Um grande mistério bachiano: o corno da tirarsi

Um grande mistério bachiano: o corno da tirarsi

Traduzido por mim da Scherzo

Achamos que sabemos tudo sobre Bach e sua música, mas o compositor mais universal da história da música ainda guarda muitos mistérios. Por exemplo, o que era o corno da tirarsi? É um instrumento que aparece em quatro cantatas: Schauet doch und sehet, ob irgend ein Schmerz sei BWV 46, Halt im Gedächtnis Jesum Christ BWV 67, Herr, gehe nicht ins Gericht mit deinem Knecht BWV 105 e Ach! ich sehe, itzt, da ich zur Hochzeit gehe BWV 162. O instrumento ainda é assunto de debate hoje, uma vez que não está claro se ele seria mais parecido com uma trompa ou com um trompete. Ou vice-versa (obviamente, nenhum corno da tirarsi chegou aos nossos dias, nem há qualquer iconografia dele). Seu sobrenome (da tirarsi) pode levar à conclusão de que o instrumento possuía uma haste ou hastes (como um trombone) e que para fazê-lo soar era necessário puxá-las (daí, o tirarsi). Mas nem todo mundo pensa o mesmo.

Com apenas três dias de intervalo, o Bach-Stiftung de St. Gallen e o Nederlandse Bachvereniging publicaram gravações da Cantata BWV 67 em seus respectivos canais do YouTube. Os suíços, como sabemos, estão gravando (e lançando em sua própria gravadora) em áudio e vídeo toda a música vocal do Kantor. Os holandeses estão indo um pouco mais longe, pois estão fazendo o registro completo dos trabalhos de Bach em seu site. As diferenças entre o corno da tirarsi usado por um e outro não podem ser maiores.

O Bach-Stiftung de Rudolf Lutz privilegia um instrumento que é apresentado neste vídeo pela conceituada trompista inglesa Anneke Scott, especialista em todos os tipos de trompas históricas e figura onipresente nas principais formações historicamente informadas da Europa:

Por sua vez, o Nederlandse Bachvereniging, dirigido nesta ocasião pelo seu diretor artístico titular, Jos van Veldhoven, privilegia outro modelo, construído em sua oficina pelo trompetista (inglês, como Scott) Robert Vanryne, que é justamente quem o toca nesta gravação do conjunto holandês. Aqui estão as explicações que Vanryne sobre o instrumento e o que poderia ser o corno da tirarsi de Bach:

Tendo visto e ouvido as explicações de Scott e Vanryne, vamos agora verificar os resultados. Primeiro, a gravação da Cantata BWV 67 pelo Bach-Stiftung de St. Gallen, com Olivier Picon (provavelmente o melhor especialista em trompas históricas do momento) tocando o corno da tirarsi (atenção em 2min30, é necessário clicar em play e depois em Assistir no Youtube):

E, em segundo lugar, vamos dar uma olhada na gravação feita pelo Nederlandse Bachvereniging dessa mesma cantata, com o referido Vanryne tocando o que parece ser uma variante de um trompete natural e que tem que tem pouco de uma trompa (atenção em 2min50):

Duas grandes versões de uma autêntica joia de Bach! Mas ainda não desvendamos o que era o corno de tirarsi. Talvez o retrato de Gottfried Reiche (1667-1734) nos ajude. Reiche não foi apenas um grande trompetista a serviço de Bach em seu período de Leipzig, mas também um amigo próximo do compositor de Eisenach. Sem ser exatamente igual a nenhum dos dois instrumentos em disputa, o que Reiche tem em mãos é muito mais próximo do de Picon do que do de Vanryne.

Caso alguém queira saber mais sobre o corno de tirarsi, pode consultar aqui. Esta é a tese de doutorado elaborada em 2010 por Picon após terminar seus estudos na Schola Cantorum Basiliensis.

As melhores Cantatas de Bach

As melhores Cantatas de Bach

Escolher as “melhores” das mais de 200 cantatas sacras de Johann Sebastian Bach é uma tarefa assustadora, pois cada uma delas parece perfeita. Mas três grandes especialistas em Bach aceitaram o desafio.

Traduzido da dw.com

Peter Wollny, diretor do Arquivo Bach em Leipzig, Michael Maul, novo diretor do Bachfest, e Sir John Eliot Gardiner, maestro britânico, presidente do Arquivo Bach, escolheram as que consideram as “maiores” cantatas de Bach. Maul identificou 33, Gardiner tinha um total de 38 e Wollny 52.

Cada um do trio fez sua lista individualmente e 15 cantatas apareceram nas três relações. Então, já juntos, Wollny, Maul e Gardiner reduziram a lista para 33.

Isto foi feito nas primeiras 48 horas do Bachfest de Leipzig, em agosto de 2018. Depois, todas as 33 Cantatas foram apresentadas durante o Festival.

Então, o que é uma Cantata? O termo vem do italiano “cantare” e tem a ver com canto. A cantata é um trabalho vocal com duração de cerca de 20 minutos que compreende várias peças menores — árias, corais, recitativos, sinfonias.

Uma Cantata geralmente leva o mesmo nome que um hino de igreja, e as melodias e motivos musicais do hino — frequentemente o próprio hino – soam ao longo da peça. No tempo de Bach, cantatas sacras eram apresentadas durante os cultos da igreja, e os textos cantados tinham a ver com o tema da leitura do evangelho naquele domingo. É por isso que existem Cantatas para os domingos e feriados específicos do ano litúrgico.

Bach compôs Cantatas semana após semana e mandou tocá-las pelos meninos do coral de St. Thomas e por quaisquer instrumentistas que pudesse arranjar. Poderia ele sonhar que, 333 anos após seu nascimento, a performance de 33 de suas cantatas em seu último local de trabalho seria notada em todo o mundo? Só se pode especular.

Não é um ribeiro, é um oceano!

“Ele não deveria se chamar Ribeiro, mas Oceano!”é uma frase atribuída a Ludwig van Beethoven. É um jogo de palavras: “Bach”, em alemão, significa “ribeiro” ou “riacho”. Beethoven estava se referindo à quantidade  e à qualidade universal da obra de Bach. Nesse oceano, as cantatas são ilhas menos conhecidas do que muitos de seus outros trabalhos, mas definitivamente valem uma visita — ou uma revisão. A música é atraente na primeira audição, e torna-se ainda mais interessante quando cresce a familiaridade.

E aqui estão os 33 “melhores” selecionados por Peter Wollny, Michael Maul e Sir John Eliot Gardiner:

· Nun komm der heiden Heiland, BWV 61
· Wachet auf, ruft uns die Stimme, BWV 140
· Ich habe genug, BWV 82
· Wie schön leuchtet der Morgenstern, BWV 1
· Weinen, Klagen, Sorgen, Zagen, BWV 12
· O Ewigkeit, du Donnerwort, BWV 20
· Ich hatte viel Bekümmernis, BWV 21
· Es erhub sich ein Streit, BWV 19
· Schwingt freudig euch empor, BWV 36
· Wachet! Betet! Betet! Wachet !, BWV 70
· Unser Mund sei voll Lachens, BWV 110
· Sede de Saba alle kommen, BWV 65
· Jesus schläft, was soll ich hoffen, BWV 81
· Liebster Emanuel, Herzog der Frommen, BWV 123
· Sehet, wir gehen hinauf gen Jerusalem, BWV 159
. Herr Jesu Christ, Mensah und Gott, BWV 127
· Himmelskönig, sei willom, BWV 182
· Der Himmel lacht! die Erde jubilieret, BWV 31
· Bleib bei uns, denn es will Abend werden, BWV 6
· Ihr werdet weinen und heulen, BWV 103
· Ewiges Feuer, O Ursprung der Liebe, BWV 34
· Die Himmel erzählen die Ehre Gottes, BWV 76
· Die Elenden Sollen Essen, BWV 75
· Brich dem Hungrigen dein Brot, BWV 39
· Ach Gott, vom Himmel sieh darein, BWV 2
· Herr, gehe nicht ins Gericht, BWV 105
· Ich will den 
Kreuzstab gerne tragen, BWV 56
· Komm, süße Todesstunde, BWV 161
· Liebster Gott, Wann Wird ich sterben, BWV 8
· We weß, we have the mir mein Ende, BWV 27
· Christus, der ist mein Leben, BWV 95
· Nimm von uns, Herr, du Geu, BWV 101
· Jesus, der meine Seele, BWV 78

Obs. do blogueiro: Eu não estou muito disposto a discutir com o Gardiner e companhia, mas a 106 e a 80 tinham que estar na lista! Agora, achei ótimas as presenças das pouco citadas 36, 75, 95 e 127. A 106, a 80 e a 82 são minhas preferidas, além da incrível 198. E a sensacional 78?

