Este blog participa hoje pela segunda vez da Tertúlia Virtual de cada dia 15, criada pelo grande Eduardo Lunardelli do Varal de Idéias e que propõe este mês o tema Solidariedade.
Uma vez, o Mauro Castro, do Taxitramas, publicou uma crônica chamada Confessando o Preconceito em sua coluna no Diário Gaúcho. Como sempre, ela também foi publicada também em seu blog. Sua leitura fez com que um caso análogo, ocorrido comigo na pior das circunstâncias, me viesse à memória.
A seguir, conto o meu caso e, logo depois, copio a crônica original. O Mauro é meu amigo e uma pessoa conhecida e querida de Porto Alegre.
Confessando o preconceito II
Eu estava no velório de meu pai, em pleno 11 de dezembro de 1993, o dia mais triste que passei até hoje. Na noite do dia anterior, encontrara-me casualmente com meu pai no supermercado. Eu sempre fingia esbarrar nele ou ele em mim, pelas costas; era apenas um dos muitos rituais que mantínhamos. Depois do choque, ele riu e me mostrou um monte de CDs que tinha recém comprado. Estava alegre, bem.
Às 6h da manhã, o telefone toca. Minha mãe diz que ele está caído no banheiro, que era para eu vir correndo, que fizera respiração boca a boca e que a Unimed e minha irmã, que é médica, estavam chegando. Nada resolveu. Ele estava perfeitamente reto no chão, pois não na verdade não caíra, devia ter-se deitado esperando que a dor diminuísse. O primeiro e fulminante enfarto.
Durante o velório, pouco antes de ser levado no caixão, fui me despedir dele. Dei-lhe um beijo. Era um sábado quente, mas ele estava estranhamente frio; só naquele momento concluí que ele não lembrava mais de mim, que não tinha mais suas vivências de 66 anos e nem as de ninguém, que tudo tinha terminado para ele. Fui chorar junto à minha família quando ouvi um amigo dizer indignado, referindo-se a algo que acontecia atrás de mim:
– Mas o que é isso?
Virei-me e, entre lágrimas, vi um mendigo todo esfarrapado caminhando em direção a meu pai. Pensei “que merda, ainda isso agora!”.
Fui para junto do caixão pelo outro lado, encarando de forma hostil o homem sujo de uns 40 anos, calculo. Não disse nada, mas ouvi:
– Eu era amigo do doutor. Ele sempre brincava comigo e me dava alguma coisa na rua – disse ele, gentil e comovido, olhando-me nos olhos.
Não havia nada melhor a fazer do que articular algumas palavras agradáveis, convidando-o a ficar à vontade.
Confessando o preconceito, por Mauro Castro
Eu estava no ponto, com o banco do táxi reclinado, quando, entre um cochilo e outro, vi um mendigo vindo em minha direção. Ele vinha acompanhado de um cachorro, e trazia nos lábios aquele sorriso preparado que todo o pedinte usa ao fazer uma abordagem. Mais um que vai me pedir uma moeda para interar o dinheiro da cachaça – pensei.
Sentindo que seria achacado, ainda tentei fingir que estava dormindo, mas o mendigo, decidido, bateu no vidro do táxi, obrigando-me a abrir a janela.
Quando eu pensei em abrir a boca para dizer que não tinha nenhum trocado para dar, o homem falou:
– Acho que não sou o primeiro nem serei o último a lhe pedir isso…- e fez uma pausa, como quem procura na cabeça as palavras certas.
Eu ainda pensei em aproveitar aquela pequena pausa para poupar-lhe o discurso, mas quando comecei a balançar a cabeça negativamente ele continuou:
-…mas o senhor poderia me dar um autógrafo?
Barbaridade, por essa eu não esperava! De imediato improvisei um sorriso, na tentativa de disfarçar minha cara de abobado. Acho até que consegui. Bem feito pra mim, eu que sempre reclamo do preconceito que o taxista sofre, acabei tomando nos dedos.
No papo que se seguiu, descobri que meu insólito fã é leitor eventual do Diário Gaúcho, que ele cata no lixo reciclável. Disse que minha coluna é a sua preferida.
Para não ficar muito feio, dei-lhe um exemplar do meu livro, com uma caprichada dedicatória. E escrevi esta confissão, digo, crônica, que talvez ele leia no lixo da semana que vem.
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