Daniil Trifonov: “Você pode imaginar uma turnê de concertos em streaming? Seria um total absurdo”

Daniil Trifonov: “Você pode imaginar uma turnê de concertos em streaming? Seria um total absurdo”

Nacho Castellanos e Rafael Ortega Basagoiti
Tradução livre de Milton Ribeiro

Ele saiu sem quase respirar. Ele havia acabado seu concerto com a OCNE (Orquesta y Coro Nacionales de España) e imediatamente se reuniu com a SCHERZO para esta entrevista. Daniil Trifonov voltou a Madrid inesperadamente para substituir Mitsuko Uchida. Ele ficou surpreso ao ver a sala com pessoas… Até sua voz falhou quando ele se referiu à emoção que sentiu ao ouvir aplausos. Um gesto tão simples, tão espontâneo, mas que agora é raro.

Em sua agenda, está o retorno ao Ciclo dos Grandes Intérpretes da Fundação Scherzo no dia 24 de março. A arte da fuga, aquele bastião intransponível da história do teclado, será o protagonista de um recital dedicado a J. S. Bach. Quando ele fala sobre Bach, sua voz fica aveludada, até soa solene. É um compositor que o acompanha desde pequeno. Chegou a hora de dialogar com o gênio de Eisenach, que por mais de 20 anos permaneceram em estúdio, em viagens pelos palcos pelo mundo. Trifonov encontra Bach,  ou  Bach encontra Trifonov . Julgue por si mesmo!

Como você se sente sobre a experiência de concerto neste mundo regido por máscaras e géis hidroalcoólicos?

É algo que muda de acordo com o destino. No final de janeiro, por exemplo, fiz um show na Alemanha sem plateia. Mas agora eu vim para a Espanha e posso tocar com uma orquestra sinfônica em um auditório lotado. Portanto, as circunstâncias são específicas de cada país e as medidas que são adotadas variam dependendo de onde você for. Há concertos que são cancelados, outros podem ser transmitidos e depois há a sorte de fazer concertos com público.

Há poucos minutos você tocou com a OCNE o Concerto para Piano e Orquestra Nº 1 de Beethoven. Coincidentemente, na última entrevista que você concedeu ao SCHERZO, em 2017, comentou que compositores como Beethoven, Bach ou Brahms ainda estavam distantes, não sentia que era chegado o momento de mergulhar na sua música. Em 24 de março você enfrentará A Arte da Fuga de Bach no Ciclo dos Grandes Intérpretes. O que mudou desde 2017 para que você de repente encontre a proximidade ou a perspectiva de mergulhar na sua música?

Bach é um compositor que sempre me acompanhou e acompanha. Quando eu era estudante em Moscou, lembro-me de passar horas e horas ouvindo sua música. Da mesma forma que Beethoven, é um compositor inevitável na carreira de qualquer músico. O fato de eu não tocar certos compositores em público não significa que não o faça na esfera privada. O que é novo para mim é Brahms. Recentemente, estive trabalhando no Primeiro Concerto para Piano que apresentei no ano passado em Rotterdam e agora estou me aprofundando em sua terceira sonata para piano, que gostaria de poder incluir em meu repertório nos próximos meses. A Arte da Fuga é um trabalho que venho desenvolvendo nos últimos dois anos, cujo estudo tem sido muito intenso. Pode-se dizer que é o primeiro grande trabalho em que realmente desenvolvi em estudo integral, passando dias e dias sem tocar mais nada, refletindo sobre a partitura. Isso é algo que só acontece comigo com Bach. Geralmente, meus ouvidos e mãos precisam de recessos quando estou estudando. Mudo a peça que é objeto de estudo e depois retorno. Mas com Bach o tempo não passa. Com Bach, o tempo não existe. Ou talvez aconteça tão rápido que nem sei.

Qual a importância da obra A Arte da Fuga em 2021?

Eu acredito fervorosamente que A Arte da Fuga é um ciclo. Há teóricos que acreditam que ela foi composta mais como um exercício composicional do que como uma obra a ser executada diante de um público. Para mim, é impossível pensar que Bach compôs uma de suas melhores criações como um mero exercício. Existem seções de tal calor que é difícil acreditar que seus propósitos fossem mais didáticos do que artísticos. É um dos ciclos mais complexos que existem. Sua estrutura beira a perfeição – se é que isso existe em nossa arte. A maneira pela qual os diferentes contrapontos ocorrem é esmagadoramente lógica: as primeiras onze fugas seguem a ordem estabelecida por Bach e as demais foram ordenadas por seus filhos após sua morte.

