As Cantatas de Bach e a recepção da música sacra pelos fiéis em Leipzig entre 1700-1750

As Cantatas de Bach e a recepção da música sacra pelos fiéis em Leipzig entre 1700-1750

Tenho ouvido tantas Cantatas que resolvi roubartilhar isso aqui. A fonte está neste link. Texto de Rebello Alvarenga.

Bach ora“Bach não tinha intenção de compor obras de arte musicais”

Bach peqPara qualquer amante da música clássica, as Cantatas de Bach são uma espécie de testamento religioso. Objetos de adoração, as Cantatas são, entre os músicos, focos de infindáveis discussões acerca da maneira mais correta de se interpretar a “intenção artística de Bach”, no propósito de chegar a um entendimento perfeito da voz deste “verdadeiro deus da música”. Quanto ao público, os mais ardentes fiéis da música bachiana correm atrás das melhores interpretações de suas Cantatas e Paixões na esperança de também alcançar a “verdade artística” de sua música. É inegável que a performance de uma Paixão Segundo São Matheus é encarada pelos amantes de Bach como a oportunidade de contemplar, pessoalmente, um “milagre acontecendo diante dos olhos”. Como verdadeiros fiéis, postam-se em silêncio contemplativo, absorvendo ao máximo tudo o que o texto musical bachiano oferece em “todo seu esplendor”. No entanto, a realidade acerca da percepção e atenção com a música sacra pelos contemporâneos de Bach é muito distante do que nossa apreciação contemporânea idealiza.

É preciso antes de tudo saber que Bach viveu em uma época no qual o conceito de obra de arte musical ainda não regulava nem as práticas musicais e nem a apreciação do público. Como aponta a filósofa Lydia Goehr, J. S. Bach jamais teve a intenção de compor uma obra de arte (Goehr, 2007, XLII). A música ainda não possuía o discurso sacralizador que consagra o objeto artístico como uma criação única, advinda da vontade de uma espécie de semideus criador, o artista. O ser cuja vida é dedicada à sua fé artística e apartada das demandas comuns da vida como um criador cuja obra é a expressão de uma verdade superior é um discurso romântico e ainda não estava presente na mentalidade dos contemporâneos de Bach (Goehr, 2007, p.208). Antes do século XIX, a música era subordinada a uma função específica cujos propósitos ultrapassavam o campo musical e as Cantatas de Bach não são exceção. O próprio comportamento do público numa sala de concertos no século XVIII era completamente diverso do nossos hábitos contemporâneos. Conversas, perambulações pela plateia, pessoas entrando e saindo eram comuns nos concertos naquele século.

Nada, no entanto, nos autoriza simplesmente transportar o comportamento do público de concerto ao comportamento de um fiel num serviço religioso. Isto seria de uma generalização grotesca. O que é curioso, porém, é que outros fatores nos levam a desvendar um cenário que possui muitos paralelos com o comportamento público nas salas de concerto do século XVIII. A nossa compreensão acerca das condições de recepção dos fiéis na época das composições das Cantatas de Bach evoluíram muito com estudos recentes, como os dedicados à compreensão da recepção da música sacra durante a primeira metade do século XVIII em Leipzig, realizado pela musicóloga Tanya Kevorkian, e às transições e transformações da sociedade centro europeia, escrito por Carol K. Baron. Tais estudos nos trazem um painel no mínimo muito curioso.

