The Who, a lenda

The Who, a lenda

Antes do show do Who em Porto Alegre, a emoção era bem identificada e localizada. Os mais desatentos não sabiam bem quem eram aqueles dois senhores sobreviventes de um grupo original de quatro, mas já os que gostam e acompanham o movimento musical sabiam que iam ver verdadeiras lendas. The Who é um grupo realmente único. Pode soar como heavy metal e já foi classificado como tal, mas muitas vezes apresenta um espírito de punk rock com letras sensacionais, porém, você não estará errado se considerá-lo o grupo que faz o rock mais complexo que existe, tirando do jogo os progressivos.

Roger Daltrey e Pete Townshend. The Who em ação | Foto: Site do grupo

Sim, não é fácil classificá-lo. Afinal, The Who tem em seu acervo duas esplêndidas óperas-rock que viraram filmes — Tommy e Quadrophenia — , mas também tem notáveis discos de canções avulsas e o verdadeiro torpedo que é Who`s Next.

The Who surgiu em 1964 na Inglaterra. Sua formação clássica tem Pete Townshend (guitarrista e compositor praticamente único do grupo), Roger Daltrey (vocais), John Entwistle (baixo) e Keith Moon (bateria). O grupo alcançou rapidamente fama internacional em razão da qualidade de sua música e também por fatores extra-musicais. Suas apresentações eram pura energia, era o grupo que se apresentava com o volume de som mais alto de todos e ficou famosa por quebrar seus instrumentos ao final dos shows — especialmente Townshend, cuja destruição de guitarras tornou-se um clichê, e Keith Moon, que costumava mandar sua bateria pelo ares, aos pedaços. Seus primeiros álbuns eram cheios de canções curtas e agressivas, usando principalmente os temas da rebelião juvenil e da confusão sentimental.

The Who em 1964: Townshend, Moon, Daltrey e Entwistle

Para ser mais exato, a origem do Who foi um grupo de jazz do qual participavam Pete Townshend e John Entwistle quando adolescentes, chamado The Confederates. Townshend tocava banjo e Entwistle trompete, embora também estudasse baixo, imaginem. Já o vocalista Roger Daltrey conheceu Entwistle na rua enquanto este caminhava com seu baixo pendurado no ombro. Este convidou-o para um teste no grupo de jazz. Daltrey foi aceito e os três logo saíram do Confederates. Moon foi último a aparecer. Veio através de um anúncio no jornal. Daltrey descreve o teste do genial Moon para entrar na banda: “Foi como se tivessem ligado um motor atrás da gente”.

Em setembro de 1964, na Railway Tavern em Harrow and Wealdstone, Inglaterra, Pete Townshend destruiu sua primeira guitarra. Tocando num palco baixo demais, se mexendo e dançando muito, Pete bateu com o braço da guitarra no teto, o que resultou no descolamento deste do corpo do instrumento. Furioso com as risadas da plateia, Townshend arrebentou a guitarra em pedaços, pegou outra e continuou o concerto. Por conta disso, o público no show seguinte aumentou consideravelmente, mas ele se recusou a destruir outro instrumento. Então foi Keith Moon quem arrebentou sua bateria… A destruição de instrumentos se tornaria um destaque dos shows ao vivo do Who pelos anos seguintes, e o incidente na Railway Tavern acabaria entrando para a lista de “50 Momentos que Mudaram a História do Rock ‘n’ Roll”.

Calma, nada disso ocorreu no Beira-Rio nesta terça-feira (26/09/2017). Mas você viu o windmill (moinho de vento) de Townshend. O windmill é aquele clássico giro de braço que Pete Townshend usa pra tocar guitarra. A lenda diz que seria uma resposta a Jimi Hendrix. “Como ele tacava fogo na guitarra”, brincou o Pete uma vez numa entrevista à Rolling Stone, “eu fazia o moinho de vento pra apagar o fogo”. Só que, tempos depois, no programa de David Letterman, o mesmo Townshend contou que copiou o gesto do Keith Richards, já que o The Who, bem no início da carreira, abrira alguns shows pros Stones. Ele viu Keith fazendo isso no palco e, no dia seguinte, mandou um windmill na abertura. No fim do espetáculo perguntou a Keith se ele tinha gostado da homenagem, mas Keith não lembrava ter ter feito o gesto e comentou: “Aquela hora em que você pegou no pau, no fim da apresentação… Foi pra mim?”.