Você começa seu concerto em Grandes Intérpretes com a transcrição para a mão esquerda de Brahms de Ciaccona em Ré menor BWV 1004 de Bach. É curioso que você tenha escolhido esta transcrição em vez da de Busoni, mais difundida em nossos tempos …

Ambas as transcrições são maravilhosas, mas Brahms alcança algo que vai além da mera transcrição. Brahms pega a partitura original de Bach e, sem perder nenhum detalhe, a faz soar no piano como está. Sem adicionar mais virtuosismo do que o original. Mas vai além do fato musical e decide mergulhar no fisiológico: usa apenas a mão esquerda, como se as 88 teclas do piano se transformassem no braço de um violino. A distância entre notas e intervalos é diretamente proporcional à de um violino. É uma transcrição muito complexa, que chega a exaurir a mão esquerda. Todo o peso cai sobre ela. Não é uma peça que você pode tocar duas vezes seguidas. Brahms inclui esta transcrição em seus Estudos, porque realmente é um feito técnico para a mão esquerda.

Da mesma forma que Chopin adapta o bel canto ao piano, Brahms tenta adaptar o canto do violino ao piano …

Sim, mas neste caso a forma como Brahms se aproxima dos intervalos do violino, o caminho que ele decide seguir é muito visual. Se você ver um violinista tocar essa Chaconne e depois ver outro tocar a transcrição de Brahms, você encontrará inúmeras semelhanças na forma de interpretá-la: gestos, movimentos, posições… Tem algo que lhe diz que essa transcrição não é apenas música, vai além!

Quão importante você diria que a música de Bach, e mais especificamente A Arte da fuga, tem dentro da escola russa de piano?

Quando eu estava no conservatório, era nosso costume aprender pelo menos um prelúdio e fuga de Bach a cada ano. Ele foi o único compositor que, ano sim, ano também, fazia parte do nosso aprendizado. Muitos pianistas russos dedicaram parte da carreira à música de Bach: Sergei Babayan, Evgeni Koroliov, Konstantin Lifschitz… Todos eles encontraram em Bach um caminho a seguir na sua maturidade musical.

Nestes tempos, o solista costuma ter apenas um ou dois ensaios com as orquestras antes dos concertos. Existem intérpretes (por exemplo, o seu compatriota Sokolov) que consideram isso insuficiente para uma interpretação satisfatória. Como você vê essa situação? Você discute sua visão da peça de antemão com o diretor para aproveitar ao máximo o tempo de ensaio?

Sou um daqueles performers que gostam de experimentar no palco e também tenho a sorte de os diretores geralmente serem bastante flexíveis quanto a isso. Eu confio na interação. Não importa quantas tentativas sejam feitas, não importa quais restrições existam. O importante é conversar com a orquestra, ouvir os músicos e que eles te escutem. O resto é uma circunstância típica da época em que vivemos. Cada concerto tem seu universo e cada ensaio suas diretrizes a serem seguidas. Mas vamos confiar no diálogo entre músicos. É a única coisa que realmente importa.

Suponho que após esses meses de confinamento, você poderá desenvolver um pouco mais sua carreira de compositor …

Durante o confinamento, o que realmente me envolvi foi no trabalho e na aprendizagem de ser pai… Eu estava aprendendo um novo repertório e escrevia algo, mas não gastei muito tempo nisso.

Você acha que a indústria da música está pronta para essa dualidade intérprete-compositor ou exige produtos específicos e mais do mesmo?

Não é algo que eu tenha pensado. Ainda não tenho composições próprias o suficiente para gravar um álbum. Em um futuro? É possível, mas devo continuar a descobrir os grandes compositores, interpretá-los, estudá-los e, se tiver sorte, entendê-los. Escrever é algo que muitos intérpretes fazem em segredo. Mas daí para a publicação de um álbum com nossas composições, é um outro passo.

O que você diria que não funcionará na música clássica em 2021?

São tantas coisas que não funcionam e é tão complexo mudá-las… Acreditamos que a internet é uma coisa real, que o streaming é um futuro imediato, mas não sabemos se as pessoas querem assistir a um Concerto ao vivo. Você pode imaginar uma turnê de concertos em streaming? Seria um total absurdo. Há pouco tempo, antes de sair para tocar com a OCNE, eu estava em meu camarim assistindo a uma apresentação ao vivo que Martha Argerich estava dando de Hamburgo. É incrível pensar que a centenas de quilômetros de distância, posso desfrutar de um espetáculo ao vivo segundos antes de chegar a minha vez de fazer outro. É uma experiência maravilhosa. Mas isso nunca substituirá o real.

Como podemos ajudar a música clássica a estar mais próxima do público mais jovem?

