Este livro tem como subtítulo Um guia para apreciar a sétima arte, o qual me parece mais adequado. Aliás, melhor mesmo é o original Talking Pictures: how to watch movies.
De forma didática, bem organizada e compartimentada, Ann Hornaday nos conduz pelos aspectos da produção de um filme – do roteiro e elenco à edição de som – e explica como avaliar cada etapa do processo. Como saber se um filme foi bem escrito, para além da qualidade dos diálogos? O que constitui uma ótima atuação? O que torna uma fotografia, edição e edição de som notáveis? E o que realmente faz um diretor? A autora — que é jornalista e importante crítica de cinema no Washington Post — nos oferece essas respostas e nos mostra como a experiência de assistir a um filme pode ser muito mais rica do que imaginamos. Os itens avaliados são roteiro, atuação, design de produção, fotografia, edição, som e música e direção. Para cada item, a autora dá boas dicas para avaliação, além de outras observações interessantes, tanto de sua lavra como das entrevistas realizadas por ela.
O problema do livro é que quase todo o referencial cinéfilo da autora é norte-americano, principalmente de filmes lançados entre 1990 e 2015 e sei que haveria exemplos até melhores fora daquela filmografia. Pois é, eu sei mais a respeito e prefiro o cinema europeu e boiei em boa parte dos “cânones”. Acho que deveriam ser utilizados apenas clássicos ou Hornaday deveria ter ampliado os exemplos.
Mas o livro tem curiosidades interessantes e observações preciosas sobre o que faz um filme ser bom ou funcionar e valeu a leitura.
Hornaday: por demais estadunidense para este que vos escreve | Foto: Divulgação
Este é um livro de 1994 que ganhou o Jabuti do ano seguinte e que recebi de presente do leitor e cliente da Bamboletras Helion Povoa Neto — ele encontrou ecos deste Darbot em meu livro Abra e Leia… Só que eu não conhecia o livro e nem Giudice.
O Museu Darbot está há anos fora de catálogo. Sua editora, a Leviatã… Nem sei se ainda existe. Porém, após a leitura do livro, só posso me sentir lisonjeado, pois o livro de contos de Giudice é excelente!
Victor Giudice foi escritor, crítico, músico e professor que viveu de 1934 até 1997. Talvez Helion tenha visto pontos em comum em duas coisas: (1) o amor e as citações de música erudita e (2) as viradas nas histórias dos contos. O multifacetado Giudice dava aulas sobre música erudita e foi diretor da Sala Cecília Meirelles no Rio de Janeiro, mas também foi um respeitado compositor de sambas que chegou a ser convidado para integrar a ala de compositores da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel. E ganhava a vida como bancário.
No mais, trata-se de um escritor altamente sofisticado. O melhor de todos os contos é o que dá título ao livro. Num livro marcado pela música, este conto fala do mundo das artes plásticas, com seus enganos e enganadores. Também fala de autorias. Os texto é fluido, muito grudento e a verdade vai sendo apresentada em várias camadas que alteram as impressões anteriores. Coisa de mestre mesmo. Cavalos, a original crítica social de Jurisprudência e o censurado pela ditadura O hotel também não são nada esquecíveis.
São nove excelentes contos. Um bem diferente do outro em tema e estilo. Há sátiras e idílios, delírios e lógica, música e pintura, densidade e fluidez, conforme cada conto exige.
Agora, sempre fico triste quando vejo um escritor desta qualidade ser esquecido. Há um site sobre Victor Giudice na internet e pouca coisa mais. Quem fala nele hoje?
Não tenho o hábito de ler crônicas, apesar de escrever algumas. Por isso, não fiquei muito satisfeito quando vi que o segundo livro de José Falero pela Todavia seria do gênero. Claro, queria outro romance após o esplêndido Os Supridores. Mas minha contrariedade foi vencida rapidamente por Falero. Li Mas em que mundo tu vive? com grande prazer. Sim, com grande prazer, apesar dos temas abordados não serem exatamente luminosos. Acontece que o humor do autor, a habilidade para contar seus causos e a indiscutível inteligência de suas argumentações dão enorme contentamento ao leitor. Falero fala do que sabe. E ele sabe coisas que a maioria do público leitor brasileiro ignora.
Por experiência própria, Falero conhece as diferenças entre morar na periferia e no centro de uma grande cidade brasileira, sabe como os pobres são afastados dos bairros centrais, sabe o que sentem nos ônibus lotados quando vão servir aqueles têm posses e, bem, a alegria do leitor não vem destes tristes fatos — vem de ler um baita contador de histórias, vem da qualidade da prosa, do ato artístico e da revelação de coisas que ficam invisíveis ou mudas, pois os pobres parecem se comunicar por mímica com os privilegiados, jamais sendo efetivamente ouvidos, apenas limpando banheiros, atendendo em restaurantes, construindo edifícios, vendendo coisas nas ruas, permanecendo atirados nas calçadas ou vivendo a violência de seus bairros.
Neste sentido de narrar coisas tristes com humor e graça, Falero tem algo de Lucia Berlin. Ele muitas vezes faz a gente rir das desgraças, o que não as torna cor-de-rosa, pelo contrário. É que o tom geral é o de uma conversa muito peculiar, algo entre o coloquial e o culto que nos coloca na mesa de bar, louco por uma cerveja. Muitas das crônicas também são autobiográficas, onde ficamos sabendo muito do autor, do (bom) jogador de futebol, do aluno, do aprendiz de músico, do filho, irmão e amigo. Especialmente nestas crônicas, o humor de Falero reina com tudo.
Mas o cerne do livro é a exploração do trabalho, o racismo, a separação em castas e a falta de empatia de quem é privilegiado por uma melhor educação, alimentação, trabalho, transporte, tudo. (As minhas frases de muitas vírgulas vão por conta da variedade de temas…) E o bom do livro é que passamos a olhar de um modo diferente o que acontece a nosso redor. É um livro de graça e luta, de uma luta justa.
