Despretensiosamente, sobre All Things Must Pass

Há algumas décadas ouço pouco a chamada música popular. Meu filho Bernardo é quem acaba forçando meu retorno àquele tempo. Costumeiramente, ele explora meus antigos vinis e faz com que eu relembre os discos – são LPs mesmo e não CDs – que ouvia durante minha adolescência. Domingo passado, ele olhou bem sério para mim e disse: “Pai, quando tu morreres, quero o teu Quadrophenia em vinil”. Não me preocupei muito com este desejo post-mortem e, para ele não ficar interessado em antecipar nada, até poderia dar-lhe o álbum-duplo de presente. Let`s nor rush it, Dado.

Mas este não é meu assunto. Quase todos os CDs de música popular têm duas os três boas canções e o resto a gente apenas suporta. Por exemplo, com os Stones é assim; eles têm uns 4 discos em que conseguem superar esta média (Let it Bleed, Exile on Main Street, Sticky Fingers e Tatoo You?). Poucos artistas enfileiraram discos excepcionais: lembro dos Beatles, de Chico Buarque, do Led Zeppelin, The Who… Outros, produzem eventualmente tais raridades. Se forçasse, lembraria mais, certamente.

Todos aqueles que conhecem os discos dos Beatles sabem de sua estrutura. Em média, tínhamos cinco canções de Paul McCartney, cinco de John Lennon e duas de George Harrison. (Sim, as canções eram assinadas por Lennon e McCartney, mas todos sabem que raramente algum deles cantava uma música que não fosse de sua autoria. Assim, sabemos sempre quem foi o compositor.) Com tantos bons compositores em um mesmo grupo e com cada um deles gravando apenas o melhor de si, era difícil não criar uma obra-prima por ano. Porém, após a dissolução do grupo, as pessoas torceram o nariz para quase todos trabalhos individuais lançados por Paul, John e George. É óbvio: passando a divulgar dez ou doze canções por ano, da quais a metade nunca figuraria em discos dos Beatles, houve uma diluição.

Paul sempre foi combatido. Suas seqüências de canções açucaradas tornaram-se difíceis de engolir sem o contraponto salgado de John Lennon. Logo após a dissolução do grupo, McCartney apareceu com o duvidoso McCartney, onde havia… cinco canções muito boas. Lennon fez o maravilhoso (e curto) John Lennon and The Plastic Ono Band, que – apesar de ter sido recebido discretamente pelo público – fez algum sucesso de crítica com suas… cinco canções de primeira linha. Certa vez, Rafael Galvão fez um interessante levantamento sobre como seriam bons os próximos discos do grupo de Liverpool. Pegou, ano a ano após a separação, cinco boas músicas de Paul, cinco de Lennon e duas de George. O resultado foi espetacular. Isto é, através de um artifício inteligente, o Rafael fez os Beatles renascerem. Eles reviveram com grandes discos anuais e, se o Rafa tivesse algum tino comercial, venderia os trabalhos inéditos dos Beatles pós-separação… Mas houve a exceção: All Things Must Pass, o primeiro álbum-solo de George Harrison. Creio que é o único trabalho indiscutível, aquele que podemos chamar tranqüilamente de “um grande trabalho”, aquele que possui um volume inacreditável e coerente de boas canções.

Mas por que logo o terceiro beatle acabou por produzir o melhor disco individual? Ora, simples; o motivo é que a cota de Harrison estava mal calculada – ele crescera muito como compositor no período final dos Beatles – e o homem ficara com excelente material em suas gavetas. O álbum-duplo começa com duas músicas incompreensivelmente fracas, chatas até: I’d Have You Anytime e My Sweet Lord. A seguir, Harrison dá um verdadeiro show de competência com as extraordinárias Wah-Wah , a bela e triste Isn’t It A Pity (constrangedoramente semelhante a algumas composições do Oasis), a impossível de ouvir apenas uma vez What Is Life, If Not For You (de Bob Dylan), a raivosa Let It Down, a lenta Beware of Darkness, a inesperada The Ballad Of Sir Frankie Crisp (Let It Roll), a bobinha Apple Scruffs, a “realista” All Things Must Pass, a estranhamente feliz The Art Of Dying e a melodia inteligente (muito inteligente) de I Dig Love. Há outras mais fracas, mas que não chegam a prejudicar o efeito do conjunto.

Paro para consultar a internet. Alguns exagerados dizem que este seria o maior álbum de rock de todos os tempos. Não é. Porém, domingo à tarde, com os headphones a todo o volume, recordando o ano de 1971, quando tinha quatorze anos e ouvi All Things Must Pass pela primeira vez, foi.

