Às vezes, esqueço dos Beatles. Na semana passada, durante uma divertida reunião na cama com crianças, pipocas, refris e algumas discussões, resolvi recuperar uma velha fita de vídeo com o documentário de 5 horas que acompanhou o lançamento do Beatles Anthology. Este documentário, datado de meados dos anos 90, foi calando-nos um a um. Ficamos inteiramente concentrados nele. Eu, ouvinte quase exclusivo de música erudita; Bernardo, meu filho, que está quase sempre ouvindo rock um pouco mais pesado e Bárbara, minha filha, que prefere música dançável e de diversão (ao estilo do B-52, por exemplo), assistimos a tudo fascinados. A explosão de juventude, alegria e criatividade representada por eles afeta qualquer um.
Abro o enorme livro The Beatles (da Revista Rolling Stone) que dei para o Bernardo e leio atentamente a introdução. Quem a escreve é Leonard Bernstein (1918-1990). Bernstein é uma figura única, pois além de ter sido respeitadíssimo regente de orquestra, foi pianista e um enorme compositor de música erudita. Como se não bastasse, escreveu musicais para a Broadway, sendo de sua autoria talvez o melhor deles, West Side Story, que recebeu no Brasil a impecável tradução Amor, Sublime Amor. Obviamente, é uma matéria paga, mas Bernstein era muito “inteiro” para colocar-se a serviço de algo que considerasse de segunda linha. Seu texto é apaixonado e demonstra algumas preferências curiosas. Diz que, em sua opinião, a melhor música do disco Revolver é She said, she said. Elogia também Eleanor Rigby (Revolver), Norwergian wood (Rubber Soul), Paperback writer (Single), She´s leaving home (Sgt. Pepper`s), Ticket to ride (Help) e quase todo o resto.
Também tenho as minhas. Considero obras primas While my guitar gently weeps, With a little help from my friends, For no one, In my life, I Will Follow the Sun, Helter skelter, Strawberry fields forever, The fool on the hill e mais cinqüenta outras.
Meu entusiasmo, portanto, é o mesmo. Os Beatles foram um grupo diferente. Normalmente os grupos abrigam apenas um bom compositor. Podemos tranquilamente dizer que o Led Zeppelin representaria “A música de Jimmy Page”, enquanto o Oasis seria “A música de Noel Gallagher”, o Who “A música de Pete Townshend”, o último Pink Floyd “A música de Roger Waters”, etc. Já os Beatles têm três músicos que poderiam fundar grupos. E que músicos! A coincidência de John Lennon, Paul McCartney e George Harrison terem nascido quase ao mesmo tempo em Liverpool e se tornado amigos na adolescência é notável e, penso, matematicamente irrepetível. É como se – guardadas as proporções para maior ou para menor — Chico Buarque, Caetano Veloso e Guinga resolvessem trabalhar juntos desde a juventude, competindo e brigando dentro de um grupo. E, se acrescentarmos a isto a presença do produtor, arranjador e pianista George Martin desde as primeiras gravações, chegaremos à conclusão de que os caras tinham muita sorte mesmo. E, para nossa sorte, todo o resultado está minuciosamente documentado – som e imagens -, como mostra o filme Beatles Anthology.
É uma escolha que pode variar. Meus discos preferidos dos Beatles são Rubber Soul, O Álbum Branco e Abbey Road, mas Revolver é, sem dúvida, o mais importante do ponto de vista da história do rock. Eu tinha 9 anos e lembro que minha irmã tinha comprado Rubber Soul e que pegara Revolver emprestado de uma amiga. Ambos eram objeto de culto absoluto em minha casa, na Av. João Pessoa, em Porto Alegre. Ignoro como não furaram, de tanto que ouvimos.
Revolver é um divisor de águas na história dos Beatles e do rock. A partir dele, o grupo deixou de se apresentar em público porque as canções não poderiam ser reproduzidas no palco, uma aparente necessidade da época. Era um álbum criado em um estúdio muito bem equipado, com recursos que poderiam ser buscados onde estivessem e o grupo — para nossa sorte — passou a ser escravo da casa de Abbey Road onde gravava, tanto que só fez mais uma apresentação pública até sua dissolução. As gravações envolveram fitas tocadas de trás para diante — como no solo de guitarra de Tomorrow never knows, arrancado de Taxman — orquestra, quarteto de cordas, o extraordinário trompista Alan Civil, etc. Para Revolver, os Beatles alteraram totalmente a forma de compor e George Martin foi atrás. Eu disse atrás, não na frente. Muito da inovação sonora e de estilo das músicas do álbum deve-se ao engenheiro de som Geoff Emerick. Foi dele a ideia de aproximar os microfones aos instrumentos e amplificadores, em especial, à bateria de Ringo, o que produziu um som mais pesado e impactante. A EMI detestou a novidade. A direção da gravadora se reuniu com os músicos, querendo vetar o novo estilo, mais agressivo, porém Paul, falando em nome do grupo, deu um ultimato aos executivos: “De agora em diante, esse é o nosso som. Ou será assim ou simplesmente não será”.