Olá, Milton. Antes de abrir e começar a ler, eu estava achando que o título do livro era brincalhão. Bom, e é isso mesmo, mas também é, ao seu modo, apocalíptico, por que não? “Tudo é movimento irregular e contínuo, sem direção e sem meta”, a epígrafe de Montaigne ficou perfeita aplicada não apenas ao conto Breve relato da aniquilação, mas ao livro todo. Há comédia nas histórias e é exatamente por aí, no breve riso, que o irregular sem pausa, sem direção e sem meta, se infiltra por rachaduras abertas a todo instante. Li na ordem em que os contos se apresentam, do primeiro ao último. Perto do fim, estava com sensação de feira do burlesco, com atores mambembes fazendo alegorias da morte. E então encontrei a tua nota final sobre O Sétimo Selo. O bom é que os teus apocalipses insinuados se fazem sem grandiloquência, coerentes com as pequenas comédias do cotidiano cheias de fraturas. Não é um apocalipse de uma só vez, hollywoodiano. A abertura do derradeiro selo acontece em conta-gotas e, por vezes, é de uma graça que desvia o drama de resvalar em direção à desgraça. O teu apocalipse deixa a dúvida, irá mesmo acontecer? E aí está o melhor. Meus contos preferidos foram Adaptações, Para não falar de todas as mulheres (uma pausa no fim dos tempos, um doce com cafezinho), Breve relato da aniquilação, Luciana e o hedonismo, Daqueles que não se denunciam e Vicentina.
Abraço. Espero que 2021 não se torne para o Inter o que 2003 foi para o Grêmio: a prévia da queda mais do que anunciada para o ano seguinte.
Origem reúne 5 pequenos livros — trata-se de relatos autobiográficos de mais ou menos 100 paginas cada um — que Thomas Bernhard publicou entre 1975 e 1982: são eles Uma criança, A causa, O porão, A respiração e O frio. Bernhard publicou-os fora de ordem cronológica mas, neste volume de 501 páginas, a Companhia das Letras reuniu todos os textos em ordem cronológica. O resultado é estupendo e forma uma bela autobiografia da juventude do autor, desde a infância até seus quase 20 anos de idade.
Este período foi marcado por extremas dificuldades — Bernhard nasceu em 1931 e cresceu, portanto, durante a guerra e depois. Também jamais conheceu seu pai e teve uma relação conflituosa com a mãe. Foi criado pelo avô anarquista, seu mestre para toda a vida.
Não existe escritor que una com maior brilhantismo mau humor, ranzinice, inteligência e talento como Bernhard. Ninguém odeia como Bernhard. Ele odiava sua Áustria natal, odiava seus professores, seu médicos e achava que a quase totalidade da humanidade era perfeitamente imbecil. Só que tinha enormes fatias de razão e sabia como ninguém expressar seu ódio e repugnância. Ele tinha vergonha de Salzburgo e de seu país — e explica tudo em detalhes. “Minha existência sempre perturbou, o tempo todo. Sempre perturbei e sempre irritei as pessoas. Tudo que escrevo, tudo que faço é perturbação e irritação. Minha vida inteira nada mais é do que perturbação e irritação ininterruptas. Porque chamo a atenção para fatos perturbadores e irritantes. Existem aqueles que deixam os outros em paz e aqueles que perturbam e irritam, categoria à qual pertenço”, escreveu o escritor em Origem.
Cada um dos cinco relatos têm apenas um parágrafo de mais ou menos 100 páginas, mas são facílimos de ler. Extremamente musical, ele faz repetições pontuais que jamais fazem com que a gente se perca. Ele avança e retorna, avança e retorna com extrema habilidade.
O primeiro relato — Uma criança — é sobre sua infância e é algo lindo desde a decisão de Thomas em fazer uma viagem logo que aprende a equilibrar-se sobre uma bicicleta. A causa trata do internato e seu justificado ódio a Salzburgo. O porão é o extraordinário relato de quando Thomas desistiu de ir à escola, descobrindo o comércio e a música. A respiração e O frio são sobre as doenças que o acometeram na adolescência — Bernhard é realmente um sobrevivente.
Origem é espetacularmente bem escrito e mostra lindamente a formação de um ser humano não somente literário, mas principalmente musical. Explico: Bernhard descobriu seu grande talento musical durante a adolescência. Se não fossem seus combalidos pulmões, seria um barítono e sua formação com a professora de canto Maria Keldorfer e seu marido Theodor W. Werner está descrita em trechos inesquecíveis.
Este é o segundo livro e primeiro romance de Clara Corleone. Primeiro vieram as excelentes crônicas de O homem infelizmente tem que acabar. Este Porque era ela, porque era eu tem todo o jeito de história real, mas, sabe-se lá, talvez seja apenas uma realidade ficcional. Uma das personagens principais — chamada Clara Corleone — e passa por um conflito interno entre feminismo e estilo de vida. Afinal, ela aceita de ser a “amante”, a “outra”, de um homem. Sim, é uma crise, mas o é leve, bem humorado e é novamente escrito na prosa afiada e fluida de Clara.
Pois não é um tratado feminista ou filosófico. O conflito de que falei é perfeitamente encoberto por conversas jogadas fora, mil detalhes, garrafas de cerveja, por descrições de encontros entre amigas, entre amantes, em bares e em camas, tudo com a autora no controle. A história é contada pela Clara personagem. por um lado, e por Clarissa, de outro. No início do romance, a autora nos confunde sobre quem está narrando.
Quase todo mundo já lançou olhares ou se apaixonou ou ficou com alguém “comprometido”, creio eu. E é simplificar muito as coisas considerar a(o) amante um(a) mera vilã. Porém, para além do desejo, pegar um cara casado é uma opção ética. Neste caso, ela se une a ele no desrespeito que tem pela esposa, correto? Ela se une a ele e não à outra… Uma mulher que faz isto não estaria sendo machista? O feminismo não deveria ser também uma construção de apoio mútuo entre mulheres? É saudável uma relação que aniquila outra?
Mas a gente se diverte muito lendo Porque era ela… Há uma visão real e colorida da contemporaneidade do bairro Bom Fim e adjacências de Porto Alegre. É onde moro e é uma maravilha poder ir ao Miau da Cabral e pensar se podemos mesmo levantar (vá ler o livro). É uma delícia entrar na Lancheria do Parque pensando nas conversas e no aconselhamento entre as mulheres nas mesas. Aliás, anteontem, fui na Lancheria com a Elena quando repentinamente surgiu Clara Corleone herself na nossa frente.
A cena final do livro é realmente muito boa. Não há facadas, gritos e nem canos fumegantes. Ninguém arranca os cabelos. Há elegância.
Leia!
P.S. 1 — Clara leu esta resenha e esclareceu que só 10% daquilo ali aconteceu de fato.
P.S. 2 — O título do livro foi inspirado pela canção de Chico Buarque que, por sua vez, a trouxe de Montaigne, conforme está bem explicado aqui.
Clara na festa em que recebeu o Prêmio Jacarandá de “Aurora do Ano” | Foto de Bruna Paulin
Eu gostei muitíssimo deste livro recém lançado pela Dublinense e que está disponível na melhor das livrarias, a Bamboletras.