Leipzig e os frequentadores dos serviços religiosos nos tempos de Bach

Leipzig no século XVIII
Leipzig no século XVIII

Antes de adentrarmos nas questões específicas acerca da receptividade das Cantatas de Bach, é preciso entender um pouco acerca de Leipzig e o intenso turbilhão social que a cidade passava no período. Quando Bach chega em Leipzig no ano de 1723, após perder espaço como músico do príncipe Leopold von Anhalt-Köthen, a cidade era o mais importante centro comercial da Europa central (Kevorkian, 2004, p. 61). A sua população aumentou mais de 50 porcento entre os anos de 1700 a 1750, indo de 21.000 para 60.000 (Baron, 2006, p. 3). O livro de endereços de Leipzig registrava, em 1715, 29 casas de comércio de seda, 13 atacadistas de algodão, três de comércio de vinho e nove casas de câmbio (Rueb, 2001, p.162). Mercadores enriqueceram, erguendo novas casas, colecionando arte e construindo parques públicos. Fora isso, Leipzig era o principal centro de comércio de livros de toda a Europa central, possuindo, em 1700, 18 casas de publicação e livrarias (Baron, 2006, p.5). Além disso, Leipzig possuía uma grande liberdade no que concerne à impressão e distribuição de livros. Durante o período abordado, a venda de livros cuja temática era laica cresceu enormemente e o público alvo passou do especialista ao leigo (Cleve, 2006, p.89).

A vida religiosa também sofria o impacto deste cenário agitado. A religião manteve um papel importante na vida cotidiana da cidade. Quatro novas igrejas foram construídas entre 1698 e 1715 (Kervokian, 2004, p. 65). O público dos serviços religiosos era notável. Apenas nas Igrejas de Saint Thomas e Saint Nicholas, os assentos comportavam em torno de 2.500 pessoas cada. A maioria dos frequentadores vinham de famílias burguesas que possuíam propriedades. A principal divisão social era entre as elites locais (mercadores, conselheiros municipais e suas famílias) e artesãos (padeiros, ferreiros, celeiros e suas famílias). Os tipos de assento e sua localização dentro da igreja obedeciam às respectivas divisões de classe bem como a separação entre mulheres e homens (Kevorkian, 2006, p.175).

As Cantatas de Bach, o comportamento e a atenção do público

Interior da igreja de São Thomas onde muitas Cantatas de Bach foram apresentadas
Interior da igreja de São Thomas onde muitas Cantatas de Bach foram apresentadas

O serviço religioso era dividido em três partes. Durante a primeira hora, cantos, hinos, leituras de escrituras e uma Cantata eram executados. A segunda parte consistia no sermão, que também possuía a duração de uma hora. A comunhão era preparada, acompanhada de hinos religiosos ou uma Cantata, levando à parte final que consistia de anúncios, orações e benção final (Kevorkian, 2006, p. 175).

A maioria do público chegava durante a primeira hora do serviço, muitas vezes durante a performance de uma cantata. O objetivo de muitos era chegar no início do sermão e sair no final deste, pois este era considerado a parte mais importante de todo o serviço. Segundo Tanya Kevorkian, mesmo Bach chegava muitas vezes atrasado, ainda durante a primeira parte (Kevorkian, 2006, p. 177). Esta parte do serviço cumpria várias funções sociais. Muitas vezes o atraso de membros da elite estava ligado à sua entrada durante o serviço, chamando a atenção para si.

O comportamento do público era variado e surpreendente. Muitas vezes as pessoas ficavam se observando e trocavam cumprimentos com vizinhos e conhecidos que haviam acabado de chegar. Muitas igrejas enfrentavam problemas com relação aos fiéis. Muitos não obedeciam aos sinais de levantar e sentar, e muitos não erguiam as mãos e nem oravam no momento adequado. Estudantes da universidade costumavam cortejar mulheres visitando seus assentos. Muitos jogavam objetos na direção das moças na intenção de chamar as suas atenções, outros jovens faziam barulho no fundo da igreja.