Perfil: há 55 anos o tenor Antônio Télvio de Oliveira solava a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa

Perfil: há 55 anos o tenor Antônio Télvio de Oliveira solava a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa

Milton Ribeiro

Antônio Télvio de Oliveira | Foto: Joana Berwanger / Sul21

Há uma canção de Chico Buarque, Sentimental, onde uma menina de 16 anos que acredita em astrologia afirma simplesmente que “o destino não quis”. Em outro gênero, realmente digno de uma Sherazade, a escritora dinamarquesa Karen Blixen escreveu 5 surpreendentes contos sob o título Anedotas do Destino. Também há uma frase atribuída a Woody Allen: “Se você quer fazer Deus rir, conte a ele seus planos”.

Tudo conspirava para que o jovem Antônio Télvio de Oliveira tivesse uma carreira internacional como tenor. Começou a carreira de maneira fulminante solando a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa sob a regência de Pablo Komlós, aos 22 anos. Depois, foi para fora do país, obteve bolsas e mais bolsas de estudo, só que o destino lhe preparou das suas. O mundo deu muitas voltas e Télvio se safou por ter também os talentos de desenhista e técnico em eletrônica. Mas sempre poderá dizer que cantou com Montserrat Caballé antes de ela cantar com Freddie Mercury.

Conversamos com Antônio Télvio em seu apartamento no bairro Petrópolis em Porto Alegre. Vamos à história.

Abaixo, um registro de 1966 onde você poderá ouvir sua voz de tenor. Esta gravação foi realizada na Capela do Colégio Rosário com o organista Camilo Vergara, o Coro de Meninos do Colégio Roque Gonzales e regência de Aloísio Staub.

Guia21: Teu nome completo é?

Télvio: Eu nasci no dia de Santo Antônio, por isso me botaram o nome de Antônio. Antônio Télvio Azambuja de Oliveira, mas eu nunca usei todo meu nome, às vezes uns jornais botavam Antônio Oliveira, outros botavam Antônio Télvio. Na Espanha, me chamavam de “Azambuia”.

Guia21: Como e quando começou o seu interesse pela música?

Télvio: A minha mãe era musicista amadora. Tocava piano de ouvido. A minha vó também tocava piano. A minha casa era muito musical.

Guia21: Faziam saraus na tua casa?

Télvio: Sim. Inclusive minha mãe tinha uma gaitinha de boca que era um chaveiro, ela tocava o Boi Barroso num chaveiro! Era uma musicista nata. Não tenho essa musicalidade.

Guia21: E então, como tudo começou?

Télvio: Bom, quando eu estava no ginásio, havia uns festivais de música, coisa do interior. Minha família era muito social e eu cantava de vez em quando. Então começaram a solicitar que eu cantasse. Eu alcançava uns agudos que nem sei como… Uma vez, nós fizemos uma excursão até Santa Maria para jogar futebol ou basquete. E, à noite, fomos a uma boate chamada Casbah. O local tinha uma decoração de casa de sultão. Aí eu, com meus colegas todos, todos de 18, 19 anos, ouvi alguém gritar: “Esse canta, esse aqui canta!”. E eu tive que cantar no meio de uma boate de estilo Oriente Médio.

Guia21: Sem acompanhamento?

Télvio: Na base da porrada, a cappella mesmo! Cantei umas canções napolitanas naqueles tapetes. Foi um aplauso danado. O cara da boate quis me contratar. Os meus amigos disseram pra ele: “Vai falar com o pai dele, que tu vai levar um corridão”. Meu pai não era muito desses negócios, era o tipo de cara que se escutasse uma buzina de automóvel ou uma canção, era a mesma coisa. E aquilo morreu por ali… Só que eu fiquei com aquilo na cabeça. Aquela música… Eu a cantava em casa. Depois começaram aquelas Ave Marias que eu era chamado para interpretar em casamentos de vez em quando. E eu pensei “Pô, vou estudar canto”.

Guia21: Nisso tu tinhas 16 anos, mais ou menos?

Télvio: Sim, 16, 17, por aí. Naquele tempo eu era meio vagabundo, terminei o ginásio só com 17, não gostava de estudar. Aí vim para o Colégio Rosário em Porto Alegre — vim para fazer o científico, atual segundo grau — e ao mesmo tempo me matriculei no curso preparatório de canto no IBA (Instituto de Belas Artes da Ufrgs) e comecei a estudar. Vamos abrir um parêntese? Minha família costumava veranear em Iraí, naquela estação de águas. Hoje não se fala mais nas águas termais de Iraí, mas naquela época Iraí era um lugar onde ia muita gente no verão… E, certa vez, estava lá dona Eni Camargo. Ela foi uma personalidade muito interessante aqui de Porto Alegre. Ela era cantora e professora na Ufrgs. No hotel onde ficávamos havia saraus de música em que ela cantava e tocava piano. Era uma veranista em Iraí, como nós. Então, em Porto Alegre, antes de começarem as aulas, eu a visitei. Fui lá, me apresentei e a Eni Camargo quis escutar alguma coisa. Eu lembro que cantei Torna a Sorrento. Aí ela olhou pro marido dela, o Osvaldo Camargo, e disse assim: “Olha aí, Osvaldo. Esse cara tem uma voz que parece a do Mario del Monaco. Eu nem sabia quem era Mario… Aí ela me aconselhou a estudar no Belas Artes com a professora Olga Pereira. Eu saí de lá e passei numa loja de discos para ver quem era esse Mario del Monaco, mas a minha voz não era parecida com a dele, nunca foi.

Foto: Joana Berwanger / Sul21

Guia21: E tu entraste no Belas Artes.

Télvio: Comecei a estudar lá em 1959. O canto é um negócio complicado, tu demoras para fazer alguma coisa que preste. Um ano antes de concluir o curso, eu fiz vestibular para Filosofia, que achei que seria fácil de passar. Passei. Entrei na Filosofia por causa do meu pai. Achava que tinha que dar satisfação pro velho, né? Ele queria Direito ou Engenharia. Ele pensava que o Canto não era sério — meu pai ficava estranho comigo quando o assunto era Canto, como se eu fosse viado, sabe como é. O curioso é que eu estudava Filosofia, Canto e gostava muito de eletrônica, vivia criando verdadeiras parafernálias, equipamentos.

Guia21: Tu sempre tiveste duas tendências então, da música e da eletrônica?

Télvio: Desenhava também, mas isso desenvolvi depois.

Guia21: Foi nessa época que tu cantaste a Nona de Beethoven com Pablo Komlós e a Ospa?

Télvio: Aconteceu o seguinte: com o advento do coral da Ufrgs, ficava mais fácil de fazer a Nona. Eu não lembro direito, mas tenho a impressão de que foi a própria Eni Camargo que me apresentou ao fundador do coral propondo que eu solasse a 9ª Sinfonia como tenor. Fui fazer um teste com o Komlós e ele gostou. O Komlós chegou e me disse “depois você vai fazer um dos personagens secundários da ópera Carmen”. Eu respondi que não ia fazer. Ele deve ter me achado o fim da picada, porque eu disse que ele, um dia, ia me convidar para fazer o papel principal. O Komlós me olhou como quem dissesse “que metido!”. (risos)

O Correio deu | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: Como era a Ospa naquela época?

Télvio: Naquela época, não havia Ospa como fundação, mas sim como sociedade. Quem sustentava a Ospa era a colônia judaica, que fazia chás e não sei mais o que a fim de sustentar a orquestra. Não era ainda um esquema profissional. Além da sociedade judaica, os descendentes de alemães também ajudaram muito a música de Porto Alegre, eles tinham o Clube Haydn na Sogipa. Então, havia duas orquestras sinfônicas aqui. Para a 9ª, veio para cantar junto comigo o Lourival Braga, do Rio. Uma voz extraordinária, um barítono precioso. Foi uma loucura aquilo! Aí cantamos a 9ª Sinfonia de Beethoven, uma beleza!

Télvio está de óculos, sentado, bem no centro da foto, durante a execução da 9ª com a Ospa em abril de 1963 | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: Onde foi?

Télvio: Foi no Salão de Atos da UFRGS, antes da reforma, claro (foto acima).

Guia21: E o medo do palco? Tu tinhas 21, 22 anos.

Télvio: Eu estava nervoso, é óbvio. Tem aquela história da famosa atriz francesa Sarah Bernhardt. Sarah tinha uma escola de teatro e costumava perguntar para os alunos se eles ficavam nervosos no palco. Um dizia “eu fico bastante nervoso, sim”, outro dizia “eu não fico nada nervoso, entro no palco sem medo” e ela respondia para estes, “é… o nervosismo vem com o talento”.

Guia21: Se o artista não está nem um pouco nervoso, não está mobilizado.

Télvio: Eu sempre fiquei muito nervoso antes de entrar no palco. Me borrando mesmo. Mas, no momento em que dava a primeira nota, eu começava a me sentir poderoso. Acho que com todo músico é assim, apesar de que a música que tu estás sentindo dentro de ti é diferente da que o outro está escutando. Ou seja, tu podes estar te achando o máximo e o resultado não ser o esperado. Quando terminou esse concerto, o presidente da Sociedade de Cultura Artística do Rio de Janeiro me disse que tinha uma bolsa de estudos para dar. Ele me escutou novamente no Belas Artes e me disse que ia me dar a tal bolsa. Eu fiquei num estado de animação total e comecei a contar para todo mundo que tinha ganhado a bolsa, mas não veio nada… Fui trouxa.