Hífen é um romance muito conectado com o que vivemos agora. É sobre uma epidemia, sobre maternidade, sobre deportados, sobre tecnologia. É também uma distopia, mas não é aquela distopia que desconsidera aspectos psicológicos e humanos para se apoiar apenas em tecnologia, autoridade e opressão. Não, é uma distopia a ser espreitada aos poucos, através dos depoimentos pessoais de suas narradoras e, mesmo que uma delas seja uma androide, tudo está encharcado em humanidade.
De um modo geral, há quatro classes de capítulos. Os escritos por Ofélia, uma mãe imigrante numa Europa que não tem espaço para ela; os por Maria do Carmo, uma enfermeira androide que deseja ser imperfeita e humana; e há também as notícias de jornal e as receitas gastronômicas.
A ação se passa em Flândia, uma espécie de sucedâneo da Europa. Seus habitantes são os flans, pessoas que sofrem de solidão crônica, usam óculos (como eu) e são daltônicos (como eu). A região ”não é bem um país, nem um Estado, e seu prato mais tradicional é o Pudim Flan”. Fora de Flândia há outro país muito mais pobre, Olival, cujos habitantes querem entrar em Flan e que às vezes são deportados.
Acontece que as crianças da Flândia, naquela idade em que recém foram alfabetizadas, entre os 8 e os 12 anos, começam súbita e estranhamente a dormir. Todas elas caem numa espécie de coma, como o descrito nesta notícia real, só que as de Flândia caem num sono sem fim.
A princípio, o formato fragmentário esconde a seriedade do romance. São reflexões sobre o mundo e divagações aparentemente casuais mas que acabam por revelar uma, duas ou três histórias trágicas. A certa altura, a androide Maria do Carmo escreve que “… uma história linear é apenas um tabefe muito eficaz num mar de possibilidades que cada segundo de uma vida orgânica pode oferecer”.
A principal personagem humana chama-se Ofélia, mãe de uma menina identificada como Z. A outra é Maria do Carmo, a androide que deseja ser humana e até a escrever manualmente. É um livro triste que não aponta saídas — não é para isso que os romances existem, certo? –, mas não é catastrófico. É antes de tudo poético. Os textos de Ofélia para sua filha são belíssimos, assim como os de Maria do Carmo sobre o humano.
E o hífen? O hífen é uma conexão. O que junta duas coisas para muitas vezes formarem não uma soma, mas outra coisa. Como um guarda-chuva, um arco-íris, a boa-fé, uma segunda-feira, uma mesa-redonda. Pode ser como uma flor que é comida por um animal que depois morre e se desintegra para deixar germinar a semente que carrega em outro lugar. Pode ser a conexão entre leitor e autor. Como escreve Ofélia: “Ler é o hífen entre o leitor e o autor, o que nos permite compreender o que estamos a ler. Entre a novidade que lemos e o que já sabemos”.
— Pai, quando é que tudo melhora? — Quando te habituares a isto, filho.
Patrícia Portela, Dias Úteis (segunda-feira)
Dias úteis é um pequeno livro formado por um prefácio e seis contos, um para cada dia da semana, e mais um epitáfio para o domingo. Não há continuidade entre eles, são mais monólogos onde o poético, o lírico e o humor estão bem presentes. É excelente e intrigante. A escrita ou os temas abordados não parecem possuir um plano, são mais improvisações sem um tema-base, como o free jazz. A ideologia artística de Portela parece ser a de deixar-se assombrar-se com o que aparece de surpresa, com aquilo que se deixa mostrar sob os bons modos e a compostura, com a intimidade mais minudente. Adorei a terça-feira, onde uma mulher diz precisar de férias e passa a planejá-las. Ela primeiro fala em um fim de semana fora de casa e depois passa a fazer planos que incluem cada vez mais dias e viagens mais longas — chegando a algo como um “paroxismo” de férias, independência e liberdade. Ela planeja uma mudança de vida em outro continente, aprendendo outras línguas. Tudo acaba na China. mas ela logo volta à razão (ou ao comum) e acaba desistindo de tudo. O final é muito engraçado. O altamente poético sábado, chamado aqui “Porque hoje é sábado” talvez seja o melhor conto do livro. Ele fala da memória que temos da pessoa amada que morreu — “a memória é um inimigo poderoso, mantém o cérebro a funcionar contra a sua vontade.”
Curiosamente, temos muito Brasil neste livro. Além do “Porque hoje é sábado” — título arrancado a Dia da Criação, de Vinícius de Moraes –, há epígrafes de Drummond, João Gilberto Noll, Machado de Assis, Adélia Prado, de uma carta de Erico Verissimo para Clarice Lispector, e ainda cita o Carnaval do Rio no prefácio que estabelece um jogo sem regras que pode ser recebido diferentemente por cada leitor.
Este é um romance nada convencional. É para quem gosta de vanguarda. A história parte de um baú encontrado pela autora na casa de seus avós. Dentro dele, ela encontra o espólio de um certo Acácio Nobre, já falecido. Ali estão objetos, correspondências, desenhos e documentos do mesmo. Acácio Nobre é uma figura que existiu, mas da qual não se encontram os rastros… O Google, por exemplo, o desconhece. Mas ele foi conhecido de importantes figuras de sua época, além de inventor e visionário. Imagina-se que ele teria nascido em 1868 e vivido até 1969. O livro é o conjunto, um a um, dos itens encontrados no baú, ou seja, é uma colagem do que foi sua vida. Em minha opinião, ele é uma realidade ficcional, mas nada disso interessa.
Acácio tinha a convicção de que as obras de arte deveriam permanecer anônimas, para poderem sobreviver ao artista e isto contribuiu para a quase inexistente documentação sobre ele. “Quero estar morto quando estiver morto! Que viva por si só a obra! A verdadeira imortalidade só se atinge quando nos apagamos definitivamente deste mundo”. Claro que ele não gostava de ser fotografado, embora o boato de ter sido registrado por Man Ray.
Por mais de 25 anos, desenhou puzzles geométricos para a Richter & Co. Uma de suas principais criações foi o Ovo de Colombo, que se desfazia em muitas peças e com as quais era possível montar um enorme número de imagens de aves. Também por suas estranhas ideias, foi investigado pela PIDE, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado, espécie de DOPS da ditadura portuguesa. No relatório da PIDE, que aparece no livro, é definido como um “louco, desenhista, alpinista e monge tibetano”. Não havia registros de sua identidade ou nascimento. Por todas essas características, ele tinha um potencial subversivo e perigoso e, mesmo que se desconhecessem ações concretas neste sentido, a PIDE estava de olho.
