Cervantes, Nietzsche, Suassuna, García Márquez, Clarice, Pessoa e outros, ao comerem miojo

Cervantes, Nietzsche, Suassuna, García Márquez, Clarice, Pessoa e outros, ao comerem miojo

Autor desconhecido. Foi muito alterado e acrescentado por mim e amigos — o texto mais que dobrou.

– Você é Nietzsche?
– Sou sim.
– Então fala: “comi um miojo”
– Deveras obscura a ideia de que uma ração precária e arbitrariamente nomeada alimento, possa, de fato, nutrir ao ponto de esquecermos de que toda a vontade de potência manifesta na determinante ideia diante da tragédia do eu, cuja única escolha possível é o aniquilamento total de toda divindade contida na ignorância e na natureza da matéria dormente e vagante a que chamam: homem. Era sim um prato de massa delicadamente disforme que sentia adentrar minhas entranhas, embebida em um suco pobre e tépido, salino! humano demasiado humano e arbitrário afirmar que de fato é um miojo.

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– Você é Suassuna?
– Sou sim
– Então fala “comi um miojo”
– Já cansado dessa agonia de passa fome, come gororoba, passa fome, come gororoba, achei por bem de engolir essa papa e torcer pra não chegar tão cedo a hora de descomer!

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– Você é Cervantes?
– Sou sim.
– Então fala: “comi um miojo”.
– Calhou de aquele dia ser sexta-feira, e não havia em toda a estalagem nada além de umas rações de uma massa que em Castela chamam miojo, e na Andaluzia macarrão instantâneo, e noutras partes lámen, e noutras ainda noodles. Perguntaram-lhe se porventura comeria ele noodles, pois não havia outra massa que dar-lhe de comer.

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– Você é Gabriel García Márquez?
– Sou sim.
-Então fala: “comi um miojo”.
– Minhas únicas viagens foram quatro aos Jogos Florais de Cartagena de índias, antes dos meus trinta anos, e uma noite ruim na lancha a motor, convidado por Sacramento Montiel para a inauguração de um de seus bordéis em Santa Marta. Quanto à minha vida doméstica, sou de comer pouco e de gostos fáceis. Quando Damiana ficou velha não se tornou a cozinhar em casa, e minha única refeição regular desde então foi um macarrão de rápido cozimento, embebido em um caldo salgado que me confundia o paladar, depois do fechamento do jornal.

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– Você é Tolkien?
– Sim
– Então fala: “comi um miojo”
– Adentrei a cozinha naquela tarde ensolarada. Os raios atravessavam as janelas fazendo traços paralelos que tocavam a parede cimentada e pintada de azul. Um azul profundo como de um céu a tarde a beira do crepúsculo em Valfenda. O teto contrastava com o azul, a madeira me lembrava as florestas de carvalho. O assoalho era de madeira de lei, rangia enquanto eu caminhava para pegar minha tigela favorita. Quando a água começou a borbulhar na panela, introduzi o macarrão em meio a fervura. O fogo crepitava sob a panela de ferro, era uma leve brisa que invadia pelo corredor longo. Coloquei os temperos e senti subir o aroma. Despejei na tigela a sopa e sorvi ainda quente. Era como o fogo de Aldruin, com o sabor dos banquetes em Minas Tirith.

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– Você é Augusto dos Anjos?
– Sou sim.
– Então fala “Comi um miojo”.
– Senti como que preso a um ferrolho
Incapaz de saciar minha própria fome
Prostrado diante da massa disforme
Coberta de um ígneo e mal cheiroso molho

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– Você é Bukowski?
– Sou sim
– Então fala “comi um miojo”.
– Tomei um último gole de vinho do porto. Olhei pro pacote em cima da mesa. Abri. Joguei a massa seca e fedorenta na água fervente. Não era nada saboroso mas ia garantir uma boa cagada. É necessário ter algo pra se cagar além de cerveja e vinho barato.

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– Você é Drummond?
– Sou sim
– Então fala “comi um miojo”.
– No meio da fome tinha um miojo,
Tinha um miojo no meio da fome
Fome vasta que dá nojo
Se eu comesse um miojo
Seria uma rima, não uma solução.
Fome vasta, mais vasto é meu coração.