O ecletismo tornou-se uma marca do rock. Vejam o que foi feito depois de Revolver e o que tínhamos antes. O LP lançado na Inglaterra em 5 de agosto de 1966, abriu muitas portas. As letras abandonam o garoto-encontra-garota e falam de impostos, de vidas desperdiçadas, do vazio diário, do sono, da tristeza dos finais das relações e de um certo e altamente lisérgico submarino amarelo. Os arranjos ganharam inédita complexidade, mostrando quem era George Martin, um irreverente erudito.
Como se não bastasse, o álbum mostra a cara de cada um. George ganhou espaço. Colocou três composições suas das quatorze do disco. É sua a obra-prima chamada I want to tell you, canção sobre a frustração de querer dizer algo e não conseguir. Taxman é uma crítica aos impostos cobrados e Love you too traz pela primeira vez as cítaras para o rock. Ele estava cada vez mais envolvido com a cultura indiana e Ravi Shankar. E todos estavam mergulhados nas drogas.
Lennon torna-se o irônico que foi até a morte. Em Tomorrow never knows, exige que sua voz soe como a do dalai lama cantando na montanha, seja lá isso o que for. É uma viagem drogadíssima de três minutos. George Martin que se virasse. Em Tomorrow há as fitas tocadas de trás para diante, oboés dando risadas, uma bateria violentíssima — Ringo parecia alucinado — e uma letra sensacional. E o que dizer das deliciosas Dr. Robert e She said she said? A primeira era uma alusão ao fornecedor de drogas do grupo, ali chamado de doutor Robert. E diz:
Ring my friend, I said you call Doctor Robert Day or night he’ll be there any time at all, Doctor Robert Doctor Robert, you’re a new and better man He helps you to understand He does everything he can, Doctor Robert
(…)
Well, well, well, you’re feeling fine Well, well, well, he’ll make you… Doctor Robert
Ainda de John, há I´m only sleeping, que fala sobre como John amava dormir e odiava ter seu sono interrompido. O arranjo é bastante onírico com a voz de John sendo sutilmente distorcida por um gravador em velocidade pouca coisa mais alta que a correta.
Mas as canções de Paul talvez sejam o ponto alto de Revolver. Eleanor Rigby é um clássico sobre a solidão. O arranjo para cordas de Martin é uma pérola irrepetível. “Onde estão os outros Beatles nesta música?” — perguntava a criança que eu era na época. “Onde ficaram as guitarras de John e George?” For no one é, em minha opinião, uma das melhores canções já compostas. De repente, surge a trompa de Alan Civil para dar ornamento fundamental a uma melodia lindíssima. Há também a canção favorita de McCartney, Here there and everywhere, e a inacreditável soul music by Paul de Got to get you into my life que nos faz perguntar novamente onde diabo estão os Beatles, pois o acompanhamento é quase só de metais.
Yellow Submarine, escrita por Paul e cantada por Ringo, tem em sua letra um tema infantil que depois seria aproveitado para dar título a um desenho animado. Traz sons de bolhas, barulho de água e outros sons gravados em estúdio. A letra sugere mais drogas, não? “Vamos vivendo uma bela vida / Achamos para tudo uma saída / Céu azul, mar verde e belo / Em nosso submarino amarelo”.
Revolver foi uma viagem sem volta na estética do grupo. Ouçam outros discos de 66 e a maioria parecerá vir de um passado remoto se comparados com este LP.
Mas por que Revolver? As sugestões eram as seguintes: Many years from now, Magic circles, Beatles on safari, Four sides of the eternal triangle, Pendulum e After Geography, uma brincadeira de Ringo com Aftermath, álbum dos Rolling Stones. Mas Revolver venceu porque se referia tanto à arma quanto ao movimento de revolução de um disco de vinil no prato giratório de um toca-discos.
Se você nunca ouviu Revolver, sua vida não mudará em nada, mas ele foi uma pedra fundamental para o rock para chegar à época de ouro setentista. Sem este degrau, tudo seria menor.
Relação de canções de Revolver.
Taxman (Harrison) 2:39
Eleanor Rigby (McCartney) 2:07
I’m Only Sleeping (Lennon) 3:01
Love You To (Harrison) 3:01
Here, There and Everywhere (McCartney)2:25
Yellow Submarine (McCartney)2:40
She Said She Said (Lennon) 2:37
Good Day Sunshine (McCartney)2:09
And Your Bird Can Sing (Lennon) 2:01
For No One (McCartney) 2:01
Doctor Robert (Lennon) 2:15
I Want to Tell You (Harrison) 2:29
Got to Get You into My Life (McCartney)2:30
Tomorrow Never Knows (Lennon) 2:57