Além disso, ele adorava escrever cartas para políticos e importantes personalidades a fim de solicitar auxílio na implementação de uma unidade do Instituto Fröbel em Portugal. A ideia do instituto era a de desenvolver o raciocínio lógico e a capacidade de desenhar, coisas que Acácio considerava imprescindíveis para todos os indivíduos. Sim, ele estava numa cruzada de alfabetização gráfica.
Dos seus contemporâneos, Patrícia traz um possível encontro com Fernando Pessoa (1888-1935) no café A Brazileira, ponto de encontro dos modernistas portugueses. Enquanto Patrícia nos entrega Acácio peça por peça, vamos fazendo nossa própria montagem do personagem. Ele, Acácio, fala em Pessoa, mas também em Lorca, Picasso, Maiakovski, Malevich, Marinetti…
Também afirma que sempre viaja sem mala porque nunca usa nada duas vezes, mantendo uma constante necessidade do novo e por isso troca de nome, de realidade, mundo, vida, linguagem, cultura. “A soma das partes não dá uma só pessoa”.
O livro é acompanhado de inúmeros fac-símiles de textos de Acácio, assim como de seus projetos. Eu imagino que apenas uma escritora transdisciplinar pudesse escrever / montar um livro como este. É o que Patrícia é. Seu currículo é impressionante e este sim pode ser conferido no Google. Ela é licenciada em realização plástica do espetáculo e leciona dramaturgia, entre outras mil coisas. “A soma das partes não dá uma só pessoa”.
Não faz muito tempo li um comentário que alguém escreveu sobre o livro Abra e leia, do Milton Ribeiro, dizendo que, por conhecer e apreciar o autor, tinha receio de se decepcionar com o livro. De certa forma, era o mesmo que eu sentia e, agora que li a obra, posso garantir a vocês, potenciais leitores, que não, não há nenhum risco disso acontecer. Pelo contrário, aliás: a admiração de vocês pelo Milton só tende a crescer. Quer dizer que o cara, além de entender de música, ter uma livraria, fazer ótimas resenhas e ser colorado, ainda é escritor? Mas quantas vezes ele entrou na fila de distribuição de benesses e qualidades? Precisa de uma CPI isso aí, hein.
Abra e leia foi uma leitura que comecei um pouco receoso, mas que logo foi se tornando prazerosa e, com o passar do tempo, até esqueci que era o Milton quem tinha escrito o livro. Só lembrava disso às vezes, quando o Milton aparecia dentro das histórias quase como um fantasma assombrando suas criações. É um livro que faz algo inédito nos tempos atuais: ele conta histórias. Sejam insólitas, trágicas ou cômicas, os contos de Abra e leia resgatam aquele prazer quase indescritível que é ler uma história bem escrita e bem contada, do tipo que parece estar se desenrolando diante dos nossos olhos e que estamos testemunhando acontecer. Em suma, uma maravilha de leitura. E, se alguns contos parecem acabar de uma maneira abrupta ou sem nenhum tipo de epifania, é por que a vida também acontece assim: cheia de cortes, de questões não respondidas, de finais que a gente não sabe se existem mesmo ou se só inventamos para não pensar mais naquilo.
Um detalhe de ritmo que o Milton tirou da música e trouxe para o livro: ele vai em um crescendo. Começa com boas histórias que, aos poucos, vão cativando a atenção, e a consistência narrativa vai se aprofundando cada vez mais até chegar em uma sequência final de contos realmente extraordinários. Melhor ir lendo aos poucos para ter essa impressão de arrebatamento, que eu nem consegui ver quando começa de verdade (sinal de que foi bem feita a escolha da ordem dos contos), mas, em geral, uma seleção de contos vai alternando maus, bons e ótimos momentos, algo que não acontece em Abra e leia, em que aquilo que era bom no início fica excepcional no final.
Entre os contos, gostei muito da praticidade filosófica e engraçada presente em Luciana e o hedonismo, do insólito em Os velhinhos, da situação quase kafkiana em Enquanto os psicanalistas se divertem, da maravilhosa construção de personagem em O Violista (muito leria um romance inteiro com esse personagem, um Sancho Pança sem Quixote), da estranheza que chamamos de vida em As afinidades ininteligíveis – quem nunca se perguntou “como foi que já gostei dessa pessoa no passado?” -, da insuspeitada força de Abra e leia, que tem um final extremamente vigoroso, e da tragédia que vira comédia em Anita e Belle, que me fez dar uma gargalhada tão alta que possivelmente acordei meus vizinhos nessa última madrugada.
Eu sei que muitas pessoas hoje consideram a literatura como um exercício sociológico, outros tentam mudar o mundo através dos seus livros, tem aqueles que desejam expressar sua visão pessoal ou filosofias particulares usando uma moldura ficcional, e está tudo bem querer isso, cada um com a sua literatura. Eu, contudo, como sou um leitor antiquado, do tipo que gosta de ler boas histórias, daquelas que me enganem muito bem e me façam acreditar piamente no que foi narrado, posso garantir que gostei muito de Abra e leia, tanto que agora farei ao Milton a pergunta temida por qualquer escritor: tá, e daí, quando vem o próximo?
Este é um livro surpreendente. Um daqueles que merecem a expressão “puro suco de Brasil”. Você sabia que, na metade do século XIX, mais exatamente por volta de 1859, os brasileiros estavam indignados com o que os europeus diziam ser nosso país? Pois na Europa havia livros que falavam de animais fabulosos – muitos deles semi-humanos –, de canibais insaciáveis e de povos indígenas de 3m de altura caminhando por nossas ruas. Pois D. Pedro II e seu governo promoveram a primeira expedição científica brasileira, que saiu do Rio de Janeiro para o Nordeste e Norte do país, capitaneada pelo engenheiro e mineralogista barão de Capanema, o botânico Freire Alemão e o poeta e etnólogo Gonçalves Dias, o autor de Canção do Exílio e do I-Juca-Pirama.
A exploração faria um levantamento do solo, flora e fauna da região e, como o problema da seca vem de longe, o monarca adquiriu 14 camelos argelinos, acompanhados de quatro tratadores africanos, para que a expedição se movimentasse pelo sertão. É sabido que, sem água, os camelos vão mais longe do que os jegues. Porém, como o Brasil já era aquilo que conhecemos, os camelos tornaram-se motivo de piadas. Os bichos trabalharam e se reproduziram do mesmo modo que fizeram nos EUA e principalmente na Austrália. E foram úteis, mas a oposição e sua imprensa sepultaram a ideia, pondo a iniciativa no ridículo.