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– Você é Clarice Lispector?
– Sim.
– Então fala: “Comi um miojo”.
– Se ela ao menos soubesse onde está o macarrão desidratado nessa casa desidratada, pouparia o mundo do constrangimento de se deixar flagrar agora no centro ordinário da cozinha que sequer treme, e não responde ao sussurro “Onde está o miojo?”. Pare de buscar. Um meio de obter é não procurar, um meio de ter é o de não pedir e somente acreditar que o silêncio que eu creio em mim é resposta a meu – a meu mistério”. “Se tivesse a tolice de se perguntar ”quem sou eu?” ao invés de “onde pus o miojo?”, cairia estatelada e em cheio no chão, com o pacote do lámen sabor blattodea na mão . Sabor barata. Comeria já frio o miojo que não comi.

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– Você é Fernando Pessoa?
– Sim e não. Sou outros.
– Então fala: “comi um miojo”.
– Falo a três vozes. A quatro. A mil.
(Ricardo Reis) Enquanto a biblioteca de Alexandria arde em chamas, como esse miojo e é tudo. Sábio é o que assiste ao espetáculo do mundo.

(Alberto Caeiro) A flor é a flor, o tempo é só flor. Pensar é mastigar. O mais é flor, chuva, miojo.

(Álvaro de Campos) Eia, engrenagens que moem, trituram a moderna nutrição dos argonautas do amanhã! Eia, uhaaa, r-r-r-r-r-r de meus dentes apolíneos contra o trigo do gêmeo cop-noodles que fermenta o filho odisseico e já regurgito o novo homem-lámen das auroras sanguinárias.

(Fernando Pessoa) O miojo de vossa mesa não é mais belo e triste que o miojo de minha aldeia.

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– Você é Homero?
– Sim.
– Então fala: “comi um miojo”.
– Canto a brava sofreguidão de Aquiles, que tomando da inexorável colher de bronze investia contra a massa semelhante aos cabelos de Medusa, que fervilhava fumegante sobre as bem construídas mesas. Briseida, tá sem sal! bradou o filho de Peleu. Eu avisei! retrucou Cassandra do alto das inexpugnáveis muralhas.

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– Você é Leonardo Padura?
– Sim.
– Então fala: “comi um miojo”.
– Ele sabia que a velha Josefina não o perdoaria pelas folhas de taioba não entregues. Precisava falar com o magro Carlos e pedir que intercedesse a seu favor com a velha. Mas a cabeça ainda latejava devido as duas garrafas de rum vagabundo que conseguira comprar com o que lhe restou da venda do último livro, uma espécie de guia de como remover pulgas de cães. Acordou com o focinho gelado de Lixeira II no seu braço testando se ainda havia ali, naquele moribundo, um resquício de alma ou se teria de voltar a cavocar o pote com massa que havia lhe servido na noite anterior.

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– Você é Guimarães Rosa?
– Sim.
– Então fala: “comi um miojo”.
– Nonada, minha barriga estava desinquieta. Como diz meu compadre Quelemém, lá das bandas do Andrequicé, se ouvir uns roncos das entranhas homem, Deus esteja. Varei o pacotinho das minhoquinha a vir a ser um caldo cramunhado e salgado com as lágrimas do visitado pelo sem nome. Meti-lhe goela adentro. Travessia.

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– Você é Anaïs Nin?
– Sim.
– Então fala: “comi um miojo”.
– A massa contra o prato produz asco, mas o contato com a língua apenas engendra repulsa e resignação.

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– Você é Monterroso?
– Sim.
– Então fala: “comi um miojo”.
– Quando viu, o miojo ainda estava lá.

Um porque hoje é sábado anômalo, mas especialíssimo

Um porque hoje é sábado anômalo, mas especialíssimo

Erico Veríssimo dizia que Lygia Fagundes Telles não devia ter tanto talento para a literatura. Era bonita demais para isso. Ela ria, envaidecida.

Convencionou-se dizer que Clarice Lispector era uma bela mulher. Belo telefone, não?