Foto: Joana Berwanger / Sul21

Guia21: E seguiste cantando.

Télvio: Depois da Nona, o Pablo Komlós me convidou para cantar O Rei Davi, de Honegger. Eu ensaiei esta ópera como um louco. Até hoje sei tudo de cor, sonho com aquela música. Eu estudei e ensaiei com unhas e dentes aquela música complicada acompanhado pelo pianista Hubertus Hoffmann. Um dia, o Hoffmann me diz que eu não iria cantar O Rei Davi… Que quem ia cantar era a Ida Weisfeld. Eu ri e respondi: “Isso é para tenor, não é para mezzo soprano”. E nem falei com o Komlós, pensei que fosse uma invenção dele. Só que o Komlós realmente fez aquele absurdo e eu ainda assisti. Ela cantou a parte do tenor, acredita? Depois, soube de duas informações contraditórias: a primeira era a de que eu fora considerado muito jovem para o papel, a segunda era a de que eu não tinha aparecido num ensaio geral — o que é uma mentira, eu não tinha sido era avisado. Então, neste ensaio, quando estavam todos me esperando, o Komlós perguntou se alguém podia fazer a minha parte e a Ida apareceu. Deu uma passadinha na partitura com o pianista Roberto Szidon — também ele cantava no coral — e ficou prontinha. É óbvio que aquilo foi uma armação deles, porque ninguém canta O Rei Davi sem muito ensaio, ninguém no mundo canta aquilo à primeira vista. Ela já viera preparada. Assim era a Ospa, um saco de gatos, uma coisa bagunçada, suja. O Komlós criava situações horríveis. Marcava três récitas, convidava a gente para a terceira e ela não saía. Só para fazer a gente ensaiar. Uma vez o Paulo Melo, outro cantor, disse que ia processá-lo se não saíssem todas as récitas. Aí saíram, claro. A Ospa tinha uma aura de sacanagem, de psicopatia.

Guia21: Mas tu acabaste viajando.

Télvio: Sim, com essa mesma 9ª Sinfonia, surgiu uma pequena possibilidade de um curso em Santiago de Compostela. Era um curso de três meses, mas não dava passagem de ida nem de volta. Fui falar com o maestro Komlós e falei pra ele “olha, o Belas Artes me deu uma carta de recomendação para o consulado espanhol”. Então ele escreveu outra, também me recomendando. Eu levei tudo ao consulado e a bolsa surgiu. Tinha um voo da Panair que saía do Rio com desconto só para portugueses e brasileiros. Meu pai fez uma vaquinha para me ajudar. Peguei um ônibus aqui, fui até o Rio e viajei. Passei três meses em Compostela. Só tinha cem dólares, menti para o meu pai que eles iam pagar a viagem de volta. A juventude é assim, né? Não sabia o que eu ia encontrar lá, eu não sabia nada! Parecia que as coisas de lá eram melhores do que tudo aqui, mas não era tanto assim. Na Espanha, cantei em várias audições e recitais, mas quando terminou o curso, bom, e agora José?

Guia21: Teus professores lá eram gente conhecida?

Em pé, Télvio e Montserrat Caballé | Foto: Arquivo Pessoal / Joana Berwanger / Sul21

Télvio: Sim. Um monte de lendas: Andrés Segovia, Montserrat Caballé, cantei com ela (foto acima). Estava cheio de artistas internacionais ali. Eu estava apaixonado por uma das cantoras, que era de Barcelona. Outros alunos já estavam se juntando para prestar um concurso em Barcelona e eu pensei “tenho que ir também”. Mas os meus cem dólares não davam cria, pelo contrário! Com recomendações, consegui uma bolsa de 6 meses junto ao Instituto de Cultura Hispânica. Me senti garantido. Me davam cem dólares por mês. Era o suficiente para uma vida bem modesta, então comecei a fazer outros trabalhos, eu sempre desenhei. Lá pelas tantas consegui trabalho. Passaram-se mais 6 meses e renovaram a bolsa. No final deste segundo período, minha professora me perguntou se eu queria retornar para Santiago de Compostela e fazer o curso de lá novamente, tinha todo ano. Eu disse que não, mas me deu medo de ficar sem dinheiro e no fim retornei para Santiago de Compostela, para ganhar por mais três meses. Lá em Compostela foi fantástico. Por exemplo, estreamos uma Cantata do argentino Isidro Maiztegui e eu fiz a parte do tenor.

Guia21: E a paixão?

Télvio: Todas estas andanças pela Europa foram crivadas de paixões por mulheres maravilhosas, muitas delas artistas. E o abandono daquilo lá me deixou muito amargurado. O Sérgio Faraco, que estudou na União Soviética, diz o mesmo. Aquelas mulheres… Entre as cantoras que eu conheci lá há uma que ficou muito famosa e com a qual eu não tive nenhum caso amoroso… Era a Montserrat Caballé. Uma tremenda cantora e um péssimo ser humano. Por exemplo, houve um momento em Compostela que uns cantores argentinos quiseram organizar um recital. E a Montserrat deu apoio, estava auxiliando em tudo. Só que numa aula, ela, com menosprezo, chamou algumas cantoras argentinas de índias. Bem, as argentinas se irritaram, claro. Os brasileiros se uniram a elas e ninguém cantou. Depois, ela foi convidada para cantar no Rio e São Paulo e teve seu visto negado por alguém que sabia daquelas ofensas. Deu a maior confusão e ela só pode vir em outra data. Cantou depois até em Pelotas. Era mais do que temperamental, era uma pessoa deselegante.

Guia21: Cantaste muito na Espanha?

Télvio: Sim, fiz algumas gravações em Barcelona e Madrid. Era estranho porque as pessoas diziam para eu cantar Mozart, mas eu preferia coisas mais pesadas.

Guia21: E no final desta sequência de cursos e bolsas de estudo?

Télvio: Eu falei com Hans von Benda, que se encontrava em Compostela, e ele me sugeriu estudar na Alemanha. Recebi dele uma carta de recomendação para eu levar na Embaixada Alemã. Fui na Embaixada em Madrid. Lá, é claro, me avisaram que eu, como brasileiro, deveria me dirigir à Embaixada da Alemanha no Brasil e não na Espanha. Então eu recebi uma carta que foi decisiva na minha vida. Era uma carta seca, escrita por meu pai, pedindo que eu retornasse imediatamente porque minha mãe estava muito doente, estava mal, seria internada, etc. Houve uma espécie de chantagem emocional, como tu verás. Antes de viajar, eu ainda cantei em Madrid. Lá, entre outras obras europeias, quase todas de câmara, eles sempre pediam para eu cantar brasileiros como Carlos Gomes, Alberto Nepomuceno, etc.

Em catalão: um programa de um recital de Télvio em Barcelona | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: E voltaste…

Télvio: Sim, peguei os últimos dólares que tinha, comprei uma passagem de navio e voltei. 15 dias de viagem. Quando cheguei ao Rio, fui à Embaixada da Alemanha – era no Rio na época – e entreguei a carta para estudar lá.

Guia21: E foste ver a família.

Télvio: Bem, a situação familiar em Santiago não era nada trágica. Eles só queriam que eu voltasse. Quando encontrei minha mãe, ela estava bem e disse que quem estava doente era o meu pai. Enfim, era algo confuso. Ninguém estava doente, parecia. Vim para Porto Alegre e, passado um tempo, recebi a resposta dos alemães dizendo que eu tinha que me apresentar em Köln em determinado dia. Voltei a Santiago para me despedir e, talvez, conseguir algum dinheiro com o velho. Então, um tio meu, médico, me disse que meu pai tinha uma bomba no bolso, ou seja, que havia perigo de um enfarto. Me pediu para adiar a viagem em um ano. Concordei em ficar.

Foto: Joana Berwanger / Sul21

Guia21: Perigo.

Télvio: Pois é. Escrevi para a Alemanha solicitando adiamento e os alemães disseram que o adiamento dependeria do orçamento para o ano seguinte. E nunca mais. Eu perdi a oportunidade. Só isso.

Guia21: E o que fizeste?

Télvio: Enquanto eu esperava a tal chamada da Alemanha, voltei a trabalhar com desenho em Porto Alegre. Comecei a me desligar da música. Ainda cantei muito, mas aquilo marcou o início de meu afastamento. Neste período, o Komlós me convidou para cantar I Pagliacci. Eram duas récitas, numa eu ia cantar Canio e em outra o Arlequim. Naquele tempo, era no Araújo Vianna. Tinha um cara que tinha uma carroça puxada por um cavalo, que vendia lanches fora do auditório. E tu sabe que os palhaços tinham uma espécie de carroça onde ficava seu palco.