Em primeiro lugar, suponha que não existe uma fórmula mágica que encha os cinemas com pessoas com menos de 30 anos. E também temos que perceber que nem todo mundo lê grandes obras da literatura, nem todo mundo gosta de passar as noites em museus olhando pinturas ou assistindo a filmes clássicos. E a partir disso, é hora de aceitar que nem todos os jovens vão ouvir música clássica. Temos que facilitar o acesso? Sim. Devemos trabalhar para que a música tenha um papel fundamental na educação? Também. Mas, além do que podemos fazer, cada um é livre para escolher. O gosto pela música clássica é uma escolha. Existem pessoas que sentem enorme curiosidade por ela e outras nunca a sentirão. A vida é uma busca contínua por experiências. Quem busca a beleza acaba encontrando. Tudo que você precisa descobrir é onde procurar.

Para concluir, o que você pediria do futuro?

Gostaria que, num futuro próximo, houvesse um acordo internacional para ajudar o setor cultural e musical em sua restauração. Neste momento, cada país faz o que pode, mas não existe um gesto comum que nos una. E é claro que as circunstâncias em cada país são diferentes, mas devemos parar por um momento e tentar colocar ideias e propostas em comum para alcançar a cooperação internacional.

Daniil Trifonov | Foto: Boston Symphony Orchestra

Salvador do Sul, novamente

Salvador do Sul, novamente

Escrevo com atraso esta pequena crônica de viagem pois saímos de Porto Alegre lá em 10 de agosto (quinta-feira) para ficarmos em Salvador do Sul até o domingo (13). Já conhecíamos a pequena cidade serrana e tínhamos adorado. Chegamos de ônibus por volta das 13h e fomos direto para o Apolo XII, um restaurante lancheria que fica na rua principal de Salvador. Como é bom sair de Porto Alegre e não apenas em razão de nosso prefeito! Em Salvador do Sul, as verduras não têm gosto de isopor. A gente come e repete o alface e a couve-flor, coisa que só se faz na capital se estivermos em severo regime ou se formos masoquistas.

Depois do almoço, ainda com as pequenas malas, subimos de táxi até o hotel Candeeiro da Serra, que já conhecíamos do ano passado. Tentando manter a felicidade de 2016, pedimos exatamente o mesmo quarto.

Bem, a Elena costuma carregar seu violino onde vai, mas desta vez ela parecia um pouco mais fanática do que o habitual. Chegamos ao nosso quarto, ela abriu o estojo do violino e foi tocar na sacada sem dar bola para o sol. Queria estar em forma.

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E seguiu mandando bala com a cidade atrás.

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Depois, saímos para fazer um de nossos passeios preferidos. Fomos até o Colégio Santo Inácio. A parte de trás do Colégio é especialmente bonita e tranquilizadora. Sempre ficamos um tempinho ali, sem querer muito ir embora.

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E caminhamos por uma estrada lateral que leva a um lago e a todo o tipo de subidas e descidas, sempre com bonitas paisagens.

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Lembro bem de nossos temas aquele dia. Estávamos especialmente a fim de falar a respeito do passar do tempo, da velhice e de outros fatos, digamos, inexoráveis. A coisa estava muito filosófica e, é claro, não conseguimos chegar nada que fosse conclusivo. Mas o que interessa é que a paisagem valia a pena.

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O absurdo é que este local da cidade está fechado para caminhadas no fim de semana. Os novos proprietários do Colégio e dos arredores simplesmente colocaram guardas que impedem a entrada de gente que só quer passear e olhar um dos locais mais legais que existem em Salvador do Sul. Descobrimos isso no sábado, quando tentamos repetir a caminhada. Os guardas nos avisaram que não poderíamos seguir, o que, desculpem, é de última categoria.

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A Elena estava perfeitamente natural. Só que estava estudando muito mais. A única estranheza real é que ela tinha ficado contrariada quando cheguei uma hora mais cedo para buscá-la na quarta-feira na escola da Ospa. Eu, obviamente, não sabia o que ela estava preparando.

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No dia seguinte, sexta-feira (11), anotei no Facebook:

Meu aniversário é apenas dia 19, mas acho que recebi hoje o melhor presente de aniversário de minha vida. A Elena Romanov fez toda uma preparação secreta. Levou-me até uma pequena igreja aqui de Salvador do Sul (a Igreja Matriz Velha), dizendo que queria estudar violino num espaço que não fosse acusticamente “seco” como nosso quarto de hotel. Pediu que eu levasse um livro para ler, a fim de não me entediar. OK. Lá chegando, após fazer algumas escalas, …

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… me pediu que eu fosse sentar em um lugar determinado e começou a tocar a Chaconne de Bach. No início eu achei “puxa, que bem tocado” para uma brincadeira improvisada, mas a coisa se estendeu de tal forma e com tamanha perfeição e musicalidade que primeiro me emocionei a ponto de ver surgirem algumas lágrimas e depois mais ainda porque me dei conta de que aquilo, talvez, fosse um presente imaterial para mim. Quando fui agradecer, apareceu um sujeito na igreja vazia falando para ela “Eu entrei aqui para fazer umas preces, mas depois disso já considero que tenha feito”.
Obrigado, Elena.
(Imaginem que ela decorou a enorme peça para que eu não pudesse saber de nada antecipadamente, vendo as partituras que ela levava).