Todos os integrantes do The Who eram muito diferentes entre si. Sempre brigaram bastante e Pete afirma ainda hoje que jamais um grupo deve se separar enquanto está brigando. “É quando tem mais pegada”. Townshend era o compositor e inovador (embora Entwistle também contribuísse com canções). Pete também era uma central de novidades, enquanto Daltrey preferia ficar só com os rocks agressivos. Moon amava a surf music norte-americana e Entwistle a elegância do jazz. É estranho dizer isso hoje, mas, no começo, Daltrey era considerado o patinho feio do Who. Ele via que estava entre três virtuoses em seus instrumentos e sofria com a silenciosa desaprovação. Achava que seria chutado. Ontem, estava com Pete do Beira-Rio.

O primeiro sucesso retubante veio na estreia do LP My Generation. O álbum trazia canções que se tornariam hinos, como The kids are alright e a faixa-título com o famoso verso I hope I die before I get old (“Eu espero morrer antes de envelhecer”). Outros êxitos seguiram-se com os compactos simples Substitute, I’m a boyHappy Jack (1966), Pictures of Lily, I can see for miles (1967) e Magic bus (1968).

Apesar do grande sucesso alcançado com seus compactos simples, o Who, ou mais especificamente Townshend, queria mudar, achava o modelo esgotado. Ao mesmo tempo que o som da banda evoluía e suas músicas se tornavam mais provocativas e envolventes, Townshend passava a tratar os álbuns do Who como projetos unificados, ao invés de meras coleções de canções desconexas. O primeiro sinal desta ambição surgiu como LP A Quick One (1966), que trazia uma coleção de canções que, reunidas, contavam uma história. A Quick One, While He’s Away foi chamada de “mini-ópera”.

A seguir veio The Who Sell Out (1967), um álbum que pretendia simular a transmissão de uma estação de rádio pirata, incluindo jingles e propagandas.

Nessa época, os ensinamentos de Meher Baba — sim, a cultura dos anos 60 reverenciava os gurus orientais — passaram a exercer influência importante nas composições de Townshend, e essa conjunção de ideias acabaria desaguando em Tommy (1969), sua primeira ópera-rock completa e a primeira a alcançar sucesso comercial, imenso sucesso comercial. O indiano é creditado como “Messias” na contra-capa do álbum Tommy. No mesmo ano, o grupo esteve em Woodstock tocando basicamente Tommy. As canções Pinball Wizard, See me feel me, Go to the mirror e The Acid Queen, entre outras, tornaram-se clássicos.

Em fevereiro de 1970 o Who gravou Live at Leeds (1970), considerado por muitos o melhor álbum ao vivo de rock de todos os tempos, tocando basicamente Tommy… Na verdade, Live at Leeds foi lançado originalmente sem nenhuma canção de Tommy em um LP com apenas 6 músicas — sendo 3 covers, My Generation, Substitute e Magic Bus. Só na segunda edição em CD que todo o show pôde ser ouvido, com a execução da ópera Tommy no segundo disco.

Na época, todos os integrantes da banda — principalmente o autor, Townshend — estavam cheios de tocar Tommy e mais Tommy. O álbum tinha sido considerado o melhor da década de 60 junto com Sgt. Peppers e todos só queriam ouvir Tommy. Pete queria partir para outra e o Who preparou um grande disco sob a produção de Kit Lambert em Nova York.  Só que Lambert, então viciado em heroína, era de pouco auxílio e a banda retornou à Inglaterra para regravar o material com o produtor Glyn Johns. O resultado, Who’s Next (1971), acabaria por ser o trabalho mais aclamado do The Who entre os críticos e fãs.

É difícil destacar alguma coisa em Who’s Next, o álbum mais parece uma coletânea de melhores canções, apesar de não ser. Bastaria dizer que o disco começa com Baba O’Riley e Bargain e acaba com Behind Blue Eyes e Won’t Get Fooled Again, OK?