Guia21: Normal, em O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, os atores têm uma carroça. Eles abriam uma cortina e virava um palquinho…

Télvio: Isso! Exatamente isso! E naquele espetáculo, nós entrávamos, os cantores, os atores, dentro daquela carroça de lanches. O Araújo Vianna é redondo, tem portas largas e o carro entrava no palco conosco dentro cantando, com o cavalo puxando. E começava a história. De noite, o cavalo pastava no gramado ao lado do Araújo Viana. Nunca fugiu. Na segunda récita, veio a maior chuva, foi aquela correria de músicos, com os violinos, tudo. E a ópera não aconteceu mais.

Guia21: O Araújo não tinha cobertura na época.

Télvio: Sim, molhava tudo.

Guia21: E a carreira?

Télvio: Na verdade, eu poderia seguir a carreira de músico fazendo o que a maioria dos cantores fazem: dando aulas. Só que eu detesto dar aulas. Nesta volta, ainda fiz algumas gravações, mas já estava desistindo da carreira. Passado algum tempo, só desenhava e trabalhava com eletrônica. Abri mão de tudo, passei mais de dez anos sem cantar nada, sem dar uma nota. Então, com quase 40 anos, voltei a cantar óperas e cantatas de Bach e Buxtehude. Com a Ospa novamente, ali na Igreja Santa Cecília. A Ospa com suas fofocas e futricos… Bá, eu tinha uma raiva daquilo! Cantei Britten também naquela época.

O programa do concerto de Télvio e da Ospa apresentando Cantatas | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: Sobre a tua desistência. Foi uma coisa do ambiente? Não tinha perspectiva?

Télvio: Se eu tivesse ficado na Europa, faria uma carreira musical. Aqui eu não tinha perspectiva. Ninguém tem como seguir só cantando. E eu não queria dar aula.

Guia21: Sim, os cantores dão aula. Quase todos eles dão aula, acho.

Télvio: Eu não gostava e tinha outras maneiras de ganhar dinheiro. Eu publicava revistas de quadrinhos, fazia desenhos para jornais. Cheguei a chefe do departamento de eletrônica da Narcosul Aparelhos Científicos, uma empresa que fabricava aparelhos eletrônicos voltados para a área médica.

Guia21: Sim. Tu te sustentavas, evidentemente. E o que tu publicavas em jornais?

Télvio: Eu criava desenhos para ilustrar matérias, cadernos, tudo. Tenho guardados vários trabalhos meus para o Jornal do Comércio.

Caderno sobre a Revolução Farroupilha ilustrado por Antônio Télvio | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Télvio: Já na Narcosul eu fiquei muitos anos. Trabalhei também na Parks com equipamentos para comunicação digital.

Guia21: Mas tu és formado em…

Télvio: Em nada. Fiz um ano de Filosofia só e larguei.

Guia21: Mas e a eletrônica? Como aprendeste, como ela entrou na tua vida?

Télvio: Eu sempre estudei eletrônica. Desde guri, só por diletantismo. Posso mostrar os equipamentos que eu fiz, tu não vai acreditar. Eu até hoje não acredito! No dia em que eu comecei a estudar computadores, a primeira coisa que fiz foi montar um. Fiz ligação por ligação. E funcionava!

Guia21: Mas disseste que voltaste a cantar lá pelo 40 anos.

Télvio: Eu cantava aqui e ali, em concertos e recitais. Com a Ospa, cantei uma operazinha regida pelo Túlio Belardi, mas já me considerava um diletante. Não ganhei dinheiro nenhum com aquilo, nem queria. Aí houve outro fato que aí sim, aí eu disse “não vou fazer mais porcaria nenhuma”. Iam fazer uma ópera sobre os Farrapos e outra sobre as Missões. O autor era Roberto Eggers, que foi o primeiro regente de orquestra aqui em Porto Alegre. Ele escreveu duas óperas: Missões e Farrapos. Dizem que neste fim de semana vão estrear a primeira obra musical que foi escrita sobre a Revolução Farroupilha, uma ópera rock… Não sabem de nada. Um dia, o Emílio Baldini, que era colega meu, professor, me levou até o Eggers para ele me escutar, para a gente fazer a ópera sobre Missões. Aprendi toda a Missões. No dia em que era para começar os ensaios…

Guia21: Isso foi depois do Belardi e as Cantatas?

Télvio: Sim, pós Belardi. Com a Ospa de novo… Confusão daqui, confusão dali, mudaram todo o elenco. O Eggers disse que não ia deixá-los fazer sua ópera. Eu respondi “não, não faz uma coisa dessas. Sou um amador, não vou ganhar dinheiro com isso. Tu não. Não seja bobo. Fica quieto”. Aí, disse para mim mesmo “Bom, encerro. Não quero mais saber desse troço. Enchi o saco”.

Guia21: Tu já estava na Narcosul nessa época.

Télvio: Sim.

Guia21: Na Narcosul tu eras o chefe da eletrônica, certo? E, no desenho, que que tu fizeste?

Télvio: Desenhava para propaganda, desenhava charges, ilustrava matérias, fazia figuras de pessoas. Todo o dia o Jornal do Comércio tinha um desenho meu. Eu guardei algumas coisas, devia ter guardado mais, mas, na época, não dava valor para aquilo.

Matéria do Jornal do Comércio com ilustração de Antônio Télvio | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: E aí tu te tornaste um ouvinte do PQP Bach.

Télvio: Um grande ouvinte do PQP Bach. Tenho muita coisa de lá.

Guia21: E que papel tem a música hoje na tua vida?

Télvio: Olha, cara, hoje eu estou aposentado, fico no meu canto, mas ouço muita música, sim.

Guia21: Tu passa os dias escutando música?

Télvio: Não. Nunca pensei quanto tempo eu escuto música, mas é bastante. Eu ouço bastante. Só que certamente não ouço mais do que tu.

Guia21: Ouço mais ou menos uma hora por dia.

Télvio: Eu até ouço mais, às vezes.

Guia21: Tu cantarolas por aí?

Télvio: Não. Nada.

Guia21: Nada?

Télvio: Nada.

Guia21: Se tu te entusiasma por alguma coisa, tu não canta?

Télvio: Não canto. Há umas gravações minhas por aí, nem ouço mais. Também fiz várias edições extraordinárias em jornais onde eu desenhava tudo de cabo a rabo, mas não fico olhando.

Guia21: E tu frequentas concertos?

Télvio: Pouco. Esses dias fui ver o ensaio de uma ópera de Mozart. Não cantaram duas árias porque o tenor estava doente. Ele cantou outras, mais fáceis. Não tinha substituto! Isso é inconcebível num lugar sério. Aliás, as substituições são muito comuns, inclusive. Acontece de bons cantores substitutos se aproveitarem dessas oportunidades e roubarem a cena. Isto é, pelo visto a coisa não mudou tanto assim em todos esses anos. Olha, quando tu tens apenas uma opção de vida, “só posso ser cantor”, tu tenta de novo, tu insistes. Quando tu tem várias — eu tinha a eletrônica e o desenho que também me satisfaziam internamente –, tu buscas outra saída.

Guia21: Tu não ficaste frustrado?

Télvio: Eu sempre seria frustrado, porque é impossível abraçar tudo.

Guia21: Porque hoje tu tens 77 anos e a gente ouve que tu ainda tens equipamento, uma voz muito bonita e forte.

Télvio: É, sempre tive uma voz forte, dizem que boa…

Guia21: Isso eu estou ouvindo.

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Com decupagem de Nikolay Romanov e revisão de Elena Romanov.

Bach, Vivaldi, suas mortes e a ironia das datas

Bach, Vivaldi, suas mortes e a ironia das datas
Vivaldi e Bach

Ingmar Bergman, o cineasta que dedicou parte de sua obra a analisar o silêncio de Deus e a solidão do ser humano, morreu em Fårö no dia 30 de julho de 2007, na mesma data em que morria em Roma Michelangelo Antonioni, o cineasta da incomunicabilidade. Miguel de Cervantes faleceu em Madrid na data de 23 de abril de 1616, mesmo dia da morte de William Shakespeare em Stratford-upon-Avon. O fato de a morte dos dois maiores escritores da Idade Moderna ter ocorrido na mesma data apenas é deslustrado por uma verdade que destrói o mito temporal: Shakespeare faleceu sob a regência do calendário juliano, o que empurra sua morte para dez dias depois. Já Johann Sebastian Bach (1685-1750) não morreu no mesmo ano em que Antonio Vivaldi (1678-1741) faleceu, mas há muitas coincidências que ligam os dois maiores nomes da música barroca — para começar, ambos “escolheram” o 28 de julho como data de morte.