E sabem que a má fama dos camelos argelinos chegou a nossos dias? A Imperatriz Leopoldinense venceu o Carnaval carioca de 1995 com o enredo Mais vale um jegue que me carregue, que um camelo que me derrube no Ceará. A Escola contava a história da expedição e boa parte da culpa do “malogro” coube aos pobres camelos. Não é verdade.
Num texto fluido, realmente bom de ler, o jornalista Delmo Moreira recriou a aventura da expedição, uma tragicomédia que misturou absoluto pioneirismo, vocação científica, muita burocracia, casos amorosos e alguma cachaça. Em meio a desvios de rota, corte de verbas, férias prolongadas e conflitos com os locais, a história da expedição é também a de um país que começava a se descobrir. Como os envolvidos eram cientistas, a aventura está muito bem documentada e Moreira levou 5 anos lendo e alinhavando tudo num esplêndido texto de mais ou menos 250 páginas.
“Não vos parece, senhores, que já era tempo de entrarmos, sem auxílio estranho, no exame e investigação desse solo virgem?”, propôs o visconde de Sapucaí. “De desmentirmos esses viajantes de má-fé ou levianos que nos têm ludibriado e caluniado?” Ex-preceptor de Pedro II, Sapucaí presidia o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Na sessão solene de maio de 1856, os sócios da instituição denunciavam, em discursos exaltados, exploradores estrangeiros que haviam publicado na Europa uma série de informações falsas e fantasiosas sobre o Brasil. Defendiam que o país tinha o dever de patrocinar uma missão exploratória e propunham a formação de um grupo de cientistas para estudar, sem controle estrangeiro, como nunca havia sido feito antes, o imenso e desconhecido território nacional. Até então, naturalistas locais serviam como meros colaboradores de expedições estrangeiras, sem autonomia sequer para escolher roteiros. Agora eles queriam “mostrar ao mundo que não nos faltam talentos e habilitações” para as pesquisas científicas. O Império só teria a ganhar: “Tudo seria do mais alto interesse: conhecimentos da topografia, dos cursos dos rios, dos minerais, das plantas e animais, dos costumes, da língua e das tradições dos autóctones, cuja catequese seria também mais facilmente compreendida”, previu o visconde.
Mas temos a dor e o prazer de estarmos no Brasil. Os conservadores fizeram pouco. Eles queriam que a expedição descobrisse riquezas… Ouro, por exemplo, não foi encontrado. Os liberais defendiam a iniciativa, mas como ela só trazia plantinhas, insetinhos e bichinhos grandes e pequenos, ficava difícil de defendê-la. A história dos camelos e da exploração é fascinante, às vezes hilariante, demonstrando que os conflitos com a ciência têm mais de um século em nosso país. Capanema e de Gonçalves Dias — esplêndidos personagens – que o digam.
Os camelos? Ora, morreram em fazendas e em circos.
Os resultados? Ora, por puro desinteresse, o fartíssimo material jamais foi catalogado. Agora, boa parte se perdeu porque ele estava naquele enorme museu de história natural e antropologia inaugurado em 1818 e que ficava no interior do Parque da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro.
Sim, no Museu Nacional, aquele mesmo que queimou em setembro de 2018.
Claro, eu comprei este livro pelo simples motivo de Linn Ullmann ser filha de Liv Ullmann e Ingmar Bergman. Lançado pela Cia das Letras em abril de 2009, o livro vendeu minimamente no Brasil e só o encontrei em sebos. Pois fiquei muito feliz em lê-lo. É ótimo.
Vamos com um mínimo de spoilers. Erika, Laura e Molly são três meias-irmãs, filhas do mesmo pai com 3 diferentes mulheres. O pai, Isak Lovenstad, é um velho e famoso médico aposentado que está vivendo na pequena ilha de Hammarsö. Erika deseja que as irmãs façam uma visita conjunta ao pai.
(Bem, Ingmar Bergman passou sua velhice na ilha de Fårö e teve nove filhos com seis mulheres diferentes. Ullmann é a mais jovem, a última filha do grande homem. E olha, Linn sobrevive bem a isto. A casa de Bergman na ilha chamava-se Hammars, nome muito parecido com a ilha do livro de Linn).
O foco do livro são seus flashbacks, focando-se mais exatamente no quente verão de 1979, quando Erika estava fazendo 14 anos, Laura, 12, e Molly, 5. Elas tinham uma turma de garotos que circulava pela ilha. Um deles era desprezado pelos outros, fato bem conhecido de quem participou de turmas de bairro infantis. Excluído da turma, Ragnar refugiava-se em uma cabana secreta onde também se encontrava com Erika. Nascidos no mesmo dia e ano, ninguém sabia dos beijos e das intimidades entre eles. E era na cabana que eles pretendiam comemorar seu décimo quarto aniversário em 1979. Vinte e cinco anos mais tarde, Erika relembra os acontecimentos daquela noite de verão e decide voltar com as irmãs à ilha onde nunca mais puseram os pés.
O romance começa com Erika dirigindo nervosamente em meio a uma tempestade de neve até a ilha sueca de Hammarsö para visitar o pai de 84 anos. O velho vive ameaçando cometer suicídio e Erika convoca suas duas meias-irmãs para que possam ver como ele está.
A longa viagem de carro na neve gera lembranças em Erika: em 1972, as meninas começaram a passar o verão com o pai em Hammarsö. A Marion de cabelos negros é a abelha-rainha que dirige, com olhares malévolos, qual membro do grupo de adolescentes locais pode tomar sol ao seu lado ou quem terá o privilégio de emprestar-lhe uma blusa. Como disse, na periferia desse grupo está Ragnar, um menino que é o melhor amigo de Erika. Erika e Ragnar compartilham um linguagem secreta e um esconderijo numa cabana da floresta. Mas quando eles completam 14 anos, Erika o trai para ganhar espaço com Marion e esconder a “vergonha” de sua atração pelo vetado Ragnar, dando início a um episódio que faz O Senhor das Moscas parecer contido.
O Senhor das Moscas, de William Golding, gerou décadas de discussões sobre a maldade das crianças, principalmente dos meninos. Normalmente, as meninas são suas maiores vítimas. Linn inverte tudo. Marion, a adolescente-chefe do livro, comporta-se bastante mal — não vou esquecer a cena magistralmente assustadora que termina quando ela “joga o vibrador no mar”.