Após Who’s Next a banda voltaria ao estúdio em maio de 1972. Essas sessões dariam origem a mais uma ópera-rock de Townshend, Quadrophenia (1973), a história de dois dias na vida de um adolescente mod chamado Jimmy, sua luta contra todo gênero de inquietações, mas principalmente sua busca por um lugar na sociedade. Quadrophenia tem o mesmo nível de Who`s Next, é um notável trabalho, daqueles onde a cada audição são descobertos novos detalhes. O Who tocou Love, reign o’er me e Cut my hair nesta terça-feira.

Os álbuns seguintes do Who traziam canções mais pessoais de Townshend, dentro do estilo que ele eventualmente transferia para seus álbuns solo. The Who by Numbers, de 1975, traz diversas canções introspectivas e maravilhosas, como Blue, Red and Grey.

A qualidade do somatório de canções originais do Who são comparáveis ao acervo criado pelos Beatles e Rolling Stones. Se acrescentarmos o Led Zeppelin, com uma produção menor em número, temos aí o quarteto intocável do rock e talvez da música inglesa dos últimos 50 anos. Se o Who inventasse de tocar todas as clássicas do grupo, iam precisar de várias noites.

Em 1978 a banda lançou Who Are You, distanciando-se do estilo épico das óperas rock, enquanto se aproximava do som mais comum das rádios. O lançamento do álbum foi ofuscado pela morte de Keith Moon devido a uma overdose acidental de um remédio prescrito para o combate ao alcoolismo. Kenney Jones, ex-Small Faces, assumiu seu lugar. No ano seguinte, a tragédia voltou a rondar o grupo: no dia 3 de dezembro de 1979 um tumulto no lado de fora do Riverfront Coliseum, em Cincinnati, Ohio, provocou a morte de onze fãs que aguardavam o início de um show. A banda soube do incidente somente após a apresentação.

O último ano de Moon. The Who em 1978: Daltrey, Townshend, Moon e Entwistle

Depois veio o declínio, a separação e o retorno. Lançaram o médio Face Dances em 1981 e o melhor It’s Hard em 1982. Após estes trabalhos, passaram a se reunir apenas para grandes eventos e só lançaram mais um álbum de inéditas, Endless Wire, em 2006.

Porém, após participar do encerramento dos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, o Who voltou com força total. Pete e Roger anunciaram que uma nova e esperada turnê de Quadrophenia aconteceria. The Who tocou pela Europa em novembro e dezembro e pela América do Norte em janeiro e fevereiro de 2013. A turnê seguiu pela Inglaterra e França.

Hoje, o baterista Zak Starkey — filho do beatle Ringo Starr — substitui Moon à altura, mas nada substitui a inalcançável classe e os solos do baixista John Entwistle, nem o bom Jon Button. E há mais um guitarrista no grupo: Simon, irmão de Pete Townshend.

Foto: Site do The Who

A entrevista de Pete Townshend (72) após o concerto do Rock in Rio foi curiosa. Não é sempre que se ouve um sujeito que diz que se divertiu tocando coisas que escreveu há 50 anos. Mas fazer o quê?, é verdade. Ele parecia um menino solando e regendo sua tremenda banda. E Roger Daltrey, do alto de seus 1,68 m e 73 anos? O timbre áspero e forte permanece, mas às vezes ele falha. Querem saber? Grande coisa!

Para finalizar, ressaltamos que ouvir Won`t get fooled again (Não seremos feitos de trouxas novamente) no país de Michel Temer e Bolsonaro soa pra lá de estranho. Mais estranho ainda é ouvir Daltrey dizer na mesma canção: Meet the new boss, same as the old boss!” (Conheça o novo chefe, igual ao antigo chefe!).

A cidade-mico de Porto Alegre abre edital para uma “ópera-rock” baseada na Revolução Farroupilha

A cidade-mico de Porto Alegre abre edital para uma “ópera-rock” baseada na Revolução Farroupilha

Com a concordância do prefeito (sim, aquele mesmo que diz não ter dinheiro para nada), a Câmara Municipal de Porto Alegre abriu um edital de R$ 350 mil para que seja composta uma ópera-rock baseada na Revolução Farroupilha. Bem, a época deste gênero musical já está mais do que finda, só podendo ser coisa de quem não acompanha nem de longe o movimento cultural, parecendo mais um projeto pessoal de um sem-noção.

