Três grandes amigos: Luís Frederico Antunes, Fernando Monteiro e Marcelo Backes

1. Estou obtendo minha cidadania portuguesa. É um processo que parece fácil quando lido no papel, mas que se complica numa burocracia inteiramente diferente da nossa. Todos os documentos têm prazo de validade, todos têm de ser reemitidos, inclusive a certidão do nascimento de meu avô, ocorrido no ano de 1900, e o óbito de meu pai. É como se fatos novos pudessem alterar seus conteúdos. A parte chata é esta, a da fria papelada. A parte interessante é a comprovação dos vínculos com Portugal. Valem quaisquer comprovações lusófonas, desde fotografias tiradas em Portugal, associações a entidades portuguesas, interesses sobre a cultura e até depoimentos abonatórios de portugueses. Mostrei as minhas, que penso serem suficientes. Para tanto, é necessário escrever uma carta de próprio punho ao Ministro da Justiça português. Agreguei à minhas justificativas algumas curiosidades, como a árvore genealógica que gerou este desfrutável rebento, o notável e infelizmente falecido blog Cidades Crónicas, do qual fui prefeito por uma época, e o esplêndido depoimento abonatório do professor e doutor em História Luís Frederico Antunes. Conheci-o através da Internet. Fizemos uma bela amizade por e-mail logo após a vitória do Inter no Campeonato Mundial Interclubes sobre o Barcelona. A rede é maravilhosa para se fazer amizades em que os laços advém não da proximidade física, mas das afinidades e das eleições pessoais e ideológicas. Pedi então ao amigo — que antes já me conseguira a certidão de nascimento do meu avô por duas vezes! — que dissesse que não sou Hannibal Lecter, que sou apenas um bom e real português com quatro gerações de ascendentes nas proximidades de Aveiro e de seus ovos moles. A carta abonatória é uma obra de arte.

A quem possa interessar

Atesto por minha honra que Milton Ribeiro, brasileiro de nascimento, é de origem genética e cultural profundamente português. Na realidade, fui o signatário responsável pela pesquisa efectuada no Arquivo Distrital de Aveiro sobre as raizes familiares de Milton. Lembro-me que o seu avô Manuel Martins Ribeiro nasceu em 21 de Fevereiro de 1900, na aldeia do Pinheiro, freguesia de S. João de Loure, do concelho de Albergaria a Velha, distrito de Aveiro.

Mais, ele era sapateiro de profissão e os seus pais (logo bisavós de Milton) eram igualmente gente da terra lusitana. Declaro que sou leitor assíduo do seu caderno digital ( http://opensadorselvagem.org/blog/miltonribeiro ). Os artigos e opiniões aí editados comprovam na perfeição que Milton domina com esmero a língua de Camões e que tem ideias – o que é agradável -, especialmente quando, o que é o caso, são interessantes. Este facto reputo de muito importante na medida em que, nos dias que correm, já vai sendo raro, mesmo para os nados em Portugal.

Finalmente, o facto que melhor indica a sua origem portuguesa é ter um coração vermelho, adepto do glorioso SPORT LISBOA E BENFICA. Aqui, por terras lusas, se diz que quem não é do Benfica não é nem bom chefe de família, nem bom português.

Por tudo isso, EU POSSO ATESTAR QUE MILTON RIBEIRO PREENCHE TODOS OS REQUISITOS PARA SER UM BOM CIDADÃO PORTUGUÊS.

Luís Frederico Dias Antunes
Natural em 1954, em Goa, (antigo Estado da Índia).
Bilhete de Identidade emitido pelo Arquivo de Lisboa xxxxx63
Sócio cativo do Glorioso 39286

Luís, muito obrigado. Novamente.

2. Leiam que bela crônica Fernando Monteiro publicou no último sábado, no JORNAL DO COMMERCIO. Ele estará hospedado em minha casa no início de novembro. Se bem lembro, vem aqui entre os dias 3 e 8 de novembro para a Feira do livro. No dia 7, palestrará na Feira sobre o tema QUEM MATOU O LEITOR?, segundo ele uma espécie de palestra policial. Fernando é outro amigo que nunca vi e que chegou através da rede. Este ateu jura que adora a Internet.

Lembrança de Antonioni

Li, recentemente, o autobiográfico Comincio a capire – de um dos autênticos gênios do cinema, o italiano (de Ferrara) Michelangelo Antonioni. O título do livro revela bem a surpreendente modéstia do artista que achava que “o passado e a vida estavam por se fazer mais entendidos (por ele) somente na velhice”.

Num ano já longínquo, visitei Ferrara – e não me lembro de ter feito associações da cidade senão com a literatura. Para mim, em 1969, Ferrara e suas fumaças se mapeavam, na moderna cultura italiana, muito mais pela família Finzi-Contini – do romance de Bassani – do que pela certidão de nascimento do autor de Blow-up.