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Por sorte, tenho gravadas as três vezes que ela tocou a Chaconne naquela manhã, mas ela me proibiu de mostrá-las. Ah, os músicos… A Chaconne é das mais belas peças que conheço. Foi escrita após Bach saber que sua primeira mulher tinha falecido. Como disse meu amigo Marcos Nunes, a partir dela ele percebeu, ainda adolescente, “que a vida humana é muito mais complexa que todos os adjetivos do mundo, e a palavra angústia, com todo seu amargor, tem algo que expressa a condição humana, mas que a gente só tateia ouvindo a Chaconne”Eu a ouvi pela primeira vez numa viagem ao Rio de Janeiro, logo após ter feito 18 anos. Era um concerto em alguma sala, talvez na Cecília Meirelles recém inaugurada. A primeira sensação foi a de ter sido derrubado, tal a beleza e a angústia da peça. Depois, com o passar dos anos, essa angústia passou a um segundo plano e, para mim, hoje ela é uma peça belíssima e triste, pela qual sou fascinado. A Elena sempre soube disso, é claro.

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Na sexta-feira, seguimos nossa subidas e descidas por Salvador e reencontrei uma conhecida amiga do ano anterior (foto acima). Ela me reconheceu imediatamente. Os cães sabem quem gosta deles. Sempre ou quase.

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Também fomos ao nosso café preferido na cidade, o da Loja Dautys.

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Como fizéramos em 2016, tentamos tirar fotos nossas refletidas nos espelhos da loja, mas este ano não deu tão certo.

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Salvador do Sul permanece para nós como uma espécie de refúgio das agitações da vida profissional e da cidade grande. Um local onde o ar que se respira parece trazer de volta meus pulmões e os avós cruz-altenses, por onde se pode passear cumprimentando alegremente desconhecidos e onde os passeios a pé são os melhores. Mas a cidade tem que manter SEMPRE ABERTOS os caminhos em torno do Colégio Santo Inácio, por favor.

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Agora, se a cidade já estava ligada à Elena, também está ligada ao mais belo presente que já recebi, assim como ao casal que administra o excelente hotel Candeeiro da Serra, Carla Specht e Alex Steffen, que receberam, trataram e nos engordaram extremamente bem em nossas duas visitas. Nossa, quanta coisa boa tem naquele café!

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Finalizando: na foto acima, a Elena prepara mais uma execução da Chaconne, agora no nosso quarto do hotel.

330 anos do gênio de Johann Sebastian Bach

330 anos do gênio de Johann Sebastian Bach
A assinatura de Bach

Publicado no Sul21 em 28 de março de 2015

Talvez, para nosso tempo, seja difícil entender o homem que foi Johann Sebastian Bach. Ele nasceu há 330 anos, em 21 de março de 1685 (*), no que hoje é a Alemanha, numa família de músicos. Era um tempo em que era comum os filhos adotarem a profissão dos pais. Na região da Saxônia, o nome Bach era de tal forma relacionado à música que alguém com tal sobrenome só poderia ser músico e provavelmente trabalhava em alguma igreja. Seguindo a árvore genealógica da família Bach, dos 33 Bach homens, 27 foram músicos. Só que o talento explodiu espetacularmente no menino Johann Sebastian. É claro que ele, além de exercer outras funções, também trabalhou como Kapellmeister — termo que designa o diretor musical de uma igreja.

Durante um longo período de sua vida, escreveu uma Cantata por semana. Em média, cada uma tem 20 minutos de música. Tal cota, estabelecida por contrato, tornava impossível qualquer “bloqueio criativo”. Pensem que ele tinha que escrever a música e ainda ensaiar. Isso fez com que ele nos deixasse uma imensa obra vocal. Também escreveu muito para um instrumento fora de moda, o órgão. E, se em Weimar as obrigações de Bach estavam prioritariamente vinculadas ao serviço religioso e como organista na corte cristã, na corte calvinista de Köthen, Bach pode dedicar-se à música secular, criando um dos mais imponentes e impressionantes conjuntos de obras solo para teclado, violoncelo, flauta e violino da história da música ocidental. Deixou-nos mais de 1000 obras de todos os gêneros, à exceção da ópera.

Obs. sobre o vídeo acima: na época, era proibido que as mulheres cantassem em igrejas.