Belíssima era Cecília Meirelles, dona daquele sorriso que tudo parece compreender. Foi tradutora de …

Virginia Woolf *, que tinha perfil de camafeu, extraordinários livros e sofria enormemente com sua loucura.

Suicida como Virginia, tivemos a bonita brasileira Ana Cristina César. Apesar de sua boa poesia, ela ficaria aos pés de…

ana cristina cesar

Anna Akhmátova *, cujo grande sofrimento era de causas exteriores. Que poetisa maravilhosa ela era! Dá vontade de aprender russo como quis uma vez …

Simone de Beauvoir, aqui em linda e arejada foto, demonstrando que tinha a frente, o conteúdo e o verso interessantes.

Tão de esquerda quanto Simone foi a ex-stalinista Doris Lessing, que se tornou a mais irritante das direitistas.

doris lessing

Sempre foi de direita a talentosa belga Marguerite Yourcenar, apesar do costume de fantasiar-se como agente da KGB.

Yourcenar

A outra Marguerite, a Duras, gostava de cinema, de amantes orientais e sua obra permanecerá mais do que a das três anteriores.

marguerite duras

Conversas mais íntimas tinha Anaïs Nin, que escrevia diários e corria atrás de um homem sensível.

AnaisNin

Nome de francesa tinha a severamente inglesa Daphne du Maurier, autora de livros que assustaram minha adolescência, como Rebecca.

daphne_du_maurier_

Também gostava de assustar a imensa, perfeita e maravilhosa dinamarquesa Karen Blixen *, que publicou suas obras-primas com o nome masculino de Isak Dinesen e que …

karen blixen

… traduzia seus livros para o inglês. Quando envelheceu, ficou “meio anoréxica”, mas mantinha as boas companhias — minha nossa!

blixen marilyn monroe Carson McCullers

Conversando com Karen, à direita, está a caçadora solitária Carson McCullers, …

carson-mccullers

… tão menos famosa do que Jane Austen *, cujos seis romances são cantados em prosa e verso pelos críticos e é adorada pelo cinema.

Jane-Austen

Em comum com Karen na utilização de nome um nome masculino, com Austen no espetacular talento, temos a insuperável George Eliot * (Mary Ann Evans).

George_Eliot_by_Samuel_Laurence

A também inglesa Muriel Spark faz livros menos intelectuais quanto os de Eliot, mas é sempre fascinante e grudenta. Escreveu pelo menos duas obras-primas modernas.

Muriel-Spark

Tem nome comprido e estranho a grande e bela poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, descoberta por mim logo após sua morte.

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Com algumas exceções, são todas mulheres bonitas — às outras sobraria a beleza interior… — e as que receberam asterisco logo após seu nome são as minhas Top 5 da literatura feminina mundial.

Obs.: Mais literatura feminina aqui.

Paris: Shakespeare and Company ou Morre George Whitman

Foto: Milton Ribeiro

Publicado com os devidos cortes — feitos por mim mesmo — no Sul21 na última segunda-feira. Copio aqui só para acrescentar algumas fotos mesmo.

Num fim de semana onde os obituários estiveram cheios de celebridades — Christopher Hitchens, Cesária Évora, Sérgio Britto, o Santos, Joãosinho Trinta, Václav Havel, Kim Jong-il — a morte de George Whitman passou quase em branco. Whitman, dono da mítica livraria Shakespeare & Company, localizada na margem esquerda do Sena, em Paris, morreu aos 98 anos em seu apartamento. Ele sofrera um derrame em outubro, mas recusou-se a ficar no hospital, exigindo ser levado para casa, que fica no andar de cima da livraria.

Fazer uma referência a uma livraria de Paris que só vende romances e ensaios literários em inglês pode parecer produto do mais puro elitismo, mas não pensamos ser o caso.

A livraria foi aberta em 1951 e — além de ser um extraordinário sebo e livraria — serve de abrigo a escritores em início de carreira para que tenham teto e/ou trabalho até que terminem seus livros. Lá também ocorrem chás literários e encontros com autores, quaisquer autores.

