemplo, pois recentemente o estúdio Abbey Road, de Londres, remasterizou tudo.

Abaixo, a relação de canções do álbum:

Lado Um

1 “Tudo Que Você Podia Ser” (Lô Borges, Márcio Borges) – 2:56
Interpretação: Milton Nascimento
2 “Cais” (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos) – 2:45
Interpretação: Milton Nascimento
3 “O Trem Azul” (Lô Borges, Ronaldo Bastos) – 4:05
Interpretação: Lô Borges
4 “Saídas e Bandeiras nº 1” (Milton Nascimento, Fernando Brant) – 0:45
Interpretação: Beto Guedes e Milton Nascimento
5 “Nuvem Cigana” (Lô Borges, Ronaldo Bastos) – 3:00
Interpretação: Milton Nascimento
6 “Cravo e Canela” (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos) – 2:32
Interpretação: Lô Borges e Milton Nascimento


http://youtu.be/MVnfXLlrhPo

Lado Dois

1 “Dos Cruces” (Carmelo Larrea) – 5:22
Interpretação: Milton Nascimento
2 “Um Girassol da Cor do Seu Cabelo” (Lô Borges, Márcio Borges) – 4:13
Interpretação: Lô Borges
3 “San Vicente” (Milton Nascimento, Fernando Brant) – 2:47
Interpretação: Milton Nascimento
4 “Estrelas” (Lô Borges, Márcio Borges) – 0:29
Interpretação: Lô Borges
5 “Clube da Esquina nº 2” (Milton Nascimento, Lô Borges, Márcio Borges) – 3:39
Interpretação: Milton Nascimento


Lado Três

1 “Paisagem da Janela” (Lô Borges, Fernando Brant) – 2:58
Interpretação: Lô Borges
2 “Me Deixa em Paz” (Monsueto, Ayrton Amorim) – 3:06
Interpretação: Alaíde Costa e Milton Nascimento
3 “Os Povos” (Milton Nascimento, Márcio Borges) – 4:31
Interpretação: Milton Nascimento
4 “Saídas e Bandeiras nº 2” (Milton Nascimento, Fernando Brant) – 1:31
Interpretação: Beto Guedes e Milton Nascimento
5 “Um Gosto de Sol” (Milton Nascimento, Fernando Brant) – 4:21
Interpretação: Milton Nascimento


Lado Quatro

1 “Pelo Amor de Deus” (Milton Nascimento, Fernando Brant) – 2:06
Interpretação: Milton Nascimento
2 “Lilia” (Milton Nascimento) – 2:34
Interpretação: Milton Nascimento
3 “Trem de Doido” (Lô Borges, Márcio Borges) – 3:58
Interpretação: Lô Borges
4 “Nada Será Como Antes” (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos) – 3:24
Interpretação: Beto Guedes e Milton Nascimento
5 “Ao Que Vai Nascer” (Milton Nascimento, Fernando Brant) – 3:21
Interpretação: Milton Nascimento

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): III – Baía dos Tigres, de Pedro Rosa Mendes

Oh, mas quem é Pedro Rosa Mendes para estar numa lista de melhores livros? Bem, em primeiro lugar, o autor é um esplêndido escritor e jornalista português; em segundo lugar, minha lista não guarda ordem de precedência. Agora que já tomei esta medida profilática de me defender de meus sete leitores amantes dos grandes clássicos, vou tratar de explicar porque este livro é IMPRESSIONANTE.

Este livro é sobre coisas simples: a tranquilidade do medo e a vitalidade da morte. (…) A razão para tal projeto era a mais nobre de todas, ou seja, nenhuma em especial. As duas frases grifadas fazem parte da nota introdutória do livro. A que projeto refere-se Rosa Mendes? Em junho de 1997 ele chegou a Luanda, em Angola, às margens do Atlântico, com a ideia de atravessar a África até chegar a Quelimane, em Moçambique. No caminho, as sangrentíssimas guerras tribais e entre os países da região, minas por todo lado, além da pobreza absoluta, tanto material quanto moral. E fome. Para temperar um pouco mais a coisa, o autor descobre duas coisas em Luanda, uma boa e uma ruim. A boa: sua mulher lhe avisa que está grávida em Portugal, mas que ele terá o tempo necessário para a reportagem, pois seu rebento nascerá apenas dali a seis ou sete meses; a ruim: o prognóstico que recebe de todos com quem fala de seu plano: você não sobreviverá.

A voz do autor é serena e elegante. Não é uma história contada em ritmo frenético, o andamento é o do humanista que deseja ouvir e compreender todos os envolvidos. Estive na palestra de Rosa Mendes na Flip de 2005. Ele estava com Jon Lee Anderson — o americano falava sobre a Guerra do Iraque e o português sobre a Guerra de Angola — e Anderson fez uma pergunta curiosa ao português: Baía dos Tigres recebeu muitos prêmios destinados a livros de ficção, por quê? A resposta foi típica da pessoa modesta que pareceu ser Rosa Mendes. Ele deu muitas voltas até dizer que era em função da linguagem do livro. E, diante da insistência de Anderson, ele acabou deixando escapar: ora, é que acharam que era bem escrito e não devia misturar-se a textos jornalísticos. Anderson respondeu com a gargalhada de quem já sabia antecipadamente a resposta.

Para dar ideia do que é este livro — que reencontrei na semana passada numa estante da Siciliano –, vou resumir algumas das histórias. Como a do encontro com um técnico francês que estava no país para testar o efeito das minas. Umas explodiam assim, outras assado. Umas eram cedidas a um grupo e, puxa, matavam mesmo; então recebi outras e repassei ao lado contrário. Essas eram melhores, as pessoas ficavam efetivamente mutiladas, deixavam os caras bem feridos, davam um trabalhão às equipes. Querem mais? Que tal a história das famílias de angolanos que operam suas vacas a fim de tirar-lhe alguns bifes, depois as costuram com alguns pontos e tratam de recuperá-la, pois não podem sobreviver sem elas? Por falar em mutilações, que tais as que são feitas na genitália feminina das africanas? Mas o melhor do livro é a narrativa dos interesses envolvidos. Portugal, Estados Unidos, Cuba, Brasil (Petrobrás e Odebrecht), mais os de grupos armados como UNITA, MPLA, FNLA, FRELIMO, RENAMO, etc. Sobre tudo isso, a total falta de observadores internacionais.

É. Onde não há dinheiro, as “forças de paz” não aparecem e os direitos humanos não interessam. Não ocorre nem a venda da  “democracia salvadora” e de eleições livres. Um grande livro.

De Luanda (imagem recente retirada de um site angolano) ...
... a Quelimane.

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