A estrutura em mosaico do romance, uma montagem de vários pontos de vista a partir de vários pontos no tempo, cria ecos desse acontecimento horrível no presente. A dolorosa gravidez de Erika adulta com seu filho parece uma penitência por sua traição. A preocupação de Laura com a reação de sua comunidade a um suspeito de pedofilia revela seu arrependimento sobre a violência contra Ragnar 25 anos antes.
A autora é perfeita. Se o cerne de Uma Criança Abençoada é um crime, a autora parece não ter certeza de quem é o culpado. A narradora não aponta o dedo para ninguém. Ullmann parece até ter certo amor pelos culpados. Sim, é um livro sem compromissos morais. De quem é a culpa quando as meninas se comportam mal? Ullmann levanta a questão, mas não a responde.
Hoje acordei cedo, tomei o necessário café, coloquei comida no fogo (às vezes gosto de fazer pratos demorados nos domingos) e, no momento em que a casa toda estava cheirando a cominho, meu tempero preferido, sentei para ler o teu livro. E só levantei para o estritamente necessário, porque fiquei completamente absorta com a coleção.
Admito que não tinha começado a ler antes por receio: será que estou entrando com a expectativa muito alta? será que estou sendo (in)justa com o Milton? será que vou gostar mesmo? Bem, venho aqui solenemente declarar que fui besta e ridícula e que, como sói acontecer, meus receios se provaram todos absurdos e infundados.
O teu livro é ótimo! E não digo nem penso isso porque gosto de ti, sabes que sou uma leitora exigente e jamais faria elogios por obrigação. Os contos começam bem e, de alguma forma que ainda estou tentando entender, vão melhorando.
(Sim, é um fenômeno meio estranho até, porque não giram em torno de uma única temática nem são repetitivos, mais do mesmo. Se propõem a coisas diferentes e, ainda assim, a sensação é de que vão melhorando sempre. Que incrível!)
‘Marquinhos e Enzo, o grande’ tocou o fundo do fundo da minha sensibilidade da forma mais inesperada possível. ‘Atravessando a rua’ é uma aula de narrativa e, cabe dizer, tem um final hilariante. ‘Luciana e o hedonismo’ de uma inteligência e humor que raras vezes são executados assim, sem “forçar a barra”. Nem que falar de ‘O Violista’, que talvez seja o melhor da coleção e que poderia perfeitamente estar em qualquer coletânea que tivesse as palavras “melhores” e “contos” no título. O meu preferido, entretanto, acho que foi ‘Anita e Belle’, com essa combinação ideal de sensibilidade, realidade crua e humor.
Terminei o livro meio que já querendo reler, imaginando como os diferentes contos provavelmente vão produzir efeitos diferentes em mim nas próximas leituras.
Bem, resumo essa mensagem que já está abusivamente longa: obrigada por esse livro e, por favor, continua escrevendo.
Beijo da melhor-pior cliente da Bamboletras!
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Obs. do Milton: como vocês leram, a Karina autodenomina-se a melhor-pior cliente da Livraria Bamboletras… A expressão nasceu quando sua mãe, durante uma das muitas viagens da filha — viagens aqui não é metáfora — disse-me que eu poderia escolher os livros que ela lhe daria de aniversário. Neguei-me a fazê-lo porque a Karina lê o que quer e tem opiniões fortes. Uma vez ou outra eu imponho um livro, mas é raro. Então, sua mãe rebateu: “Bem, já que tu preferes ficar 8h com a minha filha enquanto ela escolhe os livros, vou deixar um crédito pra ela…”. Gente, ela não demora 8h, mas também não é rápida e há um ganho: ela lê muito e bem, e em vários idiomas, e sempre se aprende com ela. Às vezes ela aparece com uns pedidos bem complicados, mas é da vida, né?
As narrativas de denúncia de racismo e violência podem ter o formato que quiserem e puderem ter. Há os que argumentam aos gritos e há os que o fazem com calma e sensibilidade, ambos com razão. Sei, há que ter sangue de barata, mas eu acho muito mais potente o que é dito com voz pausada, sem desviar ou atenuar fato nenhum. Ouço e leio com muito maior profundamente assim. Melhor ainda se for escrito com arte. Tenório é assim. Seus textos não gritam, recebem o trabalho de linguagem adequado ao assunto, não são exaltados e sempre demonstram enorme riqueza de conteúdo. São, na verdade, de um virtuosismo arrebatador. A violência e o preconceito estão lá. E Tenório sabe como contá-los.
O Avesso da Pele nos envolve pela interessante história familiar e nos leva lentamente a uma tragédia. Ignoro o que há de verdade naquilo que é contado, mas sei que Tenório é professor como o pai de O Avesso, que conhece profundamente a falência educacional de nosso país — o que nos põe no fundo do poço como país –, que é negro e que mora na racista Porto Alegre.
Em capítulos curtos, indo e vindo no tempo, o narrador preenche lacunas da história de seus pais. O racismo é o que mais nos choca — ou o que mais me chocou — mas as relações familiares e a dor estão tão presentes quanto o preconceito racial. Elegantemente, como um Paulinho da Viola escritor, Tenório avança por vicinais que sempre acabam na figura paterna. O pai de Pedro, Henrique, foi morto em uma absurda e rotineira abordagem policial em Porto Alegre. É dessas coisas que “têm que acabar”, mas que não acabam nunca. Os negros podem ser abordados como suspeitos e ai dos que não se comportem com absoluto respeito, educação e subserviência. Em caso de insubmissão, a violência física e os tiros à queima-roupa são a regra. Dentro deste arcabouço, Tenório narra fatos sobre Pedro, sua mãe Martha e seu pai Henrique que devem, de alguma forma, ser conhecidos por todos os não brancos de nossa sociedade.
Ao final do livro, Pedro, ao revirar as coisas de seu pai, diz:
Acho que vocês nunca se preocuparam em organizar uma narrativa para mim. Sei que o tempo foi passando e o que foi dito por vocês, antes de minha memória, foi dito em retalhos. Então precisei juntar os pedaços e inventar uma história. (…) Para isso, não me limito ao que vocês me contaram, nem ao que estes objetos me dizem sobre você. Não acho que devemos lidar apenas com a lógica dos fatos. Prefiro uma verdade inventada, capaz de me pôr de pé. Eu sei que esta história pode estar apenas na minha cabeça, mas é ela que me salva.
Um livro autobiográfico? Provavelmente, mas antes de tudo um grande romance que recomendo fortemente.