Igreja de São Nicholas
Igreja de São Nicholas

Aqui é importante trazer um parênteses sublinhando o comportamento dos estudantes universitários de Leipzig. A música tomava grande parte do tempo dos estudantes fora das salas de aula. Eles estavam entre os mais talentosos e virtuosos músicos da cidade e eram os principais músicos de orquestra da cidade, trabalhando tanto na casa de ópera quanto nos serviços religiosos de Leipzig, executando muitas das cantatas de Bach. Suas reputações, no entanto, não eram das melhores. Muitas vezes eram associados à distúrbios públicos e confusões com senhorios. Muitos publicavam “literatura escandalosa” e tocavam “música decadente” nas ruas. Era, no entanto, nessas figuras polêmicas que a cidade tinha que depositar sua confiança. Muitos desses músicos estudantes eram, inclusive, auxiliares do Kantor da igreja (Kevorkian, 2004, p. 71).

Muitas coisas podiam, no entanto, também tirar os fiéis da atenção adequada da música e dos textos religiosos. O apelo visual era um deles. A decoração das Igrejas, as vestimentas coloridas, os objetos religiosos reluzentes costumavam tirar a atenção de muitos fiéis. Até a ornamentação do órgão era um motivo para a distração.

A questão do barulho no interior das igrejas, no entanto, nos chama mais a atenção. Como a Cantata era apresentada antes e depois do sermão, muitas pessoas estavam entrando e saindo e conversas paralelas ocorriam. Como aponta Kevorkian, a potência vocal e instrumental da música sacra do período era relativamente pequena. Certamente o barulho de fundo tirava muito da atenção e da capacidade de apreciação da música executada. Para muitas pessoas localizadas longe dos cantores e instrumentos, a música era praticamente inaudível (Kevorkian, 2006, p. 181). Deve-se deixar claro, no entanto, que obviamente, haviam aqueles cuja atenção para o serviço religioso e a música representavam o objetivo final de suas idas à igreja.

Surpreendentemente, a receptividade das Cantatas de Bach pode nos ensinar muito acerca das práticas musicais do período. Ligada a fatores alheios à própria música, a apreciação da música sacra no período dependia de inúmeros fatores externos. É na sala de concerto do século XIX, e não antes disso, que as obras sacras de Bach encontrarão o público atento e devoto da arte musical.

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Referências

BARON C. “Transitions, transformations, reversals: Rethinking Bach’s world, em Bach’s changing worlds: voices in community”, ed. Baron, C. (Sufolk: University of Rochester Press, 2006)

CLEVE, J. “Family Venues and Dysfunctional families: home life in the Moral Weeklies and Commedies of Bach’s Leipzig”, em Bach’s changing worlds: voices in community”, ed. Baron, C. (Sufolk: University of Rochester Press, 2006)

GOEHR, L. The immaginary museum of musical Works. An essay in the philosophy of music. New York: Oxford university press, 2007

KEVORKIAN T. “Changing times, changing music: ‘New Church music and musicians in Leipzig 1699-1750” em The Musician as Entrepreneur, 1700-1914: Managers, Charlatans, and Idealists. Ed, Weber, W. (Bloomington: Indiana University Press, 2004)

KEVORKIAN, T. “The reception of the cantata during Leipzig church services 100-1750”, em Bach’s changing worlds: voices in community”, ed. Baron, C. (Sufolk: University of Rochester Press, 2006)

RUEB, F. 48 variações sobre Bach. São Paulo: Companhia das Letras, 2001

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330 anos do gênio de Johann Sebastian Bach

330 anos do gênio de Johann Sebastian Bach
A assinatura de Bach

Publicado no Sul21 em 28 de março de 2015

Talvez, para nosso tempo, seja difícil entender o homem que foi Johann Sebastian Bach. Ele nasceu há 330 anos, em 21 de março de 1685 (*), no que hoje é a Alemanha, numa família de músicos. Era um tempo em que era comum os filhos adotarem a profissão dos pais. Na região da Saxônia, o nome Bach era de tal forma relacionado à música que alguém com tal sobrenome só poderia ser músico e provavelmente trabalhava em alguma igreja. Seguindo a árvore genealógica da família Bach, dos 33 Bach homens, 27 foram músicos. Só que o talento explodiu espetacularmente no menino Johann Sebastian. É claro que ele, além de exercer outras funções, também trabalhou como Kapellmeister — termo que designa o diretor musical de uma igreja.