22 comments / Add your comment below

  1. Comentários no blog anterior:

    Ahh! Que delícia ler algo sobre ATMP! E sobre George. Meu predileto, preferidíssimo, lindo e único fabulous ever. Sou queimada em praça pública toda vez que afirmo que os Beatles foram superestimados pela mídia. Eles não eram tuuudo isso, visto outros grupos contemporâneos a eles muito melhores ou tão bons quanto, que não receberam tanta atenção, como o The Who e os Kinks. Mas, grande parte do que eles foram, é devido à sensibilidade de George. Eu AMO George Harrison

    Gabi Despretensiosamente, sobr… Mar 28 2006

    ARTE by Ramiro Conceição Sou um contador de histórias, ancestral de caçadores, agricultores, metalurgistas e navegadores para o além do bem e mal. Alimentei-me de focas, de ursos, de búfalos, de antílopes, de guerreiros — fui um canibal. Trago em mim a saga das aves de rapina. Fui pirata, medíocre-santo — eu sou demônios. Sou um astronauta ao coração, uma seta além do arco, um barco que deixou o porto, o mito de uma civilização. Criei deuses — e os matei. Sou um mutante da criação.

    Ramiro Conceição Despretensiosamente, sobr… Mar 22 2006

    Milton, boa lembrança esta. O disco ejaculação do timido George é mesmo sensacional. Mas na lista dos discos memoráveis e completos voce deixou de fora muita coisa. Bem, voce sabe como adoro listas, é bem por isso mesmo. Outra coisa. My sweet lord é um mantra, em determinados momentos é fantástica, não fale mal dela. Abraços.

    Flavio Prada Despretensiosamente, sobr… Mar 22 2006

    All Things Must Pass é realmente bom. Achei o vinil entre uns poucos que minha avó tem, e ela o deu para mim de presente, vendo o quanto eu gostava do disco. Ela, na verdade, nem sabia como ele havia parado lá. O Town [que é como eu chamo o Bernardo / Dado] até tentou me comprar…foi ele que me falou bem do álbum [e depois que eu vim a achá-lo] Abraços, “seu” Milton [secretamente, sou seu oitavo e silencioso leitor. aquele amigo do bernardo que uma vez lhe falou por telefone, sobre carros batendo a 100km/h]

    Arthur Despretensiosamente, sobr… Mar 22 2006

    Milton querido: vês ao que tu me expões? A expor-me. E logo no que mais as pessoas gostam de ocultar: a (minha, no caso) ignorância. Eu não sei e provavelmente nunca saberei o que significa *melodia inteligente” e saberei ainda menos o que é uma melodia *muuuito* inteligente. Mas não creio que isso fará com que arrefeça a nossa amizade, certo?;-) Nevertheless, adoro o álbum e quando George morreu houve comoção nos blogs brasileiros e estrangeiros – o sentimento afinal é universal – e fizemos um concurso para saber qual a melhor canção de Harrison. tsc..ontem, foi ontem! Hoje corri para cá, pois dizia no coração; o Milton terá feito um post sobre J. S. Bach. com certeza. Enganei-me, mas quem sabe, não é?;-) *** E que tal não queres me responder sobre o Cidades Crônicas com o que nele não posso atinar, como conjunto, claro? Um grande e afetuoso beijo da Meglyn.

    Meg Despretensiosamente, sobr… Mar 22 2006

    Milton, você tocou numa obra muito especial para mim: “All Things Must Pass” de George Harrison. E também como sempre, qual um microcirurgião, pinçou o essencial: “as extraordinárias Wah-Wah , a bela e triste Isn’t It A Pity (esta canção me comove até hoje, qual me comove um genial poema de Pessoa); a impossível de ouvir apenas uma vez What Is Life, If Not For You (de Bob Dylan), a raivosa Let It Down, a lenta Beware of Darkness, a inesperada The Ballad Of Sir Frankie Crisp (Let It Roll), a bobinha Apple Scruffs ( aí em não sei, Milton, eu adoro essa canção, talvez seja pela interpretação de Harrison, realmente nçao sei) a “realista” All Things Must Pass, a estranhamente feliz The Art Of Dying e a melodia inteligente (muito inteligente) de I Dig Love.” Querido Milton, o que eu quero objetivamente dizer é que fui entender a obra “All Things Must Pass” muito, muito tempo depois da primeira audição. Qual a genialidade do disco, em minha opinião? “Ele” toca poeticamente no conceito do “TEMPO”. A passagem. A efemeridade de tudo. A necessidade de um criador (não importando aqui qualquer religião). Esse é para mim o encanto da obra mencionada no teu Blog. Poeticamente, para mim, Harrison, teve a premunição da sua curta passagem entre nós. Dos 4, para mim, Harrison foi aquele que sempre teve o mais livre sorriso!!!!!!!! Milton, deixo a seguir, no seu Blog, um poema que trata essencialmente do “TEMPO”: PRAIA DA COSTA (VILA VELHA-ES) by Ramiro Conceição I. AQUARELA A mãe ensina à filha que o futuro é inventar botões. O pai, pescador, ensina ao filho o tecer do vestido que enfeitará o mar: a rede — com os botões — aos peixes do mundo. O tempo, tecelão que tece tudo, transformou o menino-botão num robalo e a menina-mulher num medo, numa saudade, num barco, numa rede no meio do Atlântico. E porque tudo passa, um velho poeta pintou, em Vila Velha, uma linda aquarela que batizou de “TRABALHO HUMANO”. II. NAVIOS Meu amigos são navios. Partem alguns; chegam outros enquanto poucos — dormem! Mas o que mais aprecio em meus amigos é que todos, literalmente, são alados! Sim, meus amados, sou dono de uma frota de navios voadores! Todos vocês são meus convidados à uma bela viagem ao Cruzeiro do Sul. Bem-vindos a bordo. E uma linda passagem! PS: localização do ancoradouro: Rua Bahia, 360, ap 103, Vila Velha, ES.