Jeferson Tenório | Foto: Carlos Macedo / Jornal Rascunho
Tive que parar pra respirar depois dessa declaração de amor à tua filha. Quem te conhece pelo menos um pouco consegue identificar claramente as histórias autobiográficas.
Não desgrudei do livro desde que comecei. Pega a gente imediatamente e é variado, vai pra qualquer direção, escapa do que pode ser cansativo às vezes nos livros de contos, que é ficar tudo meio igual
Dá pra entender porque a editora o quis imediatamente. Meus parabéns, você realmente chegou lá .
Quando o Milton me convidou para escrever a orelha, respondi: finalmente esse livro vai sair. Caramba, Milton! Já merecia há anos!
Começa assim o texto que escrevi para a orelha do livro de contos do Milton Ribeiro. Chegou aqui em casa hoje. Todo mundo conhece o Milton. Livreiro dono da Bamboletras, jornalista, blogueiro e desde sempre escritor. Só agora publicado. Tá mais que na hora da gente poder aproveitar esses contos.
Um livro desses. Finalmente vindo a público. E o convite pra escrever a orelha. Tô feliz demais.
Milton Ribeiro, seu livro esta sendo um oásis pra mim. Minha gatinha de estimação sumiu e ler seu livro está me desligando um pouco do problema.
As histórias desse livro são boas demais. Você não tentou arrumar um final feliz. Apenas a vida como ela é. No seu caminhar, sem ter a obrigação de terminar arrumadinha. Nas histórias do livro, os personagens não tem controle sobre nada que irá acontecer em suas vidas, assim como na vida real. E traz esse choque de realidade bem diante dos olhos. Só quero agradecer, obrigada!
Um livro absolutamente hilariante! Thomas Bernhard era um mal-humorado e nem quando era laureado agia com delicadeza. Na verdade, parecia amar sincericídios, o que, se não é doença, é grave falha no trato social. O fato é que Bernhard tinha problemas com prêmios — ele os odiava, mas sempre precisava do dinheiro. Ele adorou quando alguém o chamou de “um pássaro que suja o próprio ninho”. Receber um prêmio de entidades nas quais não acreditava — como o estado austríaco, por exemplo — era para Bernhard pior do que ler uma crítica negativa, o que não raro lhe acontecia. Este livro reúne textos sobre nove prêmios que recebeu, bem como seus discursos inflamados de aceitação para três deles e sua carta de demissão para a Academia de Língua e Poesia de Darmstadt.
Aceitar os prêmios apenas pelo dinheiro, causava-lhe conflitos morais: “Sempre pensei, meu caráter revela uma grande mácula. Eu desprezava aqueles que concediam os prêmios, mas não me recusava seriamente a receber os prêmios em si”. O dinheiro aceito ajudou a pagar a casa onde morou até o fim da vida, um carro (que se espatifou num acidente dias após a compra) e tratamentos de saúde.
O livro não inclui a peça mais violenta de Bernhard contra a Áustria: seu testamento. Ele estipulou que suas peças nunca mais seriam encenadas nem seus livros publicados na Áustria — chamando o testamento de “emigração literária póstuma” — e especificou que mesmo que a Áustria fosse invadida e não fosse mais um Estado-nação, os termos de sua vontade se aplicariam às suas antigas fronteiras.
Acho que Meus prêmios não é um livro para conquistar novos leitores para o prazer peculiar de ler Bernhard. Se eu recomendasse um livro para começar a conhecer este grande autor, sugeriria Extinção, Árvores Abatidas ou O sobrinho de Wittgenstein.
O que torna Bernhard moralmente significativo é que, para todo o ódio que ele lança sobre a sociedade austríaca, reserva uma medida igual para si mesmo. Ele está totalmente ciente de si. Há uma cena em O sobrinho de Wittgenstein em que o filósofo começa a chorar por causa de uma criança que mendiga na rua. Bernhard fica igualmente horrorizado, mas só começa a chorar quando percebe que a criança enganou os dois. Essa clareza de visão tipifica sua sátira. Muito poucos escritores hoje possuem sua integridade satírica e sua humanidade absoluta.
Em Meus prêmios, temos alguns de seus discursos mais mordazes. Em particular, o discurso por ocasião da entrega do Prêmio Nacional Austríaco de Literatura. Ele começa dizendo “Ilustre senhor ministro, ilustres presentes…” e então manda chumbo grosso: “Não há nada a louvar, nada a amaldiçoar, nada a condenar, mas muito há de ridículo; tudo é ridículo quando se pensa na morte”. E depois começa a falar da sociedade austríaca. O “ilustre senhor ministro” sai furioso, quase quebrando uma porta em sua retirada apressada… O que jamais é explicado no livro é que a “tia” que o acompanha invariavelmente é na verdade sua amante, Hedwig Stavianicek, 37 anos mais velha.
A raiva de Bernhard é lendária e ele estava no caminho certo, me parece. Havia algo na Áustria, talvez haja ainda. A desnazificação do país foi lenta, apesar de ser o berço de Hitler. Até hoje a Áustria tem um governo de direita com coalizões com partidos de extrema-direita. O país é rico e uma maravilha do ponto de vista material, mas é um horror e um perigo político. Imagino o que Bernhard escreveria — ele não viveu para ver — sobre o fiasco de Jack Unterweger — um prisioneiro que supostamente “se reformou” por meio da escrita criativa, que era o queridinho dos literatos austríacos e, ao ser solto em 1990, assassinou dez mulheres… Um país assim merece um cronista raivoso.
A triste operação de encaixotar sua biblioteca na França inspirou uma das obras mais pessoais de Alberto Manguel. Este é daqueles livros deliciosos, para os quais a gente sempre terá um belo lugar em nossa memória. O que ele diz é óbvio para nós, devotos da leitura, e dá até pena de abandoná-lo após a leitura, tantos são os bons motivos e razões que ele apresenta para sermos como somos. O livro nos explica, eleva e é maravilhosamente informativo, além de demonstrar que, bem, não somos loucos.
Alberto Manguel é um daqueles argentinos geniais que não dá para desconhecer, ainda mais que foi amigo de Borges e — como Borges — também diretor da Biblioteca Nacional da Argentina. Encaixotando minha biblioteca (Cia. das Letras, 175 páginas, R$ 44,90) fala sobre a importância dos livros em nossa vida e conta como o autor se preparou para a mudança: ele sairia de sua casa medieval no Loire para morar em um apartamento em Nova York. Sua biblioteca pessoal, com cerca de 35 mil volumes, teria que ser guardada. Nesse momento, em apaixonada elegia, o escritor começa a relembrar sua relação com os livros e com as bibliotecas (públicas e privadas) que já passaram por sua vida. Suas reflexões variam amplamente, indo desde as adoráveis idiossincrasias dos bibliófilos a análises mais profundas de eventos históricos, como o incêndio da antiga Biblioteca de Alexandria.