Como dissemos, ele era um homem de outra época. Bach, por exemplo, não se preocupava em construir uma obra. Aliás, em seu tempo não existia a noção de “obra” de compositores. A música era consumida e esquecida. Como seus contemporâneos, Bach compunha sem a preocupação de colecionar-se, tanto assim que uma parte de sua produção foi perdida. O que se sabe de forma consistente a respeito de Bach é uma série de curiosidades: suas brigas com os empregadores, sua prisão, seus muitos alunos, os dois casamentos, os 20 filhos, a produção própria de cerveja e algumas poucas anotações pessoais.

Uma única anotação é muito célebre e pessoal. Johann Sebastian havia feito uma longa viagem de trabalho e ficara dois meses fora. Ao retornar, soube que sua mulher Maria Barbara e dois de seus filhos haviam falecido. Dias depois, profundamente triste, Bach, em seu luto, escreveu no alto de uma partitura um pedido: Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim. Se a criatividade fazia parte da “alegria” que tinha receio de perder, isso nunca aconteceu.

Emil Cioran escreveu que A música de Bach é o único argumento que prova que a criação do universo não pode ser vista como um grande erro e que Sem Bach, Deus seria apenas um mero coadjuvante. Os ateus gostam de contestar a religiosidade de Bach tendo por base as muitíssimo pragmáticas trocas de documentos entre Bach e os religiosos, mas nada sustenta tal tese. Talvez o que os perturbe sejam as constantes afirmações de melômanos ateus de que, durante a execução de algumas obras sacras de Bach, principalmente a Missa em Si menor, dizem acreditar em Deus por duas horas.

Pois Bach tem disso: pode-se passar horas analisando uma passagem simples, a duas vozes, procurando entender a razão pela qual o compositor obteve aquela sonoridade fantástica. É incompreensível e passamos a pensar que Cioran não exagerou. Simplesmente não se entende porque algo tão simples é tão profundo. Parecem notas normais, que qualquer um poderia ter escrito, mas elas não soam assim. Porém, muitas vezes é algo complicadíssimo, mas também funciona da mesmo forma. Com Mahler, sabe-se que algo vai soar grande, enxerga-se tudo, mesmo na passagem mais complexa. Enquanto que em Bach… O primeiro compasso da Paixão Segundo São Mateus já é capaz de arrebatar. Ali já se encontra toda a profundidade que esta obra vai carregar durante três horas. Ouve-se o baixo, e pronto, lá está uma inversão da melodia principal. Ouve-se a linha do coral, e também é uma consequência desta. Toda a obra é erguida sobre pilares limpos, claros, simples. E, no entanto, ninguém conseguiu ombrear-se a tal domínio artístico.

Em vez de adjetivar exageradamente uma série de obras bachianas, vamos tomar por base o texto 10 (petites) choses que vous ne savez (peut-être) pas sur Jean-Sébastien Bach para caracterizar fatos da vida do compositor. Ampliamos em muito a matéria original, retiramos e acrescentamos outros itens.

 16 (pequenas) coisas que (talvez) você não saiba sobre Bach

1. A prisão

Johann Sebastian Bach esteve quase um mês na prisão — entre 6 de novembro a 2 de dezembro de 1717 — durante seu período em Weimar. O crime era o de traição a seu patrão. Fora-lhe recusado o cargo de Kapellmeister na cidade, e ele solicitou permissão para partir e tentar a sorte em outro lugar. Queria o posto de maestro em Köthen. Bach insistiu e insistiu para ser demitido. Acabou preso. De acordo com o relatório do tribunal, o motivo da prisão foi o de “forçar a sua demissão”. Era, decididamente, outra época.

2. A infeliz operação de catarata

O grande doutor John Taylor (1703-1772) operou duas vezes a catarata de Bach em 1750. Fez o mesmo com Handel em 1753. Fracassou com ambos. Pior, matou Bach, enfraquecido após as cirurgias, e deixou Handel inteiramente cego.

3. O medo na concorrência

Durante uma viagem a Dresden em 1717, houve uma brincadeira entre aristocratas. Foi organizada uma competição para decidir quem tinha mais habilidades para a improvisação: se Johann Sebastian Bach ou Louis Marchand, famoso cravista e organista francês. Na véspera da grande “luta”, ao entrar num salão, Marchand deu de cara com Bach ensaiando. Foi o suficiente. Marchand deixou um recado onde alegava uma doença súbita e fugiu de madrugada.

4. O trabalho não era fácil

Ser Kappellmeister não era simples. Regente do coro da igreja, da orquestra, compositor, ensaios e mais ensaios, além de professor de música e catecismo. Em relatório de 1706, quando tinha 21 anos, Bach dizia mais: que as crianças “já não temem seus professores, elas até mesmo lutam em suas presenças, carregam espadas e pedras não somente pela rua, mas também na sala de aula.”