    Ramiro Conceição Despretensiosamente, sobr… Mar 22 2006

    Querido, Como sempre uma bela aula de música! Beijos, saudades,

    Laura Despretensiosamente, sobr… Mar 21 2006

    Gostei muito da sua análise. Eu nunca consegui fazer uma avaliação isenta dos Beatles nem juntos nem separados. Seq’uelas de uma beatlemania tardia.

    Viva Despretensiosamente, sobr… Mar 21 2006

    É ótima a teoria dos discos pós-separação. Falando em George Harrison, outra grande reunião de estrelas que deu muito certo com a sua presença foi o “Travelling Wilburys”.

    pecus Despretensiosamente, sobr… Mar 21 2006

    Que “viagem” domingueira gostosa, Milton! Comprei o livro de Flávio M. de Oliveira – “The Beatles Traduzidos” – na Feira do Livro e soube detalhes de cada música que as enriqueceram e muito (qdo foram feitas, onde, como, porque). Claro que li ouvindo-os e “viajando” também, ao mesmo tempo. Quanto a ver um filho fuçando nossos tesouros (livros e discos) é muito “louco”. Além de nos propiciarem o retorno de algumas lembranças, não fizemos a mesma coisa? É fantástico! Um abraçuu.

    Leila Eme Despretensiosamente, sobr… Mar 21 2006

    Fico tb com a gde sequência dos Stones e do Chico, apesar da minha daltonia musical. abç

    gugala Despretensiosamente, sobr… Mar 21 2006

    Excelente texto! E o George sempre foi o meu Bratle preferido. Dizem que o Beatle preferido revela muito sobre a personalidade das pessoas. Não sei se é verdade, mas gosto mais dele do que todos os outros juntos.

    Anna Despretensiosamente, sobr… Mar 21 2006

    Os Beatles fizeram parte das delícias de minha vida. Meus filhos se encantaram com eles, e o repertório de rock lá em casa contava com todos os discos do grupo. E Elis, que você lembra aí no dia 17, foi, na minha opinião altamente leiga, a maior cantora popular de todos os tempos no Brasil. Ouvimos a notícia da morte dela num restaurante em São Luís do Maranhão e perdemos o interesse pelo jantar – uma caldeirada de frutos do mar que estava um primor. Só então percebemos o quanto era querida para nós, que nunca a vimos pessoalmente. A arte tem dessas coisas.

    adelaide Despretensiosamente, sobr… Mar 20 2006

    Visitando a Mõnica depois de ler sua última Crônica brinquei que viria aqui conferir sobre as cuecas de David… e me deliciei nest post.. Neu filho mais novo tem 13 anos e estava mostrando para ele ontem a tarde algumas músicas dos Beatles.. surpresa bem boa esta AULA.. gracias moço.. beijo na palma da mão!

    Bugra Despretensiosamente, sobr… Mar 20 2006

    Grande post, Milton. Eu voltei a ouvir o ATMP ano passado, acho, depois de anos. E tive essa mesma sensação de deslumbramento. Mas deixa eu fazer algumas ressalvas? O fato de Lennon ou McCartney cantar uma canção quer dizer, com certeza, que ele foi o principal compositor. Geralmente um tinha alguma participação na música do outro, ainda que pequena. Embora canções solo sempre tenham existido aqui e e ali, foi apenas perto do final que o parceiro não tinha nenhuma participação. Eu não acho que o ATMP seja perfeito, não. Acho que daria um grande álbum duplo, e um álbum simples aboslutamente perfeito. Tem coisas em excesso, como repetições instrumentais que parecem estar ali apenas pra encher lingüiça. E eu não acho que a participação de Harrison fosse mal calculada, não. Tanto que depois de uma empolgação inicial, ele passou a gravar cada vez menos – e piores – discos. Quanto ao McCartney, eu concordava com você, até que ouvi novamente depois de muito tempo. O disco é melhor do que eu imaginava. E os Stones têm a melhor seqüência de grandes discos que eu já vi, fora dos Beatles: Beggar’s Banquet, Let it Bleed, Sticky Fingers e Exile on Main Street. Não conheço nenhuma outra banda com esse recorde. 🙂

    Rafael Despretensiosamente, sobr… Mar 20 2006

    Lindo o disco mesmo. Tenho em CD.