O livro me causou alguma angústia. Desde que me separei em 2013, não vi mais meus livros. Os 3 mil livros que reuni até aquele ano estão em um guarda-móveis. É certo que nestes 8 anos, outra bela biblioteca começou a se formar e, quando li o livro de Manguel, percebi que havia pelo menos outra pessoa no mundo (snif) que entendia minha dor e angústia de separação. A obra tem o subtítulo “Uma elegia e dez digressões”. Ou seja, há muita coisa além da mudança e alguns trechos ecoaram demais em minha experiência pessoal. Depois de falar sobre a “geografia” de sua biblioteca (como ele organizou seu acervo), ele afirma que seus livros faziam parte de quem ele era e que a biblioteca o explicava. Sua coleção seria uma “espécie de autobiografia em várias camadas” e sua própria memória estaria “menos interessada em mim do que em meus livros”.
Voltando a Milton Ribeiro, digo que, ao entregar minha biblioteca para o guarda-móveis, estive em próximo contato com minha mortalidade. Manguel capta isso à perfeição: “Se toda biblioteca é autobiográfica, sua colocação em caixas numeradas parece uma espécie de obituário”. O livro traz palavras de sabedoria de sua avó: “Com o tempo, você aprende a desfrutar não o que você tem, mas o que você lembra” e, de forma semelhante, Manguel também dá a Dom Quixote — o herói que perdeu sua biblioteca — o crédito por ajudá-lo a compreender melhor a perda: “A perda ajuda você a se lembrar e a perda de uma biblioteca ajuda a lembrar quem você realmente é. A biblioteca segue existindo na mente do leitor na forma de associações e memórias”.
Espero arrumar minha biblioteca em poucos anos. Um livro que certamente estará lá é este Encaixotando minha biblioteca. Será parte de minha coleção e espero que permaneça valioso quando eu não estiver mais por perto.
Encaixotando minha biblioteca, como já disse, talvez seja a mais pessoal de Alberto Manguel. Ela se conclui com sua posse no cargo de seu admirado Jorge Luis Borges, o de diretor da Biblioteca Nacional da Argentina.
Existem leitores — grandes leitores — que não desejam formar bibliotecas e que possuem relativamente poucos livros. Borges, como lembra Manguel, seria o exemplo definitivo. Alguém poderia imaginá-lo rodeado de livros em casa, mas não era o caso. Ele doava quase tudo. Eu admiro tal despojamento, mas o quero para mim. Talvez o leitor mais sábio seja aquele que lê muitos livros (ou, melhor ainda, poucos, mas profundamente) e que não se importa em possuir nenhum, porque sabe que os verdadeiramente importantes foram incorporados ao seu ser. Talvez seja um sinal de fraqueza e até mania de colecionar livros que não necessariamente nos tornarão melhores ou mais inteligentes. Aceito totalmente essa possibilidade. Mas, foda-se, vou seguir armazenando livros.
Este livro estava no setor de Arte da Bamboletras. Acabo de transferi-lo para o de Biografias. Pois trata-se de uma muito boa e sedutora biografia de um falsário. Han van Meegeren (1889-1947) foi um habilidosíssimo artista plástico holandês que virou as costas ao modernismo. Ele amava e queria criar quadros como os da Idade de Ouro dos grandes mestres holandeses, gente como Vermeer, Rembrandt, Hals, Rubens, Ter Borch, Lievens, De Hooch, Baburen, só para citar os preferidos de van Meegeren. Ao ser desprezado pelos críticos, que queriam obras contemporâneas, ele, que conhecia todos os métodos utilizados pelos pintores seiscentistas, foi picado pela vontade de enganar os especialistas. Tudo começou com uma brincadeira do tipo “vou criar um Vermeer” para se transformar num negócio tão lucrativo que van Meegeren não sabia mais onde enfiar o dinheiro em espécie que recebia. O autor, Frank Wynne, escreve que van Meegeren “tinha talento técnico, mas nada a dizer com sua própria arte”.
Mas o falsário não era um mero copiador de quadros. No início do século XX, a reputação de Vermeer não parava de crescer, mas pouco se sabia da vida do artista e da verdadeira extensão de sua obra. A história, assim como a natureza, tem horror ao vácuo. Apenas 35 de suas obras chegaram a nós e há uma enorme disparidade entre as primeiras obras do mestre e os trabalhos maduros. Faltam as pinturas intermediárias, aquelas que fazem a ligação, unindo a fase inicial e a final. E foi neste vazio que van Meegeren entrou. Ele tratou de encontrar tais quadros, ou melhor, de criá-los. Quem os apresentava eram sempre laranjas, “representantes de uma decaída família holandesa que encontrou um tesouro em seu sótão, olha só”, etc. Vocês podem imaginar o valor que estas descobertas tiveram, não?
E Meegeren comprou propriedades e castelos, até os tubos de calefação tinham notas de dinheiro. Ficou milionário. Mesmo com a qualidade da sua produção decaindo literalmente a olhos vistos, ninguém notava as imposturas. Ele chegou a vender obras para nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
O livro é sensacional. Depois que a guerra acabou, o holandês ficou numa situação difícil e foi preso. Ou tinha realmente vendido quadros para os nazistas (crime gravíssimo), ou confessava a falsificação e se assumia como escroque. Acabou confessando — sua confissão foi comemorada na Holanda em razão dos quadros vendidos serem falsos –, mas daí precisou convencer os próprios críticos, que pouco antes tinham saudado e autenticado com convicção os Vermeers redescobertos, de seus equívocos e de sua incompetência…
Afinal, em 1940, os os especialistas e os jornais chamavam de descoberta sensacional a soberba Ceia em Emaús, obra da fase intermediária de Vermeer que saíra dos pincéis de van Meegeren… Natural, portanto, que a história desse holandês bon-vivant e viciado em morfina tenha virado um problema também para a crítica. O caso van Meegeren desestabilizou a autoridade dos especialistas e que ameaçou o rico mundo dos leilões e dos mercados de arte. O caso é saboroso.
Ao final do livro, sabemos até onde estão os ex-Vermeer e os verdadeiros.
Excelente diversão. Recomendo!
Um show: a fim de comprovar suas habilidades, van Meegeren, em 1945, criou publicamente um Vermeer para a polícia conferir e as imprensa gravar.