Durante um longo período de sua vida, escreveu uma Cantata por semana. Em média, cada uma tem 20 minutos de música. Tal cota, estabelecida por contrato, tornava impossível qualquer “bloqueio criativo”. Pensem que ele tinha que escrever a música e ainda ensaiar. Isso fez com que ele nos deixasse uma imensa obra vocal. Também escreveu muito para um instrumento fora de moda, o órgão. E, se em Weimar as obrigações de Bach estavam prioritariamente vinculadas ao serviço religioso e como organista na corte cristã, na corte calvinista de Köthen, Bach pode dedicar-se à música secular, criando um dos mais imponentes e impressionantes conjuntos de obras solo para teclado, violoncelo, flauta e violino da história da música ocidental. Deixou-nos mais de 1000 obras de todos os gêneros, à exceção da ópera.

Obs. sobre o vídeo acima: na época, era proibido que as mulheres cantassem em igrejas.

Como dissemos, ele era um homem de outra época. Bach, por exemplo, não se preocupava em construir uma obra. Aliás, em seu tempo não existia a noção de “obra” de compositores. A música era consumida e esquecida. Como seus contemporâneos, Bach compunha sem a preocupação de colecionar-se, tanto assim que uma parte de sua produção foi perdida. O que se sabe de forma consistente a respeito de Bach é uma série de curiosidades: suas brigas com os empregadores, sua prisão, seus muitos alunos, os dois casamentos, os 20 filhos, a produção própria de cerveja e algumas poucas anotações pessoais.

Uma única anotação é muito célebre e pessoal. Johann Sebastian havia feito uma longa viagem de trabalho e ficara dois meses fora. Ao retornar, soube que sua mulher Maria Barbara e dois de seus filhos haviam falecido. Dias depois, profundamente triste, Bach, em seu luto, escreveu no alto de uma partitura um pedido: Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim. Se a criatividade fazia parte da “alegria” que tinha receio de perder, isso nunca aconteceu.

Emil Cioran escreveu que A música de Bach é o único argumento que prova que a criação do universo não pode ser vista como um grande erro e que Sem Bach, Deus seria apenas um mero coadjuvante. Os ateus gostam de contestar a religiosidade de Bach tendo por base as muitíssimo pragmáticas trocas de documentos entre Bach e os religiosos, mas nada sustenta tal tese. Talvez o que os perturbe sejam as constantes afirmações de melômanos ateus de que, durante a execução de algumas obras sacras de Bach, principalmente a Missa em Si menor, dizem acreditar em Deus por duas horas.

Pois Bach tem disso: pode-se passar horas analisando uma passagem simples, a duas vozes, procurando entender a razão pela qual o compositor obteve aquela sonoridade fantástica. É incompreensível e passamos a pensar que Cioran não exagerou. Simplesmente não se entende porque algo tão simples é tão profundo. Parecem notas normais, que qualquer um poderia ter escrito, mas elas não soam assim. Porém, muitas vezes é algo complicadíssimo, mas também funciona da mesmo forma. Com Mahler, sabe-se que algo vai soar grande, enxerga-se tudo, mesmo na passagem mais complexa. Enquanto que em Bach… O primeiro compasso da Paixão Segundo São Mateus já é capaz de arrebatar. Ali já se encontra toda a profundidade que esta obra vai carregar durante três horas. Ouve-se o baixo, e pronto, lá está uma inversão da melodia principal. Ouve-se a linha do coral, e também é uma consequência desta. Toda a obra é erguida sobre pilares limpos, claros, simples. E, no entanto, ninguém conseguiu ombrear-se a tal domínio artístico.

Em vez de adjetivar exageradamente uma série de obras bachianas, vamos tomar por base o texto 10 (petites) choses que vous ne savez (peut-être) pas sur Jean-Sébastien Bach para caracterizar fatos da vida do compositor. Ampliamos em muito a matéria original, retiramos e acrescentamos outros itens.