Isso foi há quase 40 anos. Teria sido uma boa oportunidade para tentar ver Ferrara com os olhos do grande diretor… mas os meus – e outros olhos inquietos, no pós 68 – estavam então “enevoados”, à sua maneira, pela arrogância da juventude que nunca quer ver nada pelos olhos alheios. Terminada a leitura da autobiografia, tentei rever a imagem do diretor naquela Roma da primavera de 1970: ágil e elegante, aos 58 anos, num restaurante francês da Via Mangili, muito longe da sua cidade e morada agora definitiva.

O restaurante era francês porque G. o escolhera para a nossa piccola extravagância. Minha colega de turma no Centro Sperimentale era filha de um romano e de uma francesa de Montpellier. No final do almoço no La Piscine, a nossa atenção se distraía com a mesa logo ao lado, onde havíamos assistido o diretor Michelangelo Antonioni ser o tempo todo servido com grande solicitude (extensiva às duas senhoras que o acompanhavam e que riam mais do que a minha lisa paciência podia suportar).

O que querem? Era 1970, eu tinha 21 anos – e a minha geração tinha raiva de tudo. Hoje, a pasmaceira não permite que se compreenda jovens como nós fomos, no Rio, no Recife ou em Roma.

O cineasta parecia um homem calmo, sereno. Apenas esboçava um sorriso quando as mulheres riam, talvez mais atento ao jogo da luz enviesada iluminando trutas e outras iguarias nos pratos. “Todos comem pouco quando fumam” – dizia a minha amiga. “Por isso é que ele é tão magro?”

Na dúvida – e antes de pagarmos a conta bem examinada – G. se levantou e, com o largo menu na mão, se dirigiu a Antonioni, para… pedir um autógrafo?! Não acreditei nos meus olhos enevoados, ou não, pelo monte de liras gastas (e não com trutas delicadas). Fiquei “na minha”, mal acompanhando, pelo canto do olho, a acolhida por parte de Michelangelo, o meio sorriso mais uma vez esboçado e o rápido sacar de uma caneta muito grossa – uma espécie de “pincel atômico” – retirada do bolso a fim de assinar, com segurança, na carta do La Piscine. Quando G. voltou, eu perguntei porque lhe interessava o autógrafo daquele “solene amontoador de caixas vazias” (usando de uma definição meio invejosa que nem sequer era minha, mas de Orson Welles, que só admitia o gênio próprio). Ela sabia tanto da minha admiração pelo diretor de Cidadão Kane (e por Godard e Straub), quanto da minha antipatia, naqueles anos, pelo “cineasta da incomunicabilidade”. Talvez porque esse tema me parecesse um luxo no mínimo dispensável, debaixo das botas de 64.

Com o autógrafo de vinte centímetros (e “quilométrica vaidade”, denunciei) na mão, a minha amiga apenas sorriu – ainda mais serenamente do que o Signore que acenaria de volta, para ela, ao sairmos… jovens e imortais na primavera romana.

Faz muito tempo. Eu mudei. E o mundo também mudou, entre cores e cinzas, filmes memoráveis e discursos sinceros sobre a transformação – ainda possível – dos mundos que portamos todos, incomunicáveis.

Eu, pouca coisa mais moço que Fernando, também custei a ser dobrado por Antonioni.

3. Adriana Falcão não tem culpa de nada. Ela enfrentou Marcelo Backes no Jogo 6 da Copa de Literatura Brasileira. Numa boa, levou um vareio. E eu, ocupadíssimo em toda semana passada, também. Marcelo esteve — de quarta-feira à sábado — com a Nina em Porto Alegre e eu os perdi. Mau amigo, liguei para ele só às 15h de sábado, quando o casal já estava mais para avião de volta do que para nós enquanto bar. Lamentável, ainda mais que Marcelo mandou dois e-mails com todos seus telefones, direções e saudades. Todas perderam a validade, menos o número do celular e as saudades, que ficou em mim recrudescida depois de conversamos, alemão. Merda de vida.

Voltando à Copa, Marcelo já está nas semifinais, pois enfrenta o apenas simpático Na multidão, de Luiz Alfredo Garcia-Roza. Dedicamos todo o respeito a nosso adversário teoricamente mais fraco e acreditamos que ele VIRÁ BEM ARMADO. Apesar disso, sabemos da obrigação de ganhar os três pontos para deixar satisfeita a grande massa torcedora aqui presente.

Não conheci o Marcelo Backes através da Internet, mas de um memorável churrasco.

12 comments / Add your comment below

  1. Eis um português bem humorado! A maioria deles é muuuuuito séria e sisuda. A carta futebolístico-abonatória é o máximo. Senti duplo sentido naquele “coração vermelho”, estou certa?

    Ah, como nós e o mundo mudamos, FMonteiro. Apesar de ter 22 anos, adoro textos nostálgicos, ainda mais com meu querido Michelangelo de Blow-up, Zabriskie, A Noite e aquele com o Nicholson.

    Não conheço Backes, mas vc fala tanto nele que acho que vou atrás do maisquememória (em minúsculas, correto?)

    Bjs e já pra facu!