Bach e Vivaldi foram compositores totalmente diferentes. Basta uma audição de alguns segundos para que fique identificado um e outro. Eles criaram suas obras numa época especialmente complicada — são compositores do barroco tardio, ou seja, produziam no momento histórico em que se iniciava o período clássico. Eram, portanto, compositores antiquados em seu tempo. Os filhos compositores de Bach já encaravam o pai como alguém do passado e Frederico II, quando o convidou para visitar sua corte, ouviu-o sem o menor respeito, como quem ouve um animal em extinção, apesar do que dizem algumas lendas desinformadas. Já Vivaldi, il prete rosso, sem público em Veneza, vendeu grande parte de seus manuscritos para pagar uma viagem a Viena, onde Carlos VI o admirava, mas o imperador faleceu dias depois de sua chegada, frustrando os planos do italiano. A consequência é que ambos, Bach e Vivaldi, morreram pobres e fora de moda.

Vivaldi: um talentoso padre que não escondia suas relações com mulheres

Se não havia relações de estilo, havia relações musicais entre ambos, ao menos no sentido de Bach ter sido um admirador do estilo italiano e de conhecer profundamente a obra de Vivaldi. Ele fez mais: transcreveu vários dos concertos de Vivaldi para o cravo e o órgão. Alguns concertos para violino do L’Estro Armonico (1712) e de outros ciclos foram transcritos por Bach e certamente interpretados por ele, seus filhos e alunos. Podemos citar também a quase inevitável religiosidade dos dois compositores numa época em que se ensinava religião por mais da metade do horário escolar. Por muito tempo, Bach foi considerado uma espécie de santo, ao menos até Emil Cioran colocar alguns empecilhos, separando Bach e Deus, com vantagem para aquele: Sem Bach, Deus seria apenas um mero coadjuvante. Sem Bach, a teologia seria desprovida de objetivo, a Criação fictícia, o nada peremptório. Se há alguém que deve tudo a Bach, é seguramente Deus. E Vivaldi? Vivaldi era padre. Il prete rosso, o padre ruivo, ou vermelho.

Apesar de sacerdote, Vivaldi teve muitos casos amorosos, um dos quais com uma de suas ex-alunas do conservatório de Ospedale della Pietà, a depois influente cantora Anna Giraud (ou Girò), com quem mantinha também relações profissionais na área da ópera veneziana. As biografias mais pudicas dizem que Anna foi a moça por quem o grande compositor se apaixonou, a inspiradora de suas óperas e a tormenta de todos os seus dias, até a morte. Ela teria muitas vezes beneficiado Vivaldi em troca de papéis adaptados a suas capacidades vocais. Tais trocas levaram outros compositores, como Benedetto Marcello, a escreverem panfletos contra Vivaldi e Giraud. Já Bach teve dois longos casamentos. O amor por suas esposas pode ser depreendido através de suas cartas e dos vinte filhos resultantes — sete com a prima Maria Bárbara e treze com Anna Magdalena, uma cantora profissional com metade de sua idade. O casamento com Maria Bárbara acabou em razão da inesperada morte da mulher e o com Anna Magdalena ocorreu em 1721. Bach tinha 36 anos; Anna, 18.

Bach: evolução permanente e cegueira

Bach escreveu mais de mil obras. Muitas são curtas, mas há mais de 200 Cantatas com duração aproximada de vinte minutos e Paixões com 3 horas de duração. Sua obra completa foi gravada numa coleção da Teldec: são 153 CDs, mais ou menos 153h ou 6 dias e 8 horas de música, sem repetições. Já Vivaldi escreveu 477 concertos — segundo o hostil Stravinsky, tratava-se de 477 concertos iguais — , mais 46 óperas e 73 sonatas. Em seu caso, ainda há muitas óperas não gravadas — porém, considerando o porte das óperas gravadas, é crível que o tamanho de sua obra seja semelhante ao de Bach.

Vivaldi parecia ter nascido pronto, seu estilo de composição variou pouco durante sua vida. Já a música de Bach, se não teve seu estilo alterado de forma radical, foi ganhando qualidade de forma inacreditável. Grosso modo, suas últimas composições foram as Variações Goldberg, A Oferenda Musical e A Arte da Fuga. Estas são monumentos, verdadeiras catedrais construídas em homenagem ao contraponto e à polifonia. No final de sua vida, Johann Sebastian Bach estava em seu auge, criando, se não suas obras mais perfeitas, aquelas que mais recebem tempo e dedicação dos especialistas.

Bach fora míope durante toda a vida e, durante a composição de A Arte da Fuga, sua visão se apagou. Porém, em fins de março de 1750, ano de sua morte, o famoso cirurgião oftalmológico John Taylor esteve de passagem em Leipzig. Ele foi levado até Bach e o operou. Taylor afirmou que em dois os três dias o paciente voltaria e enxergar. Depois de algumas semanas, como o paciente não apresentasse melhoras, houve uma nova operação, além de sangrias, ventosas e bebidas laxativas para limpá-lo. Apareceu um outro médico que brigou com Taylor. Então foi utilizado sangue de pombo nos olhos do compositor, além de açúcar moído e sal torrado. Dizem que em 18 de julho, dez dias antes de morrer, ele voltou a enxergar, mas no mesmo dia teve febre alta e caiu na inconsciência.

Não era alguém importante para a época. Nem sequer seu túmulo foi indicado. O corpo se perdeu. É um fato tristemente cômico que aquilo que está na catedral de São Tomás, em Leipzig, uma espécie de jazigo construído em sua honra em 1950 — por ocasião do bicentenário de sua morte — não sejam seus restos mortais, mas apenas o testemunho de seu esquecimento. Sua obra começou a ser recuperada por Felix Mendelssohn em meados do século XIX. Mas não é mera casualidade o fato de Mozart e Beethoven terem conhecimento de parte da obra do mestre. Eram estudiosos. Tanto que Beethoven escreveu que seu nome não deveria ser Bach (regato, ribeiro) e sim mar.

Túmulo de Bach na Catedral de St. Thomas, em Leipzig: Bach não está aí

Já Vivaldi foi esquecido por muito mais tempo. Sua ressurreição começou apenas em 1939, quando o compositor italiano Alfredo Casella organizou uma exótica Semana Vivaldi. Depois veio a guerra e só em 1947 foi fundado um tímido Istituto Italiano Antonio Vivaldi com o propósito de promover a música de Vivaldi e publicar novas edições de seus trabalhos. O longo inverno vivaldiano começou logo após sua morte. Quando morreu, era um mendigo em Viena. Teria morrido de “infecção interna”.  Em 28 de julho, ele foi enterrado em um túmulo simples no cemitério do hospital de Viena. Seu corpo, assim como o de Bach, foi perdido. Hoje existe apenas uma placa de homenagem na parede da Universidade de Viena registrando um dos possíveis locais do seu túmulo.

Placa indicando a possível localização do túmulo de Vivaldi, em Viena (Áustria)

As Cantatas de Bach e a recepção da música sacra pelos fiéis em Leipzig entre 1700-1750

As Cantatas de Bach e a recepção da música sacra pelos fiéis em Leipzig entre 1700-1750

Tenho ouvido tantas Cantatas que resolvi roubartilhar isso aqui. A fonte está neste link. Texto de Rebello Alvarenga.

Bach ora“Bach não tinha intenção de compor obras de arte musicais”

Bach peqPara qualquer amante da música clássica, as Cantatas de Bach são uma espécie de testamento religioso. Objetos de adoração, as Cantatas são, entre os músicos, focos de infindáveis discussões acerca da maneira mais correta de se interpretar a “intenção artística de Bach”, no propósito de chegar a um entendimento perfeito da voz deste “verdadeiro deus da música”. Quanto ao público, os mais ardentes fiéis da música bachiana correm atrás das melhores interpretações de suas Cantatas e Paixões na esperança de também alcançar a “verdade artística” de sua música. É inegável que a performance de uma Paixão Segundo São Matheus é encarada pelos amantes de Bach como a oportunidade de contemplar, pessoalmente, um “milagre acontecendo diante dos olhos”. Como verdadeiros fiéis, postam-se em silêncio contemplativo, absorvendo ao máximo tudo o que o texto musical bachiano oferece em “todo seu esplendor”. No entanto, a realidade acerca da percepção e atenção com a música sacra pelos contemporâneos de Bach é muito distante do que nossa apreciação contemporânea idealiza.

É preciso antes de tudo saber que Bach viveu em uma época no qual o conceito de obra de arte musical ainda não regulava nem as práticas musicais e nem a apreciação do público. Como aponta a filósofa Lydia Goehr, J. S. Bach jamais teve a intenção de compor uma obra de arte (Goehr, 2007, XLII). A música ainda não possuía o discurso sacralizador que consagra o objeto artístico como uma criação única, advinda da vontade de uma espécie de semideus criador, o artista. O ser cuja vida é dedicada à sua fé artística e apartada das demandas comuns da vida como um criador cuja obra é a expressão de uma verdade superior é um discurso romântico e ainda não estava presente na mentalidade dos contemporâneos de Bach (Goehr, 2007, p.208). Antes do século XIX, a música era subordinada a uma função específica cujos propósitos ultrapassavam o campo musical e as Cantatas de Bach não são exceção. O próprio comportamento do público numa sala de concertos no século XVIII era completamente diverso do nossos hábitos contemporâneos. Conversas, perambulações pela plateia, pessoas entrando e saindo eram comuns nos concertos naquele século.