5. Bach teve 20 filhos

Aos 22 anos de idade, casou-se com uma prima, Maria Barbara Bach. Deste casamento, ele teve 7 filhos, dos quais sobreviveram quatro:  Catharina Dorotheia, Johann Gottfried Bernhard e os compositores Wilhelm Friedmann e Carl Philipp Emanuel. Maria Barbara morreu em maio de 1720. Depois de algum tempo, ele conheceu a soprano Ana Magdalena Wilcken e casou-se pela segunda vez em 1721. Teve 13 filhos com ela, dos quais 7 faleceram ainda bebês. Sua casa, ainda acrescida de diversos alunos residentes, era lotada. Como ele arranjava tempo para compor?

6. O desamor de Leipzig

Se Bach é apelidado hoje de O Kantor de Leipzig, não podemos dizer que a cidade lhe desse uma contrapartida afetuosa. Seus chefes eram rápidos para lembrá-lo de sua “incompetência”. Em 1727, um assessor escreveu que Bach não compusera nada durante todo o ano. Hoje, sabemos que ele, como sempre, trabalhou louca e produtivamente naquele ano. Em 1730, ele foi repreendido e advertido pelo mesmo motivo. Quando de sua morte, um jornal da cidade publicou uma notinha onde dizia que “um homem de 67 anos (ele tinha 65), o Sr. Johann Sebastian Bach, maestro e Kantor na Escola St. Thomas”, morrera. Nada mais.

Um dos poucos retratos de Johann Sebastian bach
Um dos poucos retratos de Johann Sebastian Bach

7. Ausente das aulas

O maestro John Eliot Gardiner enfatiza a violência do ambiente em que o compositor passou a infância. Eram comuns as rivalidades entre gangues, as brigas entre estudantes e as maldades sádicas. O menino Johann Sebastian esteve ausente por 258 dias em seus três primeiros anos de escola. O motivo mais comum para tais ausências era a violência. Isso em um sistema escolar que ensinava preceitos religiosos por 70% do tempo.

8. O amor pelo café

O gosto de Johann Sebastian Bach pelo café vem de sua participação na instituição de Gottlieb Zimmermann, o Café Zimmermann, onde o compositor apresentava-se regularmente durante a década de 1730. O café era uma novidade recente e sucesso absoluto naquele início de século XVIII. Na época, era encarado como uma moda passageira e um luxo. O compositor dedicou uma Cantata profana ao produto (o BWV 211, a Cantata do Café) que conta a história de uma moça casadoura que diz preferir a bebida a mais de mil beijos e afirma que só aceitará casar com um marido que lhe dê café. No inventário de Bach, há menção a coisas raras como dois potes de café (um grande e um pequeno) e um açucareiro.

https://youtu.be/YC5KpmK6oOs

9. Ele bebia. E como

Se o conselho da cidade de Leipzig tratava-o com dureza, deve-se notar que Bach gozou de relativa liberdade na cidade luterana. Ele produzia sua própria cerveja e pagava mais imposto sobre a produção desta do que gastava com habitação. As notas examinadas por seus biógrafos indicam que a família Bach consumia toneladas de cerveja. Um relatório de gastos com impostos do compositor em 1725 (tinha 40 anos) dá conta de um consumo espetacular, mesmo considerando a enorme família e alunos.

10. Escreveu música para curar a insônia

Uma de suas obras mais importantes, as Variações Goldberg, foi composta para um ex-embaixador russo na corte eleitoral da Saxônia, o conde Hermann Karl von Keyserling. O conde passava noites e noites sem dormir. Quando o desespero batia mais forte, ele chamava um de seus empregados, o jovem cravista Johann Gottlieb Goldberg, para lhe dar um recital particular. Certa vez, o conde mencionou, na presença de Bach, que gostaria de ter algumas obras de caráter suave para Goldberg executar. Elas deveriam ou consolá-lo em suas noites sem dormir ou encaminhá-lo para a cama. Bach imaginou que a melhor maneira de atender a esse desejo seria por meio de variações. Assim nasceram as Goldberg.