Moda no final dos anos 60 e início dos 70, as óperas-rock foram puxadas pelo excelente The Who, cujo principal compositor, Pete Townshend, escreveu a pioneira Tommy — OK, a primeira foi A Quick One, também do The Who — e a melhor de todas, Quadrophenia. Depois o gênero diluiu-se e foi parar nos musicais, onde morreu há muitos anos. Uma ópera-rock era simplesmente uma série de canções interligadas que, reunidas, contavam uma história, sem chegar a ser um drama musical como os de Wagner.

Na época das óperas-rock, as pessoas se vestiam assim, meu caros edis.

The Who na época de Tommy.
The Who (Townshend, Daltrey, Entwhistle e Moon, da esquerda para a direita) na época das óperas-rock | Foto: https://www.thewho.com/ Divulgação.

Mais: além da Câmara propor uma composição de gênero anacrônico, a tal “Revolução Farroupilha” sempre esteve longe de ser uma unanimidade no estado, mesmo na época em que ocorreu. A própria cidade de Porto Alegre não a apoiou. Talvez fosse adequado a nossos vereadores darem uma olhadinha no brasão de armas da cidade. Lá está escrito o lema “Mui Leal e Valerosa”. Esta frase está ali por NÃO termos apoiado os Farrapos. Desculpem, a verdade é algo incontrolável mesmo.

Gente, a Revolução Farroupilha não foi a luta do povo rio-grandense contra o Brasil. Uma parte importante dos moradores da província lutou a favor do Império. Nem mesmo na região da Campanha, tida como base dos farroupilhas, havia unanimidade. Muitos dos líderes militares e grandes estancieiros, que ali viviam, eram legalistas.

E ainda mais: a Câmara de Vereadores financiando um tema que não diz respeito exclusivamente a Porto Alegre é, no mínimo, estranha.

Li em algum lugar que seria melhor montar uma ópera sobre o tema. Até concordo. Por que não? Afinal, elas ainda são compostas e são populares. É um gênero vivo em Porto Alegre, onde as montagens lotam teatros. Mas gostaria de sublinhar que já existe uma ópera chamada Farrapos, conforme lembra o tenor Antonio Telvio. Ela foi estreada em 1935 ou 36 no Theatro São Pedro e é de autoria de Roberto Eggers (1889-1984), que também compôs Missões. Eggers foi uma figura bem conhecida na cidade — dirigiu o Orfeão Riograndense e foi Diretor Musical das Rádios Gaúcha e Farroupilha.

Para terminar, por que não propuseram simplesmente um musical ou uma ópera gaudéria? Talvez uma ópera-funk? Ah, Pete Townshend, que estrago você fez na cabeça de nossos ignorantes edis!

The Who hoje: só Townshend e Daltrey. Moon e Entwhistle já faleceram.
The Who hoje: só Townshend e Daltrey. Moon e Entwhistle já faleceram | Foto: https://www.thewho.com/ Divulgação

Rock and roll

Sou uma pessoa que quase só ouve música erudita mas que não vê o resto do mundo com superioridade, coisa tão comum entre meus pares… Ouvi rock somente até a adolescência e ainda tenho, em vinil, um bom acervo de “dinossauros”, o qual muitas vezes provoca ohs e uaus nos amigos de meu filho. Ele, Bernardo, hoje com 18 anos, costumava reclamar de mim por ter abandonado o rock que ainda ama e queria que eu voltasse à minha adolescência pondo só Beatles, Led Zeppelin, Deep Purple, Rolling Stones e mesmo o medonho Pink Floyd pós-Dark Side no CD player — ele é um voraz consumidor de música e ficava carente entre seus muitos amigos por não encontrar, entre eles, outros que fossem tão “cultos” musicalmente.

Eu ficava pasmo de ser tão atualizado. Afinal, Bernardo e seus amigos ouviam embevecidos as novidades do tio Milton: Quadrophenia (1973) do Who, Fragile (1972) do Yes, A Night at the Opera (1976?) do Queen, e mais uns 100 bolachões inéditos para a petizada.