Nada, no entanto, nos autoriza simplesmente transportar o comportamento do público de concerto ao comportamento de um fiel num serviço religioso. Isto seria de uma generalização grotesca. O que é curioso, porém, é que outros fatores nos levam a desvendar um cenário que possui muitos paralelos com o comportamento público nas salas de concerto do século XVIII. A nossa compreensão acerca das condições de recepção dos fiéis na época das composições das Cantatas de Bach evoluíram muito com estudos recentes, como os dedicados à compreensão da recepção da música sacra durante a primeira metade do século XVIII em Leipzig, realizado pela musicóloga Tanya Kevorkian, e às transições e transformações da sociedade centro europeia, escrito por Carol K. Baron. Tais estudos nos trazem um painel no mínimo muito curioso.

Leipzig e os frequentadores dos serviços religiosos nos tempos de Bach

Leipzig no século XVIII
Leipzig no século XVIII

Antes de adentrarmos nas questões específicas acerca da receptividade das Cantatas de Bach, é preciso entender um pouco acerca de Leipzig e o intenso turbilhão social que a cidade passava no período. Quando Bach chega em Leipzig no ano de 1723, após perder espaço como músico do príncipe Leopold von Anhalt-Köthen, a cidade era o mais importante centro comercial da Europa central (Kevorkian, 2004, p. 61). A sua população aumentou mais de 50 porcento entre os anos de 1700 a 1750, indo de 21.000 para 60.000 (Baron, 2006, p. 3). O livro de endereços de Leipzig registrava, em 1715, 29 casas de comércio de seda, 13 atacadistas de algodão, três de comércio de vinho e nove casas de câmbio (Rueb, 2001, p.162). Mercadores enriqueceram, erguendo novas casas, colecionando arte e construindo parques públicos. Fora isso, Leipzig era o principal centro de comércio de livros de toda a Europa central, possuindo, em 1700, 18 casas de publicação e livrarias (Baron, 2006, p.5). Além disso, Leipzig possuía uma grande liberdade no que concerne à impressão e distribuição de livros. Durante o período abordado, a venda de livros cuja temática era laica cresceu enormemente e o público alvo passou do especialista ao leigo (Cleve, 2006, p.89).

A vida religiosa também sofria o impacto deste cenário agitado. A religião manteve um papel importante na vida cotidiana da cidade. Quatro novas igrejas foram construídas entre 1698 e 1715 (Kervokian, 2004, p. 65). O público dos serviços religiosos era notável. Apenas nas Igrejas de Saint Thomas e Saint Nicholas, os assentos comportavam em torno de 2.500 pessoas cada. A maioria dos frequentadores vinham de famílias burguesas que possuíam propriedades. A principal divisão social era entre as elites locais (mercadores, conselheiros municipais e suas famílias) e artesãos (padeiros, ferreiros, celeiros e suas famílias). Os tipos de assento e sua localização dentro da igreja obedeciam às respectivas divisões de classe bem como a separação entre mulheres e homens (Kevorkian, 2006, p.175).

As Cantatas de Bach, o comportamento e a atenção do público

Interior da igreja de São Thomas onde muitas Cantatas de Bach foram apresentadas
Interior da igreja de São Thomas onde muitas Cantatas de Bach foram apresentadas

O serviço religioso era dividido em três partes. Durante a primeira hora, cantos, hinos, leituras de escrituras e uma Cantata eram executados. A segunda parte consistia no sermão, que também possuía a duração de uma hora. A comunhão era preparada, acompanhada de hinos religiosos ou uma Cantata, levando à parte final que consistia de anúncios, orações e benção final (Kevorkian, 2006, p. 175).

A maioria do público chegava durante a primeira hora do serviço, muitas vezes durante a performance de uma cantata. O objetivo de muitos era chegar no início do sermão e sair no final deste, pois este era considerado a parte mais importante de todo o serviço. Segundo Tanya Kevorkian, mesmo Bach chegava muitas vezes atrasado, ainda durante a primeira parte (Kevorkian, 2006, p. 177). Esta parte do serviço cumpria várias funções sociais. Muitas vezes o atraso de membros da elite estava ligado à sua entrada durante o serviço, chamando a atenção para si.

O comportamento do público era variado e surpreendente. Muitas vezes as pessoas ficavam se observando e trocavam cumprimentos com vizinhos e conhecidos que haviam acabado de chegar. Muitas igrejas enfrentavam problemas com relação aos fiéis. Muitos não obedeciam aos sinais de levantar e sentar, e muitos não erguiam as mãos e nem oravam no momento adequado. Estudantes da universidade costumavam cortejar mulheres visitando seus assentos. Muitos jogavam objetos na direção das moças na intenção de chamar as suas atenções, outros jovens faziam barulho no fundo da igreja.

Igreja de São Nicholas
Igreja de São Nicholas

Aqui é importante trazer um parênteses sublinhando o comportamento dos estudantes universitários de Leipzig. A música tomava grande parte do tempo dos estudantes fora das salas de aula. Eles estavam entre os mais talentosos e virtuosos músicos da cidade e eram os principais músicos de orquestra da cidade, trabalhando tanto na casa de ópera quanto nos serviços religiosos de Leipzig, executando muitas das cantatas de Bach. Suas reputações, no entanto, não eram das melhores. Muitas vezes eram associados à distúrbios públicos e confusões com senhorios. Muitos publicavam “literatura escandalosa” e tocavam “música decadente” nas ruas. Era, no entanto, nessas figuras polêmicas que a cidade tinha que depositar sua confiança. Muitos desses músicos estudantes eram, inclusive, auxiliares do Kantor da igreja (Kevorkian, 2004, p. 71).

Muitas coisas podiam, no entanto, também tirar os fiéis da atenção adequada da música e dos textos religiosos. O apelo visual era um deles. A decoração das Igrejas, as vestimentas coloridas, os objetos religiosos reluzentes costumavam tirar a atenção de muitos fiéis. Até a ornamentação do órgão era um motivo para a distração.

A questão do barulho no interior das igrejas, no entanto, nos chama mais a atenção. Como a Cantata era apresentada antes e depois do sermão, muitas pessoas estavam entrando e saindo e conversas paralelas ocorriam. Como aponta Kevorkian, a potência vocal e instrumental da música sacra do período era relativamente pequena. Certamente o barulho de fundo tirava muito da atenção e da capacidade de apreciação da música executada. Para muitas pessoas localizadas longe dos cantores e instrumentos, a música era praticamente inaudível (Kevorkian, 2006, p. 181). Deve-se deixar claro, no entanto, que obviamente, haviam aqueles cuja atenção para o serviço religioso e a música representavam o objetivo final de suas idas à igreja.

Surpreendentemente, a receptividade das Cantatas de Bach pode nos ensinar muito acerca das práticas musicais do período. Ligada a fatores alheios à própria música, a apreciação da música sacra no período dependia de inúmeros fatores externos. É na sala de concerto do século XIX, e não antes disso, que as obras sacras de Bach encontrarão o público atento e devoto da arte musical.

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Referências

BARON C. “Transitions, transformations, reversals: Rethinking Bach’s world, em Bach’s changing worlds: voices in community”, ed. Baron, C. (Sufolk: University of Rochester Press, 2006)

CLEVE, J. “Family Venues and Dysfunctional families: home life in the Moral Weeklies and Commedies of Bach’s Leipzig”, em Bach’s changing worlds: voices in community”, ed. Baron, C. (Sufolk: University of Rochester Press, 2006)

GOEHR, L. The immaginary museum of musical Works. An essay in the philosophy of music. New York: Oxford university press, 2007

KEVORKIAN T. “Changing times, changing music: ‘New Church music and musicians in Leipzig 1699-1750” em The Musician as Entrepreneur, 1700-1914: Managers, Charlatans, and Idealists. Ed, Weber, W. (Bloomington: Indiana University Press, 2004)

KEVORKIAN, T. “The reception of the cantata during Leipzig church services 100-1750”, em Bach’s changing worlds: voices in community”, ed. Baron, C. (Sufolk: University of Rochester Press, 2006)

RUEB, F. 48 variações sobre Bach. São Paulo: Companhia das Letras, 2001

330 anos do gênio de Johann Sebastian Bach

330 anos do gênio de Johann Sebastian Bach
A assinatura de Bach

Publicado no Sul21 em 28 de março de 2015

Talvez, para nosso tempo, seja difícil entender o homem que foi Johann Sebastian Bach. Ele nasceu há 330 anos, em 21 de março de 1685 (*), no que hoje é a Alemanha, numa família de músicos. Era um tempo em que era comum os filhos adotarem a profissão dos pais. Na região da Saxônia, o nome Bach era de tal forma relacionado à música que alguém com tal sobrenome só poderia ser músico e provavelmente trabalhava em alguma igreja. Seguindo a árvore genealógica da família Bach, dos 33 Bach homens, 27 foram músicos. Só que o talento explodiu espetacularmente no menino Johann Sebastian. É claro que ele, além de exercer outras funções, também trabalhou como Kapellmeister — termo que designa o diretor musical de uma igreja.