  2. Meu caro, quanto a mim, a minha paixão por Antonioni começou exatamente no dia 3 de outubro de 1962, quando, aos 19 anos, vi pela primeira vez “A aventura”, em Recife. Terra de Fernando Monteiro, que não conheço pessoalmente. Um abraço.

  3. Puxa, esse post foi mais comprido que meu café a manhã!
    Então tu és português?! Então é isso!
    refiro-me ao gosto pelo vinho…
    Olha, em 2006 estive em Lisboa num simpósio sobre nomes em contextos lusofônicos, depois saiu um livro em que participo com um artigo que é uma capítulo da minha tese (sobre o sistema de nominação dos descendentes dos açorianos aqui). Queres, te dou uma carta dizendo que teu nome é genuninamente português! Hehe! Eu, por exemplo descobri que o meu sobrenome é a coisa mais chinelona para um português!
    Milton, teu registro do encontro com Antonioni é lindo! – menos pelo encontro com o gênio do que pelo estar no mundo jovem que ele recupera, graças ao teu sensível e humilde distanciamento. Vc é vaidoso, meu amigo, mas aciona a humildade na hora certa: a que faz uma memória virar literatura!
    Ah, quando eu for para Porto Alegre (nunca fiquei tanto tempo sem ir) vou te dar coordenadas desencontradas prá ver se tu escreve um negócio meloso assim para mim! Muito bonita tb a expressão do teu carinho com teu amigo!
    Enfim, acordei meio descornada e teu post abduziu minha sensibilidade “para o bem”. (eu acho! mas sempre pode aparecer alguém que entenda que no fundo estou é apoiando a Yeda Crusius!)
    Beijo, bom dia e boa semana, Flávia

  4. Clarissa, há quanto tempo!

    Moacy, foi em 3 de outubro de 1962, certo? Não foi no dia 2 nem no dia 4, foi no terceiro dia de outubro! E de 1962! Nossa que exatidão. Pois eu achava o MA muito pouco politizado para meu gosto. Pura burrice, pois ele estava inteiramente dentro do Humano. Há algo mais político?

    Pô, Flávia, se eu soubesse da tua tese… Mas que pena que não te pedi uma carta de abono! Bom, não és portuguesa e disseste que teu nome é bem chinelão. Deixa assim. Mas sabes da importância que tiveste nesse processo. Aquele carimbo vindo de Santa Catarina foi PROCURADO NA HORA em que entreguei o papel.

    Flávia, me deixe te procurando na Feira do Livro! Aquilo está pior que um labirinto! Por falar nisso, um dia vou voltar a falar na importância que tem a Feira para um recém descasado.

    Beijos.

  5. Milton, você não aprovou meu segundo comentário no post sobre as 100 obras lá da Bravo? Um comentário em que eu indicava textos de um outro blog.

  6. Falstaff.

    Comentários com mais de um link vão para uma fila de spam, a qual normalmente deleto sem olhar. Recebo 30 propostas diárias para aumentar meu pau e não costumo lê-las uma a uma…

    Desculpe, mas poderias reescrever o comentário?

    Avise-me AQUI se o fizer, pois então vou lá e resgato.

    Peço desculpas, novamente.

  7. Ah, Milton, fale da importância da feira do livro pros descasados, pra infância da gente, pra juventude, para a sociabilidade universitária, o que mais? Pra saudade dos portoalegrenses desterrados. Para uma “identidade social deteriorada”. Enfim, para um sentimento de pertencimento ou de uma primavera da vida, um tapete roxo de flores de jacarandá e a sensação indizível de estar perto de Quintana.
    Melhor eu continuar não conseguindo nunca ir a Porto Alegre em Novembro! Fico assim com minha feira primaveril inteiramente ao ar livre e ao sabor da memória (e a impressão de que, se eu for, ainda vou me sentar ao lado Dele e ficar criando a coragem que nunca veio de conversar enfim com ele).
    beijos, Flávia (Ah, já disse, bom saber que pude ajudar com a coisa da cidadania A coisa do nome é só mais um dos meus assuntos preferidos)

  8. adepto do glorioso SPORT LISBOA E BENFICA??????????????????????????????
    mas Homem, podia ter começado logo por aí que tinha poupado um monte de tempo!

    e quem é que disse que os portugueses são sisudos? são povo mui alegre e simpatico, ora essa!

  9. Milton, feliz coincidência a da publicação do teu texto acima e este com a publicação que fiz das 2 palestras que tiveram a inteligente (mais uma coincidência com teus textos) participação de Marcelo Backes, aqui em Porto Alegre, na sexta e sábado passados.

  10. Parabéns pelo blog !

    Colaboro num blog sobre Albergaria-a-Velha (AAV) e gostaria de saber se tem alguma estória interessante relacionada com o seu avô ou sobre a ligação dos seus familiares (ou de outros brasileiros) a S. João de Loure ou AAV (ou foto antiga do seu avô ou do concelho de Albergaria-a-Velha)

    Melhores Cumprimentos,

    M.Cruz

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