A cena era assim. Em pleno 2000 e alguma coisa, Bernardo se atirava sobre meus velhos vinis e desencavava uns Alice Cooper, uns The Who (legal!), uns Queen (bom), Gentle Giant (que voz horrorosa a daquele cantor) e até Slade. Por outro lado, sou casado com uma mulher que ama as óperas, principalmente as de Mozart e Rossini, e que tem baixa tolerância aos grupos de som mais agressivo e que começa a berrar (sério!) quando pressente a iminência de Pink Floyd, pois foi traumatizada por seu irmão que ouvia The Wall cinco vezes ao dia — era deprimido, claro. (A propósito, comprei The Wall no dia em que foi lançado no Brasil e o vendi com lucro dois dias depois. Era muita adolescência). E, para piorar, ouço insistente a voz de meu pai que sempre me dizia que era importante não perder a contemporaneidade.

O único acordo possível seria o de ficar ouvindo Tom Jobim, Chico Buarque, Elis Regina, bebop e esquecer meu pai. Neste caso, todos ficariam felizes, mas o espectro se limitaria muito e estaríamos definitivamente fora das paixões de uns e outros. Ou seja, não dá.

Sou um cara de gosto musical eclético e até desejo ser tolerante, então só fecho a porta para as músicas absolutamente imbecis — ou seja, quase tudo –, além de boleros, alguns tangos cantados e reggaes, que não suporto. Por exemplo, ontem, fiquei bem feliz ouvindo com a Claudia a ópera L´Italiana in Algeri de Rossini. Porém, para aumentar a confusão sonora da casa, nos últimos dias fiz pesados esforços com roqueiros contemporâneos tais como Beck, Radiohead, Oasis e outros. Estes três são artistas ou grupos de produção muito boa e civilizada, porém… como são convencionais! Será que não há mais para onde ir? Cadê a vanguarda? Será que a indústria a sufocou?

Beck escreve as mesmas letras de gosto duvidoso que quase sempre caracterizaram o rock, mas é um grande inventor de melodias. Já o Radiohead se preocupa demais com a estrutura dos arranjos e perde a fluência. É um bom grupo que tem o problema de repetir-se ad nauseaum. O Oasis é um epígono dos Beatles e do T. Rex, mas quem se importa? Acho que a canção Cigarettes and Alcohol, do CD Definitely Maybe, é o máximo que se pode exigir de um rock — poucas vezes me deparei com uma letra que combinasse tão bem com música e interpretação.

Mas, olha, não adianta, todos eles parecem um pouco aprendizes (podemos incluir Pearl Jam aí também). Não há no horizonte nada parecido com Beatles, Stones, Led, Who, etc. E não apenas uma questão de postura, trata-se de qualidade musical mesmo. Escrevi toda esta coisa confusa porque ontem recebi o seguinte torpedo do Bernardo:

Tchê, descobri um puta álbum dos Stones, Sticky Fingers. Tu deve conhecer.

Imagina se não! Tal fato foi uma espécie de involução… (*) De resto, ele está descobrindo Charlie Mingus (Aleluia!), Ligeti (três Ave-Marias), Shostakovich (dez Pais-Nossos) e, compreensivelmente, não sabe onde botar Wynton Marsalis na história do jazz. Miles Davis sabia bem onde enfiá-lo. Mas, já que o assunto é rock, volto ao tema para finalizar: chego à conclusão de que os dinossauros ainda dominam esta área do mundo. O céu do rock está lotado de pterodáctilos.

(*) Ato falho de origem controlada.

Despretensiosamente, sobre All Things Must Pass

Há algumas décadas ouço pouco a chamada música popular. Meu filho Bernardo é quem acaba forçando meu retorno àquele tempo. Costumeiramente, ele explora meus antigos vinis e faz com que eu relembre os discos – são LPs mesmo e não CDs – que ouvia durante minha adolescência. Domingo passado, ele olhou bem sério para mim e disse: “Pai, quando tu morreres, quero o teu Quadrophenia em vinil”. Não me preocupei muito com este desejo post-mortem e, para ele não ficar interessado em antecipar nada, até poderia dar-lhe o álbum-duplo de presente. Let`s nor rush it, Dado.