 16 (pequenas) coisas que (talvez) você não saiba sobre Bach

1. A prisão

Johann Sebastian Bach esteve quase um mês na prisão — entre 6 de novembro a 2 de dezembro de 1717 — durante seu período em Weimar. O crime era o de traição a seu patrão. Fora-lhe recusado o cargo de Kapellmeister na cidade, e ele solicitou permissão para partir e tentar a sorte em outro lugar. Queria o posto de maestro em Köthen. Bach insistiu e insistiu para ser demitido. Acabou preso. De acordo com o relatório do tribunal, o motivo da prisão foi o de “forçar a sua demissão”. Era, decididamente, outra época.

2. A infeliz operação de catarata

O grande doutor John Taylor (1703-1772) operou duas vezes a catarata de Bach em 1750. Fez o mesmo com Handel em 1753. Fracassou com ambos. Pior, matou Bach, enfraquecido após as cirurgias, e deixou Handel inteiramente cego.

3. O medo na concorrência

Durante uma viagem a Dresden em 1717, houve uma brincadeira entre aristocratas. Foi organizada uma competição para decidir quem tinha mais habilidades para a improvisação: se Johann Sebastian Bach ou Louis Marchand, famoso cravista e organista francês. Na véspera da grande “luta”, ao entrar num salão, Marchand deu de cara com Bach ensaiando. Foi o suficiente. Marchand deixou um recado onde alegava uma doença súbita e fugiu de madrugada.

4. O trabalho não era fácil

Ser Kappellmeister não era simples. Regente do coro da igreja, da orquestra, compositor, ensaios e mais ensaios, além de professor de música e catecismo. Em relatório de 1706, quando tinha 21 anos, Bach dizia mais: que as crianças “já não temem seus professores, elas até mesmo lutam em suas presenças, carregam espadas e pedras não somente pela rua, mas também na sala de aula.”

5. Bach teve 20 filhos

Aos 22 anos de idade, casou-se com uma prima, Maria Barbara Bach. Deste casamento, ele teve 7 filhos, dos quais sobreviveram quatro:  Catharina Dorotheia, Johann Gottfried Bernhard e os compositores Wilhelm Friedmann e Carl Philipp Emanuel. Maria Barbara morreu em maio de 1720. Depois de algum tempo, ele conheceu a soprano Ana Magdalena Wilcken e casou-se pela segunda vez em 1721. Teve 13 filhos com ela, dos quais 7 faleceram ainda bebês. Sua casa, ainda acrescida de diversos alunos residentes, era lotada. Como ele arranjava tempo para compor?

6. O desamor de Leipzig

Se Bach é apelidado hoje de O Kantor de Leipzig, não podemos dizer que a cidade lhe desse uma contrapartida afetuosa. Seus chefes eram rápidos para lembrá-lo de sua “incompetência”. Em 1727, um assessor escreveu que Bach não compusera nada durante todo o ano. Hoje, sabemos que ele, como sempre, trabalhou louca e produtivamente naquele ano. Em 1730, ele foi repreendido e advertido pelo mesmo motivo. Quando de sua morte, um jornal da cidade publicou uma notinha onde dizia que “um homem de 67 anos (ele tinha 65), o Sr. Johann Sebastian Bach, maestro e Kantor na Escola St. Thomas”, morrera. Nada mais.

Um dos poucos retratos de Johann Sebastian bach
Um dos poucos retratos de Johann Sebastian Bach

7. Ausente das aulas

O maestro John Eliot Gardiner enfatiza a violência do ambiente em que o compositor passou a infância. Eram comuns as rivalidades entre gangues, as brigas entre estudantes e as maldades sádicas. O menino Johann Sebastian esteve ausente por 258 dias em seus três primeiros anos de escola. O motivo mais comum para tais ausências era a violência. Isso em um sistema escolar que ensinava preceitos religiosos por 70% do tempo.