11. Tudo sobrava, sobretudo talento

A perfeição daquilo que criava — e que era rápida e desatentamente fruída pelos habitantes das cidades onde viveu — era pura necessidade individual de fazer as coisas bem feitas. Como era pouco compreendido, brincava sozinho criando dificuldades adicionais em seus trabalhos. Muitas vezes o número de compassos de uma Cantata corresponde ao capítulo e versículo da Bíblia daquilo que está sendo cantado. Em seus temas aparecem palavras — pois a notação alemã é feita através de letras — e suas fugas envolvem complexidades que só podiam ser apreendidas por especialistas. O próprio nome B-A-C-H (Si Bemol, Lá, Dó, Si) é utilizado muitas vezes, sempre com significado. Então Bach era não apenas um fantástico melodista capaz amolecer as pernas do ouvinte, como um sólido teórico capaz de brincar com seu conhecimento. Em poucas palavras, pode-se dizer que ele sobrava… Sua obra, mesmo com a perda de mais de 100 Cantatas e de outras obras por seu filho mais velho, o preferido de Bach, Wilhelm Friedemann, corresponde a 153 CDs da mais perfeita música. Grosso modo, 153 CDs são 153 horas ou mais de 6 dias ininterruptos de música.

12. O entendido em acústica

Bach era constantemente chamado a outras cidades para analisar a qualidade de órgãos e dar conselhos sobre a acústica de igrejas e salas. Arranjou alguns inimigos em suas viagens ao considerar alguns locais verdadeiras tragédias sem solução. Mas também tinha a fama de fazer acertos milagrosos.

13. A gênese de A Oferenda Musical

Frederico II da Prússia (Frederico, o Grande) quis conhecer Bach e convidou-o para um sarau em seu palácio. Durante a reunião, Bach foi desafiado a improvisar sobre um tema escrito por Frederico — mas que provavelmente era de autoria de um dos muitos compositores da corte. O tema era dificílimo, um evidente desafio, porém Bach improvisou uma fuga a três vozes sobre o mesmo. Diante da admiração dos ouvintes, Frederico, um notório sádico, propôs uma fuga a seis vozes. Agastado, Bach respondeu-lhe que era impossível fazê-lo assim de improviso. Ficou furioso com a derrota, porém, duas semanas depois, enviou a Frederico uma partitura com a fuga a três vozes, outra a seis, acompanhadas de diversos cânones e de uma sonata-trio, totalizando treze movimentos cuja ordem correta, se há, é até hoje um desafio para os musicólogos. Ou seja, enviou-lhe a chamada A Oferenda Musical (Das Musikalische Opfer), uma das mais importantes composições de todos os tempos. Frederico não deu a menor importância, o jogo já tinha sido jogado. E não mandou nenhuma nota de agradecimento ao “Velho Bach”.

https://youtu.be/Uyu-btfnOhc

14. Os Concertos de Brandemburgo quase viraram papel de embrulho

Na verdade não precisariam das outras quase 1100 composições para colocar Bach como um dos maiores compositores de todos os tempos. Bastariam os Concertos de Brandenburgo. São seis esplêndidos concertos para diversos instrumentos que… Bem, conta a lenda que suas partituras estavam sendo guardadas para serem utilizadas em uma casa comercial como papel de embrulho. Esta história é tão inacreditável que nos damos o direito de duvidar dela…

15. O cinema gosta muito

Bach flutua em ondas na modas cinematográficas. Já houve o tempo em que se ouvia a Tocata e Fuga em Ré Menor, ou a Chaconne para violino solo ou a ária Erbarme dich em vários filmes. No ano passado, Lars von Trier fez uma enorme homenagem ao BVW 639 Ich ruf zu dir, Herr Jesu Christ em Ninfomaníaca — a música é explicada em detalhes pelo personegam Seligman. Pawlikowski fez o mesmo em Ida, vencedor do Oscar de 2015 de melhor filme estrangeiro. Andreï Tarkovski já tinha feito o mesmo no clássico Solaris.

16. Bach está no seu celular… E nos aviões

Ele estava tão a frente do seu tempo que grande parte dos toques dos celulares foram compostos por ele…

Bem, e quando dois músicos resolvem brincar em um voo, qual é o ponto em comum que eles encontram?

Tinha um celista no meu voo. Francisco Vila, um violoncelista, e Maximilian, um comissário de bordo beatboxer, brincam com a Bourrée do Prelúdio Nº 3 para Violoncelo Solo de Bach.

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(*) Afinal, Bach nasceu em 21 ou 31 de março de 1685? Vamos falar de 1582? Naquele ano, o calendário gregoriano foi introduzido em alguns lugares da Europa, não em todos. A Itália, a Espanha, Portugal e a Polônia, os mais católicos, aceitaram a mudança ditada pela igreja, o resto não. Só depois é que todos os outros países aderiram. O 21 de março de 1685 da Alemanha não era o mesmo 21 de março de 1685 na Itália, Espanha etc. Havia 10 dias de diferença. O dia em que Bach nasceu foi “chamado” de 21 de março na Alemanha, onde eles ainda estavam usando o calendário juliano. É o que vale! Mas Bach nasceu num 31 de março, considerando o calendário que todos usam hoje, o gregoriano. Da mesma forma, é muitas vezes dito que Shakespeare e Cervantes morreram exatamente no mesmo dia, 23 de abril de 1616. Não é verdade. As mortes foram separadas por 10 dias. A de Shakespeare ocorreu em 23 de abril de 1616 (juliano) e equivalente a 3 de maio de 1616 (gregoriano). O que é certo é que podemos comemorar dois aniversários de nosso maior ídolo. E sempre com a cerveja que Bach tanto gostava e produzia em quantidades industriais em sua própria casa.

