Hífen, de Patrícia Portela

Eu gostei muitíssimo deste livro recém lançado pela Dublinense e que está disponível na melhor das livrarias, a Bamboletras.

Hífen é um romance muito conectado com o que vivemos agora. É sobre uma epidemia, sobre maternidade, sobre deportados, sobre tecnologia. É também uma distopia, mas não é aquela distopia que desconsidera aspectos psicológicos e humanos para se apoiar apenas em tecnologia, autoridade e opressão. Não, é uma distopia a ser espreitada aos poucos, através dos depoimentos pessoais de suas narradoras e, mesmo que uma delas seja uma androide, tudo está encharcado em humanidade.

De um modo geral, há quatro classes de capítulos. Os escritos por Ofélia, uma mãe imigrante numa Europa que não tem espaço para ela; os por Maria do Carmo, uma enfermeira androide que deseja ser imperfeita e humana; e há também as notícias de jornal e as receitas gastronômicas.

A ação se passa em Flândia, uma espécie de sucedâneo da Europa. Seus habitantes são os flans, pessoas que sofrem de solidão crônica, usam óculos (como eu) e são daltônicos (como eu). A região ”não é bem um país, nem um Estado, e seu prato mais tradicional é o Pudim Flan”. Fora de Flândia há outro país muito mais pobre, Olival, cujos habitantes querem entrar em Flan e que às vezes são deportados.

Acontece que as crianças da Flândia, naquela idade em que recém foram alfabetizadas, entre os 8 e os 12 anos, começam súbita e estranhamente a dormir. Todas elas caem numa espécie de coma, como o descrito nesta notícia real, só que as de Flândia caem num sono sem fim.

A princípio, o formato fragmentário esconde a seriedade do romance. São reflexões sobre o mundo e divagações aparentemente casuais mas que acabam por revelar uma, duas ou três histórias trágicas. A certa altura, a androide Maria do Carmo escreve que “… uma história linear é apenas um tabefe muito eficaz num mar de possibilidades que cada segundo de uma vida orgânica pode oferecer”.

A principal personagem humana chama-se Ofélia, mãe de uma menina identificada como Z. A outra é Maria do Carmo, a androide que deseja ser humana e até a escrever manualmente. É um livro triste que não aponta saídas — não é para isso que os romances existem, certo? –, mas não é catastrófico. É antes de tudo poético. Os textos de Ofélia para sua filha são belíssimos, assim como os de Maria do Carmo sobre o humano.

E o hífen? O hífen é uma conexão. O que junta duas coisas para muitas vezes formarem não uma soma, mas outra coisa. Como um guarda-chuva, um arco-íris, a boa-fé, uma segunda-feira, uma mesa-redonda. Pode ser como uma flor que é comida por um animal que depois morre e se desintegra para deixar germinar a semente que carrega em outro lugar. Pode ser a conexão entre leitor e autor. Como escreve Ofélia: “Ler é o hífen entre o leitor e o autor, o que nos permite compreender o que estamos a ler. Entre a novidade que lemos e o que já sabemos”.

RECOMENDO MUITO.

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