8. O amor pelo café

O gosto de Johann Sebastian Bach pelo café vem de sua participação na instituição de Gottlieb Zimmermann, o Café Zimmermann, onde o compositor apresentava-se regularmente durante a década de 1730. O café era uma novidade recente e sucesso absoluto naquele início de século XVIII. Na época, era encarado como uma moda passageira e um luxo. O compositor dedicou uma Cantata profana ao produto (o BWV 211, a Cantata do Café) que conta a história de uma moça casadoura que diz preferir a bebida a mais de mil beijos e afirma que só aceitará casar com um marido que lhe dê café. No inventário de Bach, há menção a coisas raras como dois potes de café (um grande e um pequeno) e um açucareiro.

https://youtu.be/YC5KpmK6oOs

9. Ele bebia. E como

Se o conselho da cidade de Leipzig tratava-o com dureza, deve-se notar que Bach gozou de relativa liberdade na cidade luterana. Ele produzia sua própria cerveja e pagava mais imposto sobre a produção desta do que gastava com habitação. As notas examinadas por seus biógrafos indicam que a família Bach consumia toneladas de cerveja. Um relatório de gastos com impostos do compositor em 1725 (tinha 40 anos) dá conta de um consumo espetacular, mesmo considerando a enorme família e alunos.

10. Escreveu música para curar a insônia

Uma de suas obras mais importantes, as Variações Goldberg, foi composta para um ex-embaixador russo na corte eleitoral da Saxônia, o conde Hermann Karl von Keyserling. O conde passava noites e noites sem dormir. Quando o desespero batia mais forte, ele chamava um de seus empregados, o jovem cravista Johann Gottlieb Goldberg, para lhe dar um recital particular. Certa vez, o conde mencionou, na presença de Bach, que gostaria de ter algumas obras de caráter suave para Goldberg executar. Elas deveriam ou consolá-lo em suas noites sem dormir ou encaminhá-lo para a cama. Bach imaginou que a melhor maneira de atender a esse desejo seria por meio de variações. Assim nasceram as Goldberg.

11. Tudo sobrava, sobretudo talento

A perfeição daquilo que criava — e que era rápida e desatentamente fruída pelos habitantes das cidades onde viveu — era pura necessidade individual de fazer as coisas bem feitas. Como era pouco compreendido, brincava sozinho criando dificuldades adicionais em seus trabalhos. Muitas vezes o número de compassos de uma Cantata corresponde ao capítulo e versículo da Bíblia daquilo que está sendo cantado. Em seus temas aparecem palavras — pois a notação alemã é feita através de letras — e suas fugas envolvem complexidades que só podiam ser apreendidas por especialistas. O próprio nome B-A-C-H (Si Bemol, Lá, Dó, Si) é utilizado muitas vezes, sempre com significado. Então Bach era não apenas um fantástico melodista capaz amolecer as pernas do ouvinte, como um sólido teórico capaz de brincar com seu conhecimento. Em poucas palavras, pode-se dizer que ele sobrava… Sua obra, mesmo com a perda de mais de 100 Cantatas e de outras obras por seu filho mais velho, o preferido de Bach, Wilhelm Friedemann, corresponde a 153 CDs da mais perfeita música. Grosso modo, 153 CDs são 153 horas ou mais de 6 dias ininterruptos de música.

12. O entendido em acústica

Bach era constantemente chamado a outras cidades para analisar a qualidade de órgãos e dar conselhos sobre a acústica de igrejas e salas. Arranjou alguns inimigos em suas viagens ao considerar alguns locais verdadeiras tragédias sem solução. Mas também tinha a fama de fazer acertos milagrosos.