    Leila Despretensiosamente, sobr… Mar 20 2006

  2. é um álbum obrigatório. e ponto.
    e mesmo “My Sweet Lord”, com aquele problema do plágio, ficou bem melhor que a original “She’s so Fine” das Chiifons.
    agora, peço licença prum desagravo ao Macca. os críticos sempre falaram mal das canções românticas dele, mas uma boa incursão em seus discos-solo vai puxar uma enormidade de pérolas:”Tomorrow”, “Live and Let Die”, “Let it Roll”, “MY Love”(esta a altura de Yesterday), e a resposta do Paul, o maior melodista que já ouvi, a seus detratores:”Silly Love Songs”.

      1. não, eu quis dizer em relação à crítica geral… aproveitei teu espaço aqui pra defender o Paul…
        sempre pegaram no pé dele. lembro até do ‘finado’ Matinas Suzuki Junior acusando o Paul de ser ‘comercial’ enquanto Lennon era um ‘libertário’.

  3. Legal falar desse disco. Realmente, é um disco muito bom (dentro do padrão dos Beatles, isso indica um disco excelente em termos absolutos). A minha preferida é Beware of Darkness e All Things Must Pass. Curioso é escutar “He’s So Fine” do The Chiffons (acho que é isso, faz muito tempo que não leio/ouço sobre a banda), música que gerou um processo de plágio contra George Harrison em My Sweet Lord. Realmente, a semelhança entre as melodias é inequívoca, ainda que muitos desses plágios são feitos de forma inconsciente, realmente sem dolo, o que eu acredito ser o caso de George. Abraço.

  4. Sobre a carreira solo dos Beatles, o trabalho do cara aquele de compilar as músicas e “reunir” os fab four vale apenas como curiosidade. Sempre o que eu achei legal nas músicas é aquela mescla que saía das idéias de um gênio retocadas à exaustão por outro gênio, cuja genialidade é totalmente diferente. Falo de John e Paul. Tu falaste do salgado e açucarado, talvez sejam essas as melhores palavras, o importante é marcar a contraposição. Na carreira solo, as músicas parecem não ter aquela marca, aquele “a mais”, que era justamente o toque do outro. Por isso, amaldiçoo um pouco o Let It Be e até o elogiadíssimo Abbey Road, em que fica claro que já era cada um no seu canto e era isso.

    1. Sim, já são álbuns individuais, só que misturados. De acordo. Em The White Album as músicas são claramente de John e Paul, mas há sempre um toque do outro.

      Abraço.

  5. Perfeita a análise. O George tava com músicas sobrando mesmo.

    O “Mind Games” do John, tem só uma ou duas fracas, é um baita disco tb. “Band On The Run” é chover no molhado, muito bom tb.

  6. O último grande disco de rock’n’roll foi Nevermind, do Nirvana, que contraria, ao menos para mim, sua teoria dos grandes discos compostos, na verdade, de apenas cinco grandes músicas; Nevermind é bom da primeira à última faixa, sem favor nenhum. Você só tem que reconhecer naquela zoeira toda e letras de um nonsense subcultural completo o estatuto de arte que existe no rock, apesar de todas suas deficiências estéticas. Nem todo dia é dia de Beethoven; às vezes, é Song 2 do Blur até os olhos saltarem das órbitas e a garganta secar depois de esticadas todas as cordas vocais pelos mais destrambelhados gritos primais. E tenho dito.

    (A essa altura do campeonato, ainda sinto um tambor batendo batendo e tentando acertar a cadência do meu velho coração mole)

  7. discordo do nunes, depois de “nevermind” teve “ok computer”, do radiohead. quanto ao “all things must past”, fazia tempo que não o ouvia, e a leitura do artigo acima fez despertar a fome; retirei a caixinha do cd da estante e lembrei de quando a comprei, assim que lançada em sua edição especial, e a ouvi pela primeira vez no toca cd do carro, pensando durante a viajem, que seria uma boa trilha sonora da última hora caso eu capotasse. é bom lembrar que esse álbum faz parte de uma raríssima categoria dos álbuns triplos (em vinil), que cito os que me lembro: “sandinista!”, do clash; a coletânia do festival de woodstock; blangadesh, também do harrison; “yesterdays”, do yes; e, por final, “the last waltz”, comandada pela the band.

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