Durante um longo período de sua vida, escreveu uma Cantata por semana. Em média, cada uma tem 20 minutos de música. Tal cota, estabelecida por contrato, tornava impossível qualquer “bloqueio criativo”. Pensem que ele tinha que escrever a música e ainda ensaiar. Isso fez com que ele nos deixasse uma imensa obra vocal. Também escreveu muito para um instrumento fora de moda, o órgão. E, se em Weimar as obrigações de Bach estavam prioritariamente vinculadas ao serviço religioso e como organista na corte cristã, na corte calvinista de Köthen, Bach pode dedicar-se à música secular, criando um dos mais imponentes e impressionantes conjuntos de obras solo para teclado, violoncelo, flauta e violino da história da música ocidental. Deixou-nos mais de 1000 obras de todos os gêneros, à exceção da ópera.

Obs. sobre o vídeo acima: na época, era proibido que as mulheres cantassem em igrejas.

Como dissemos, ele era um homem de outra época. Bach, por exemplo, não se preocupava em construir uma obra. Aliás, em seu tempo não existia a noção de “obra” de compositores. A música era consumida e esquecida. Como seus contemporâneos, Bach compunha sem a preocupação de colecionar-se, tanto assim que uma parte de sua produção foi perdida. O que se sabe de forma consistente a respeito de Bach é uma série de curiosidades: suas brigas com os empregadores, sua prisão, seus muitos alunos, os dois casamentos, os 20 filhos, a produção própria de cerveja e algumas poucas anotações pessoais.

Uma única anotação é muito célebre e pessoal. Johann Sebastian havia feito uma longa viagem de trabalho e ficara dois meses fora. Ao retornar, soube que sua mulher Maria Barbara e dois de seus filhos haviam falecido. Dias depois, profundamente triste, Bach, em seu luto, escreveu no alto de uma partitura um pedido: Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim. Se a criatividade fazia parte da “alegria” que tinha receio de perder, isso nunca aconteceu.

Emil Cioran escreveu que A música de Bach é o único argumento que prova que a criação do universo não pode ser vista como um grande erro e que Sem Bach, Deus seria apenas um mero coadjuvante. Os ateus gostam de contestar a religiosidade de Bach tendo por base as muitíssimo pragmáticas trocas de documentos entre Bach e os religiosos, mas nada sustenta tal tese. Talvez o que os perturbe sejam as constantes afirmações de melômanos ateus de que, durante a execução de algumas obras sacras de Bach, principalmente a Missa em Si menor, dizem acreditar em Deus por duas horas.

Pois Bach tem disso: pode-se passar horas analisando uma passagem simples, a duas vozes, procurando entender a razão pela qual o compositor obteve aquela sonoridade fantástica. É incompreensível e passamos a pensar que Cioran não exagerou. Simplesmente não se entende porque algo tão simples é tão profundo. Parecem notas normais, que qualquer um poderia ter escrito, mas elas não soam assim. Porém, muitas vezes é algo complicadíssimo, mas também funciona da mesmo forma. Com Mahler, sabe-se que algo vai soar grande, enxerga-se tudo, mesmo na passagem mais complexa. Enquanto que em Bach… O primeiro compasso da Paixão Segundo São Mateus já é capaz de arrebatar. Ali já se encontra toda a profundidade que esta obra vai carregar durante três horas. Ouve-se o baixo, e pronto, lá está uma inversão da melodia principal. Ouve-se a linha do coral, e também é uma consequência desta. Toda a obra é erguida sobre pilares limpos, claros, simples. E, no entanto, ninguém conseguiu ombrear-se a tal domínio artístico.

Em vez de adjetivar exageradamente uma série de obras bachianas, vamos tomar por base o texto 10 (petites) choses que vous ne savez (peut-être) pas sur Jean-Sébastien Bach para caracterizar fatos da vida do compositor. Ampliamos em muito a matéria original, retiramos e acrescentamos outros itens.

 16 (pequenas) coisas que (talvez) você não saiba sobre Bach

1. A prisão

Johann Sebastian Bach esteve quase um mês na prisão — entre 6 de novembro a 2 de dezembro de 1717 — durante seu período em Weimar. O crime era o de traição a seu patrão. Fora-lhe recusado o cargo de Kapellmeister na cidade, e ele solicitou permissão para partir e tentar a sorte em outro lugar. Queria o posto de maestro em Köthen. Bach insistiu e insistiu para ser demitido. Acabou preso. De acordo com o relatório do tribunal, o motivo da prisão foi o de “forçar a sua demissão”. Era, decididamente, outra época.

2. A infeliz operação de catarata

O grande doutor John Taylor (1703-1772) operou duas vezes a catarata de Bach em 1750. Fez o mesmo com Handel em 1753. Fracassou com ambos. Pior, matou Bach, enfraquecido após as cirurgias, e deixou Handel inteiramente cego.

3. O medo na concorrência

Durante uma viagem a Dresden em 1717, houve uma brincadeira entre aristocratas. Foi organizada uma competição para decidir quem tinha mais habilidades para a improvisação: se Johann Sebastian Bach ou Louis Marchand, famoso cravista e organista francês. Na véspera da grande “luta”, ao entrar num salão, Marchand deu de cara com Bach ensaiando. Foi o suficiente. Marchand deixou um recado onde alegava uma doença súbita e fugiu de madrugada.

4. O trabalho não era fácil

Ser Kappellmeister não era simples. Regente do coro da igreja, da orquestra, compositor, ensaios e mais ensaios, além de professor de música e catecismo. Em relatório de 1706, quando tinha 21 anos, Bach dizia mais: que as crianças “já não temem seus professores, elas até mesmo lutam em suas presenças, carregam espadas e pedras não somente pela rua, mas também na sala de aula.”

5. Bach teve 20 filhos

Aos 22 anos de idade, casou-se com uma prima, Maria Barbara Bach. Deste casamento, ele teve 7 filhos, dos quais sobreviveram quatro:  Catharina Dorotheia, Johann Gottfried Bernhard e os compositores Wilhelm Friedmann e Carl Philipp Emanuel. Maria Barbara morreu em maio de 1720. Depois de algum tempo, ele conheceu a soprano Ana Magdalena Wilcken e casou-se pela segunda vez em 1721. Teve 13 filhos com ela, dos quais 7 faleceram ainda bebês. Sua casa, ainda acrescida de diversos alunos residentes, era lotada. Como ele arranjava tempo para compor?

6. O desamor de Leipzig

Se Bach é apelidado hoje de O Kantor de Leipzig, não podemos dizer que a cidade lhe desse uma contrapartida afetuosa. Seus chefes eram rápidos para lembrá-lo de sua “incompetência”. Em 1727, um assessor escreveu que Bach não compusera nada durante todo o ano. Hoje, sabemos que ele, como sempre, trabalhou louca e produtivamente naquele ano. Em 1730, ele foi repreendido e advertido pelo mesmo motivo. Quando de sua morte, um jornal da cidade publicou uma notinha onde dizia que “um homem de 67 anos (ele tinha 65), o Sr. Johann Sebastian Bach, maestro e Kantor na Escola St. Thomas”, morrera. Nada mais.

Um dos poucos retratos de Johann Sebastian bach
Um dos poucos retratos de Johann Sebastian Bach

7. Ausente das aulas

O maestro John Eliot Gardiner enfatiza a violência do ambiente em que o compositor passou a infância. Eram comuns as rivalidades entre gangues, as brigas entre estudantes e as maldades sádicas. O menino Johann Sebastian esteve ausente por 258 dias em seus três primeiros anos de escola. O motivo mais comum para tais ausências era a violência. Isso em um sistema escolar que ensinava preceitos religiosos por 70% do tempo.

8. O amor pelo café

O gosto de Johann Sebastian Bach pelo café vem de sua participação na instituição de Gottlieb Zimmermann, o Café Zimmermann, onde o compositor apresentava-se regularmente durante a década de 1730. O café era uma novidade recente e sucesso absoluto naquele início de século XVIII. Na época, era encarado como uma moda passageira e um luxo. O compositor dedicou uma Cantata profana ao produto (o BWV 211, a Cantata do Café) que conta a história de uma moça casadoura que diz preferir a bebida a mais de mil beijos e afirma que só aceitará casar com um marido que lhe dê café. No inventário de Bach, há menção a coisas raras como dois potes de café (um grande e um pequeno) e um açucareiro.

https://youtu.be/YC5KpmK6oOs

9. Ele bebia. E como

Se o conselho da cidade de Leipzig tratava-o com dureza, deve-se notar que Bach gozou de relativa liberdade na cidade luterana. Ele produzia sua própria cerveja e pagava mais imposto sobre a produção desta do que gastava com habitação. As notas examinadas por seus biógrafos indicam que a família Bach consumia toneladas de cerveja. Um relatório de gastos com impostos do compositor em 1725 (tinha 40 anos) dá conta de um consumo espetacular, mesmo considerando a enorme família e alunos.