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Um longo caminho

Um longo caminho

Numa noite fria do século XVIII, Bach escrevia a Chacona da Partita Nº 2 para violino solo. A música partia de sua imaginação (1) para o violino (2), no qual era testada, e daí para o papel (3). Anos depois, foi copiada (4) e publicada (5). Hoje, o violinista lê a Chacona (6) e de seus olhos passa o que está escrito ao violino (9) utilizando para isso seu controverso cérebro (7) e sua instável, ou não, técnica (8). Do violino, a música passa a um engenheiro de som (10) que a grava em um equipamento (11), para só então chegar ao ouvinte (12), que se desmilingúi àquilo.

Na variação entre todas essas passagens e comunicações, está a infindável diversidade das interpretações. Mas ainda faltam elos, como a qualidade do violino – e se seu som for divino ou de lata, e se ele for um instrumento original ou moderno? E o calibre do violinista? E seu senso de estilo e cultura? E o ouvinte? E… as verdadeiras intenções de Bach? Desejava ele que o pequeno violino tomasse as proporções gigantescas e polifônicas do órgão? Mesmo?

E depois tem gente que acha chata a música erudita…

Henri Cartier-Bresson, Escada Camondo Galata Istambul, 1964
Henri Cartier-Bresson, Escada Camondo Galata Istambul, 1964

Chacona da Partita Nº 2 para violino solo, BWV 1004, de J. S. Bach, em transcrição espetacular de Ferruccio Busoni e no original

Um dia, eu fiz a seguinte brincadeira aqui no blog:

Numa noite fria do século XVIII, Bach escrevia a Chacona da Partita Nº 2 para violino solo. A música partia de sua imaginação (1) para o violino (2), no qual era testada, e daí para o papel (3). Anos depois, foi copiada (4) e publicada (5). Hoje, o violinista lê a Chacona (6) e de seus olhos passa o que está escrito ao violino (9) utilizando para isso seu controverso cérebro (7) e sua instável, ou não, técnica (8). Do violino, a música passa a um engenheiro de som (10) que a grava em um equipamento (11), para só então chegar ao ouvinte (12), que se desmilingúi àquilo.

Na variação entre todas essas passagens e comunicações, está a infindável diversidade das interpretações. Mas ainda faltam elos, como a qualidade do violino – e se seu som for divino ou de lata, e se ele for um instrumento original ou moderno? E o calibre do violinista? E seu senso de estilo e vivências? E o ouvinte? E… as verdadeiras intenções de Bach? Desejava ele que o pequeno violino tomasse as proporções gigantescas e polifônicas do órgão? Mesmo?

E depois tem gente que acha enfadonha a música erudita…

Há que acrescentar a transcrição (esplêndida, esplêndida) de Busoni para o piano até chegarmos às mãos da belíssima e talentosa Hélène Grimaud. Talvez seja a obra mais perfeita que conheço, ao lado das Goldberg e da Arte da Fuga.

E aqui, o original para violino. Maxim Vengerov — meu violinista preferido dentre os da nova geração — interpreta a obra enquanto caminha pelos corredores e exteriores de Auschwitz. O filme faz parte do filme Holocaust: A musical memorial film from Auschwitz. É absolutamente arrepiante, principalmente porque Vengerov não quis limpar a gravação de seus pequenos pecados. Como o conheço de várias entrevistas, sei que ele gosta de registros ao vivo e não costuma corrigi-los. Deveria repetir a sessão em Gaza.

Telemann – Chacone do Quarteto Parisiense N° 12 com Il Giardino Armonico

Fiquei felicíssimo ao encontrar esta Chacone no YouTube. Eu a conhecia em versões mais rápidas, porém o grupo de Giovanni Antonini talvez tenha encontrado uma das formas mais bonitas de interpretá-la. Outro motivo de contentamento íntimo é o fato de este movimento — simples, obscuro, escondido lá no meio dos quartetos de Telemann — ser uma antiga preferência deste blogueiro. Tinha a fantasia de que era uma pequena jóia da qual pouquíssimos tinham conhecimento. Ontem, a fantasia foi desfeita pelo Giardino Armonico, que a usou num de seus vídeos promocionais. Bobagem, né? Mas fico todo orgulhoso nesta época de pequenas tragédias pessoais.

Ou aqui.