13. A gênese de A Oferenda Musical

Frederico II da Prússia (Frederico, o Grande) quis conhecer Bach e convidou-o para um sarau em seu palácio. Durante a reunião, Bach foi desafiado a improvisar sobre um tema escrito por Frederico — mas que provavelmente era de autoria de um dos muitos compositores da corte. O tema era dificílimo, um evidente desafio, porém Bach improvisou uma fuga a três vozes sobre o mesmo. Diante da admiração dos ouvintes, Frederico, um notório sádico, propôs uma fuga a seis vozes. Agastado, Bach respondeu-lhe que era impossível fazê-lo assim de improviso. Ficou furioso com a derrota, porém, duas semanas depois, enviou a Frederico uma partitura com a fuga a três vozes, outra a seis, acompanhadas de diversos cânones e de uma sonata-trio, totalizando treze movimentos cuja ordem correta, se há, é até hoje um desafio para os musicólogos. Ou seja, enviou-lhe a chamada A Oferenda Musical (Das Musikalische Opfer), uma das mais importantes composições de todos os tempos. Frederico não deu a menor importância, o jogo já tinha sido jogado. E não mandou nenhuma nota de agradecimento ao “Velho Bach”.

https://youtu.be/Uyu-btfnOhc

14. Os Concertos de Brandemburgo quase viraram papel de embrulho

Na verdade não precisariam das outras quase 1100 composições para colocar Bach como um dos maiores compositores de todos os tempos. Bastariam os Concertos de Brandenburgo. São seis esplêndidos concertos para diversos instrumentos que… Bem, conta a lenda que suas partituras estavam sendo guardadas para serem utilizadas em uma casa comercial como papel de embrulho. Esta história é tão inacreditável que nos damos o direito de duvidar dela…

15. O cinema gosta muito

Bach flutua em ondas na modas cinematográficas. Já houve o tempo em que se ouvia a Tocata e Fuga em Ré Menor, ou a Chaconne para violino solo ou a ária Erbarme dich em vários filmes. No ano passado, Lars von Trier fez uma enorme homenagem ao BVW 639 Ich ruf zu dir, Herr Jesu Christ em Ninfomaníaca — a música é explicada em detalhes pelo personegam Seligman. Pawlikowski fez o mesmo em Ida, vencedor do Oscar de 2015 de melhor filme estrangeiro. Andreï Tarkovski já tinha feito o mesmo no clássico Solaris.

16. Bach está no seu celular… E nos aviões

Ele estava tão a frente do seu tempo que grande parte dos toques dos celulares foram compostos por ele…

Bem, e quando dois músicos resolvem brincar em um voo, qual é o ponto em comum que eles encontram?

Tinha um celista no meu voo. Francisco Vila, um violoncelista, e Maximilian, um comissário de bordo beatboxer, brincam com a Bourrée do Prelúdio Nº 3 para Violoncelo Solo de Bach.

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(*) Afinal, Bach nasceu em 21 ou 31 de março de 1685? Vamos falar de 1582? Naquele ano, o calendário gregoriano foi introduzido em alguns lugares da Europa, não em todos. A Itália, a Espanha, Portugal e a Polônia, os mais católicos, aceitaram a mudança ditada pela igreja, o resto não. Só depois é que todos os outros países aderiram. O 21 de março de 1685 da Alemanha não era o mesmo 21 de março de 1685 na Itália, Espanha etc. Havia 10 dias de diferença. O dia em que Bach nasceu foi “chamado” de 21 de março na Alemanha, onde eles ainda estavam usando o calendário juliano. É o que vale! Mas Bach nasceu num 31 de março, considerando o calendário que todos usam hoje, o gregoriano. Da mesma forma, é muitas vezes dito que Shakespeare e Cervantes morreram exatamente no mesmo dia, 23 de abril de 1616. Não é verdade. As mortes foram separadas por 10 dias. A de Shakespeare ocorreu em 23 de abril de 1616 (juliano) e equivalente a 3 de maio de 1616 (gregoriano). O que é certo é que podemos comemorar dois aniversários de nosso maior ídolo. E sempre com a cerveja que Bach tanto gostava e produzia em quantidades industriais em sua própria casa.

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