10. Escreveu música para curar a insônia

Uma de suas obras mais importantes, as Variações Goldberg, foi composta para um ex-embaixador russo na corte eleitoral da Saxônia, o conde Hermann Karl von Keyserling. O conde passava noites e noites sem dormir. Quando o desespero batia mais forte, ele chamava um de seus empregados, o jovem cravista Johann Gottlieb Goldberg, para lhe dar um recital particular. Certa vez, o conde mencionou, na presença de Bach, que gostaria de ter algumas obras de caráter suave para Goldberg executar. Elas deveriam ou consolá-lo em suas noites sem dormir ou encaminhá-lo para a cama. Bach imaginou que a melhor maneira de atender a esse desejo seria por meio de variações. Assim nasceram as Goldberg.

11. Tudo sobrava, sobretudo talento

A perfeição daquilo que criava — e que era rápida e desatentamente fruída pelos habitantes das cidades onde viveu — era pura necessidade individual de fazer as coisas bem feitas. Como era pouco compreendido, brincava sozinho criando dificuldades adicionais em seus trabalhos. Muitas vezes o número de compassos de uma Cantata corresponde ao capítulo e versículo da Bíblia daquilo que está sendo cantado. Em seus temas aparecem palavras — pois a notação alemã é feita através de letras — e suas fugas envolvem complexidades que só podiam ser apreendidas por especialistas. O próprio nome B-A-C-H (Si Bemol, Lá, Dó, Si) é utilizado muitas vezes, sempre com significado. Então Bach era não apenas um fantástico melodista capaz amolecer as pernas do ouvinte, como um sólido teórico capaz de brincar com seu conhecimento. Em poucas palavras, pode-se dizer que ele sobrava… Sua obra, mesmo com a perda de mais de 100 Cantatas e de outras obras por seu filho mais velho, o preferido de Bach, Wilhelm Friedemann, corresponde a 153 CDs da mais perfeita música. Grosso modo, 153 CDs são 153 horas ou mais de 6 dias ininterruptos de música.

12. O entendido em acústica

Bach era constantemente chamado a outras cidades para analisar a qualidade de órgãos e dar conselhos sobre a acústica de igrejas e salas. Arranjou alguns inimigos em suas viagens ao considerar alguns locais verdadeiras tragédias sem solução. Mas também tinha a fama de fazer acertos milagrosos.

13. A gênese de A Oferenda Musical

Frederico II da Prússia (Frederico, o Grande) quis conhecer Bach e convidou-o para um sarau em seu palácio. Durante a reunião, Bach foi desafiado a improvisar sobre um tema escrito por Frederico — mas que provavelmente era de autoria de um dos muitos compositores da corte. O tema era dificílimo, um evidente desafio, porém Bach improvisou uma fuga a três vozes sobre o mesmo. Diante da admiração dos ouvintes, Frederico, um notório sádico, propôs uma fuga a seis vozes. Agastado, Bach respondeu-lhe que era impossível fazê-lo assim de improviso. Ficou furioso com a derrota, porém, duas semanas depois, enviou a Frederico uma partitura com a fuga a três vozes, outra a seis, acompanhadas de diversos cânones e de uma sonata-trio, totalizando treze movimentos cuja ordem correta, se há, é até hoje um desafio para os musicólogos. Ou seja, enviou-lhe a chamada A Oferenda Musical (Das Musikalische Opfer), uma das mais importantes composições de todos os tempos. Frederico não deu a menor importância, o jogo já tinha sido jogado. E não mandou nenhuma nota de agradecimento ao “Velho Bach”.

https://youtu.be/Uyu-btfnOhc

14. Os Concertos de Brandemburgo quase viraram papel de embrulho

Na verdade não precisariam das outras quase 1100 composições para colocar Bach como um dos maiores compositores de todos os tempos. Bastariam os Concertos de Brandenburgo. São seis esplêndidos concertos para diversos instrumentos que… Bem, conta a lenda que suas partituras estavam sendo guardadas para serem utilizadas em uma casa comercial como papel de embrulho. Esta história é tão inacreditável que nos damos o direito de duvidar dela…

15. O cinema gosta muito

Bach flutua em ondas na modas cinematográficas. Já houve o tempo em que se ouvia a Tocata e Fuga em Ré Menor, ou a Chaconne para violino solo ou a ária Erbarme dich em vários filmes. No ano passado, Lars von Trier fez uma enorme homenagem ao BVW 639 Ich ruf zu dir, Herr Jesu Christ em Ninfomaníaca — a música é explicada em detalhes pelo personegam Seligman. Pawlikowski fez o mesmo em Ida, vencedor do Oscar de 2015 de melhor filme estrangeiro. Andreï Tarkovski já tinha feito o mesmo no clássico Solaris.

16. Bach está no seu celular… E nos aviões

Ele estava tão a frente do seu tempo que grande parte dos toques dos celulares foram compostos por ele…

Bem, e quando dois músicos resolvem brincar em um voo, qual é o ponto em comum que eles encontram?

Tinha um celista no meu voo. Francisco Vila, um violoncelista, e Maximilian, um comissário de bordo beatboxer, brincam com a Bourrée do Prelúdio Nº 3 para Violoncelo Solo de Bach.

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(*) Afinal, Bach nasceu em 21 ou 31 de março de 1685? Vamos falar de 1582? Naquele ano, o calendário gregoriano foi introduzido em alguns lugares da Europa, não em todos. A Itália, a Espanha, Portugal e a Polônia, os mais católicos, aceitaram a mudança ditada pela igreja, o resto não. Só depois é que todos os outros países aderiram. O 21 de março de 1685 da Alemanha não era o mesmo 21 de março de 1685 na Itália, Espanha etc. Havia 10 dias de diferença. O dia em que Bach nasceu foi “chamado” de 21 de março na Alemanha, onde eles ainda estavam usando o calendário juliano. É o que vale! Mas Bach nasceu num 31 de março, considerando o calendário que todos usam hoje, o gregoriano. Da mesma forma, é muitas vezes dito que Shakespeare e Cervantes morreram exatamente no mesmo dia, 23 de abril de 1616. Não é verdade. As mortes foram separadas por 10 dias. A de Shakespeare ocorreu em 23 de abril de 1616 (juliano) e equivalente a 3 de maio de 1616 (gregoriano). O que é certo é que podemos comemorar dois aniversários de nosso maior ídolo. E sempre com a cerveja que Bach tanto gostava e produzia em quantidades industriais em sua própria casa.

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Se Bach soubesse…

Se Bach soubesse que o órgão — instrumento do qual gosto com restrições — ficaria tão fora de moda, talvez não tivesse dado tanta atenção a ele. A sonoridade do órgão parece ser a ideal para acompanhar vozes e coros e suas possibilidades harmônicas torna-o capaz de substituir uma orquestra. Como, apesar de grande, ocupa menos espaço do que uma orquestra e também por não ser nada portátil, é o instrumento sacro por excelência. Porém nossa época o vê como um instrumento chato nas duas acepções da palavra.

Um amigo músico me disse que algumas obras para o instrumento parecem um longo orgasmo, analogia que não podemos avaliar se refere-se a algo bom ou não, infelizmente. OK, ele não disse orgasmo, disse clímax. Mas voltemos a nosso assunto. Então, as incríveis — verdadeiramente estupendas — possibilidade timbrísticas do instrumento ficam prejudicadas por aquelas peças de som contúnuo, flat, sem grandes variações de volume sonoro, chatas nos dois sentidos. Pude observar que isto incomoda, e muito, os ouvintes atuais que, desculpem, são quase todos ateus como este que vos escreve e não veem naquilo uma representação do poder divino.

Eu também me incomodo um pouco, mas com meu amor à catalogação e a conhecer tudo, estou ouvindo um por um os CDs da caixa Bach 2000. São 153 CDs coma obra completa do mestre e, se a maioria está no gênero Cantatas e Paixões, sua música para órgão está em segundo lugar. Os volumes 7 e 8 (23 CDs) é feito só de música para órgão. É um discreto porre, cheio de experimentações e novidades. O Bach mais ousado é o do órgão, sem dúvida. Todos os gêneros que ele explorou em outras áreas está ali realizado ou em projeto.

Hoje, é uma música quase secreta e ontem, enquanto corria calmamente meus 7 quilômetros ao anoitecer, sentia quão boa aquela música era para competir com o barulho dos carros da rua. E que qualidade tinha!

Bach não tinha a nossa noção de obra e, portanto, não era nada preocupado em preservar o produto de sua aparentemente ignorada — dele e de seus contemporâneos — genialidade. Se escrevesse para o futuro como Beethoven e os que vieram logo depois, talvez não tivesse ficado tanto tempo sentado na frente do órgão das diversas igrejas onde foi kantor (Diretor Musical).