Mas este não é meu assunto. Quase todos os CDs de música popular têm duas os três boas canções e o resto a gente apenas suporta. Por exemplo, com os Stones é assim; eles têm uns 4 discos em que conseguem superar esta média (Let it Bleed, Exile on Main Street, Sticky Fingers e Tatoo You?). Poucos artistas enfileiraram discos excepcionais: lembro dos Beatles, de Chico Buarque, do Led Zeppelin, The Who… Outros, produzem eventualmente tais raridades. Se forçasse, lembraria mais, certamente.

Todos aqueles que conhecem os discos dos Beatles sabem de sua estrutura. Em média, tínhamos cinco canções de Paul McCartney, cinco de John Lennon e duas de George Harrison. (Sim, as canções eram assinadas por Lennon e McCartney, mas todos sabem que raramente algum deles cantava uma música que não fosse de sua autoria. Assim, sabemos sempre quem foi o compositor.) Com tantos bons compositores em um mesmo grupo e com cada um deles gravando apenas o melhor de si, era difícil não criar uma obra-prima por ano. Porém, após a dissolução do grupo, as pessoas torceram o nariz para quase todos trabalhos individuais lançados por Paul, John e George. É óbvio: passando a divulgar dez ou doze canções por ano, da quais a metade nunca figuraria em discos dos Beatles, houve uma diluição.

Paul sempre foi combatido. Suas seqüências de canções açucaradas tornaram-se difíceis de engolir sem o contraponto salgado de John Lennon. Logo após a dissolução do grupo, McCartney apareceu com o duvidoso McCartney, onde havia… cinco canções muito boas. Lennon fez o maravilhoso (e curto) John Lennon and The Plastic Ono Band, que – apesar de ter sido recebido discretamente pelo público – fez algum sucesso de crítica com suas… cinco canções de primeira linha. Certa vez, Rafael Galvão fez um interessante levantamento sobre como seriam bons os próximos discos do grupo de Liverpool. Pegou, ano a ano após a separação, cinco boas músicas de Paul, cinco de Lennon e duas de George. O resultado foi espetacular. Isto é, através de um artifício inteligente, o Rafael fez os Beatles renascerem. Eles reviveram com grandes discos anuais e, se o Rafa tivesse algum tino comercial, venderia os trabalhos inéditos dos Beatles pós-separação… Mas houve a exceção: All Things Must Pass, o primeiro álbum-solo de George Harrison. Creio que é o único trabalho indiscutível, aquele que podemos chamar tranqüilamente de “um grande trabalho”, aquele que possui um volume inacreditável e coerente de boas canções.

Mas por que logo o terceiro beatle acabou por produzir o melhor disco individual? Ora, simples; o motivo é que a cota de Harrison estava mal calculada – ele crescera muito como compositor no período final dos Beatles – e o homem ficara com excelente material em suas gavetas. O álbum-duplo começa com duas músicas incompreensivelmente fracas, chatas até: I’d Have You Anytime e My Sweet Lord. A seguir, Harrison dá um verdadeiro show de competência com as extraordinárias Wah-Wah , a bela e triste Isn’t It A Pity (constrangedoramente semelhante a algumas composições do Oasis), a impossível de ouvir apenas uma vez What Is Life, If Not For You (de Bob Dylan), a raivosa Let It Down, a lenta Beware of Darkness, a inesperada The Ballad Of Sir Frankie Crisp (Let It Roll), a bobinha Apple Scruffs, a “realista” All Things Must Pass, a estranhamente feliz The Art Of Dying e a melodia inteligente (muito inteligente) de I Dig Love. Há outras mais fracas, mas que não chegam a prejudicar o efeito do conjunto.

Paro para consultar a internet. Alguns exagerados dizem que este seria o maior álbum de rock de todos os tempos. Não é. Porém, domingo à tarde, com os headphones a todo o volume, recordando o ano de 1971, quando tinha quatorze anos e ouvi All Things Must Pass pela primeira vez, foi.