Whitman nasceu nos Estados Unidos em 1913, Viveu parte da infância na China. Mudou-se para Paris em 1948. Segundo ele, na época, uma bicicleta e um gato eram suas únicas posses. Em 1951, abriu a livraria Le Mistral, rebatizando-a como Shakespeare & Company em 1964, em homenagem a Sylvia Beach, proprietária da Shakespeare & Company original, responsável, por exemplo, pela primeira edição de Ulisses, de James Joyce. Quando falecera, em 1962, Sylvia Beach deixara para Whitman os direitos de uso do nome e livros.

James_Joyce com Sylvia Beach na Shakespeare & Co original (Paris, 1920)
Uma das estantes da livraria que fazem referência a Sylvia Beach | Foto: Milton Ribeiro

Imediatamente famosa no meio literário, a loja virou ponto de encontro de escritores como Arthur Miller, James Baldwin, Samuel Beckett, Anaïs Nin, Lawrence Durrel, William Burroughs, Gregory Corso, Jack Kerouac, Allen Ginsberg e rota turística para os apaixonados pela literatura. No andar de cima da livraria vivia não apenas Whitman e família, mas diversos candidatos a escritores. Reza a lenda que, desde 1964, lá dormiram mais de 40 mil pessoas diferentes entre os livros. O pagamento pela hospedagem era escrever, ler e varrer a livraria. Alguns também atendiam no balcão e na cozinha. Outra lenda diz que Whitman aconselhava a saída de autores que estavam lá há mais de ano…

Whitman viva de acordo com o lema retirado de um poema de W. B. Yeats e que está pintado numa das paredes internas –“Não seja inóspito para estranhos pois eles são anjos disfarçados.”” (tradução de Débora Birck). Durante o final de semana, velas, flores e romances foram depositados na porta da Shakespeare, fechada pelo luto. Bilhetes de homenagens foram colados com agradecimentos e elogios.

Hoje, há prateleiras em torno da citação | Foto: Blog Hipsters & Company

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A Shakespeare and Company é o sonho do bibliófilo. Os livros — normalmente revelantes ou raros — podem ser vistos em toda parte: nas paredes, no meio da loja, nas escadas, em todo canto, sobrando pouco espaço para a circulação. Para completar, no espaço atulhado ainda há alguns locais com cadeiras e bancos para leitura. Também há um piano, sobre o qual pode ser lido um cartaz sugerindo que se toque apenas música erudita ou jazz. Os outros cartazes pedem para que os leitores nunca, jamais sejam perturbados, fato que faz com que o som da livraria seja um complicado contraponto de passos e sussurros. Na escada para o andar de cima, só uma pessoa passa de cada vez. Na verdade, a mais famosa livraria do mundo é apenas um pequeno caos onde se vende livros bem escolhidos, onde há cadeiras confortáveis e onde há a promessa de solidariedade. Nada de mega-ultra-hiper. O teto não é pintado há anos e é difícil imaginar como poderia sê-lo sem a retirada dos volumes. A atmosfera é tão acolhedora que o visitante tem a fantasia de que o conhecimento que está nos livros, sob alguma forma misteriosa, entra-lhe pelos poros quando está na livraria.

A livraria, que já era administrada pela filha de George, Sylvia Beach Whitman, seguirá ativa.

O que há bem na frente da Shakespeare? Ora, a Catedral de Notre Dame, mas, para alguns, há dúvidas sobre quem é mais catedral. Abaixo, mais fotos da livraria de Whitman:

A entrada principal
A porta auxiliar da livraria
O grande homenageado | Foto: Milton Ribeiro
Uma das vitrines que dá para a Catedral de Notre Dame
O caos interno | Foto: Blog Hipsters & Company
Sylvia Beach Whitman e seu pai, George
Do lado direito, vê-se uma nesguinha de porta. É onde morava George Whitman no segundo andar da Shakespeare and Co.
Eu estou fotografando a epígrafe de Daniel Martin, do grande John Fowles
A epígrafe de Gramsci | Foto: Milton Ribeiro
O Dario diz que os livros têm o poder de me deixar quieto. Sei lá, eu SOU quieto!
A localização da Shakespeare em relação à capelinha medieval de Notre Dame
Comparar Notre Dame com a Shakespeare… Piada, né?
Sylvia, a filha. 30 anos. Bonita, não?