Seis filmes clássicos que completaram 50 anos em 2016

Seis filmes clássicos que completaram 50 anos em 2016

Introdução, tradução e compilação do blogueiro

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O ano de 1966 foi extraordinário para o cinema mundial. Não houve grande movimentação no Brasil, mas a cena internacional viu surgir uma série de clássicos. Enquanto os EUA mantinham 250 mil soldados lutando no Vietname, enquanto a China dava início à Revolução Cultural, enquanto o Brasil fazia fiasco na Copa e via ocorrer uma eleição indireta para presidente, Ingmar Bergman, Michelangelo Antonioni, Sergio Leone e Andrei Tarkovsky faziam uma revolução na linguagem cinematográfica.

Os seis filmes que escolhemos revelam nosso gosto. Poderíamos ter colocados outros de Godard — que produziu dois naquele ano febril –, Polanski, Rivette, Zinnemann, Nichols, etc. Foi um ano riquíssimo.

Os textos que escolhemos sobre cada filme foram encontrados na rede. Fizemos resumos e, ao lado dos títulos dos filmes, deixamos disponíveis os links para eles.

1. Andrei Rublev, de Andrei Tarkovsky — The Guardian

Espectadores e críticos sempre têm os seus filmes favoritos, mas alguns destes alcançam por unanimidade o status de obra-prima, como se houvesse um acordo. É o caso de Andrei Rublev. Vê-lo é uma tarefa que requer investimento de tempo. Ele tem 205 minutos de duração em sua versão mais completa, é falado em russo e é em preto e branco. Poucos personagens são claramente identificados, pouco acontece e o que acontece não está necessariamente em ordem cronológica. Seu tema é um pintor de ícones do século XV e herói nacional, mas você não vai vê-lo pintar e nem ele fará nada de heroico. Em muitos dos episódios do filme ele não está presente e, nos últimos, ele faz um voto de silêncio. Não é um filme que precisa ser longamente pensado ou até mesmo compreendido. É para ser experimentado e admirado. Um filme de poeta.

Desde a primeira cena, quando seguimos o voo de um balão rudimentar de ar quente, ficamos confusos e espantados como o próprio Rublev. Nas três horas seguintes, estaremos na lama e no caos da Rússia medieval, convivendo com ataques tártaros, rituais pagãos bizarros, fome, tortura e sofrimento físico. E experimentaremos tal vida de forma peculiarmente intensa.

Com Andrei Rublev, Tarkovsky estava conscientemente elaborando uma linguagem que não devia nada à literatura e é uma pena que tão poucos o tenham seguido. Em uma atmosfera de sonho, Andrei Rublev opera dentro de uma compreensão diferente de tempo e de história. Faz perguntas sobre a relação entre o artista, sua sociedade e suas crenças espirituais e não pretende responder a elas. “No cinema não é necessário explicar, mas estar de acordo com os sentimentos do espectador. Esta emoção é o que provocará o pensamento”, escreveu Tarkovsky.

O filme foi finalizado em 1966 e imediatamente proibido. Foi liberado para o Festival de Cannes de 1969, após Tarkovsky ter declarado que se mataria se não fosse apresentado.

2. A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo — Opera Mundi

O ex-assessor norte-americano para assuntos de Segurança Nacional e pensador influente da política externa dos EUA, Zbigniew Brzezinski, afirmou em 2005 que, se quiséssemos realmente entender o que estava acontecendo no Iraque, deveríamos assistir ao filme A Batalha de Argel. O recado se fez ouvir nos corredores do Pentágono, onde a exibição do filme contou com uma audiência de aproximadamente quarenta oficiais, que foram estimulados a avaliar e a debater os assuntos centrais do filme, como as vantagens e os custos de se recorrer à tortura e a outras formas de intimidação para desvendar os planos de um inimigo que se camufla na multidão.

Os convidados receberam o convite com o seguinte comunicado: “Como ganhar uma batalha contra o terrorismo e perder a guerra das ideias. As crianças alvejam os soldados, mulheres plantam bombas em bares e, gradualmente, a população inteira protesta fervorosamente. Soa familiar? Os franceses têm um plano. Prosperam taticamente, mas fracassam estrategicamente. Venha assistir a exibição desse filme e saiba o porquê” (Kaufman, 2003).

Produzido em 1965, no contexto das guerras de libertação na África, a temática da insurgência urbana e a violência perpetrada pelos insurgentes e torturadores é abordada de tal forma que faz com que o filme seja sempre atual, pois poderíamos ainda utilizá-lo para compreender a presente intervenção francesa no Mali, as revoltas árabes e os  conflitos na Palestina, no Afeganistão, no Sudão e outros tantos do mesmo tipo. Filmado em preto-e-branco, com atores argelinos e franceses desconhecidos, recriando cenas e figuras históricas em locais de batalhas reais com técnica utilizada pelos cineastas neo-realistas, o diretor italiano Gillo Pontecorvo nos induz a pensar que se trata de um documentário.

A Batalha de Argel retrata os conflitos em Argel (1954-1957) entre a FLN (Frente de Libertação Nacional) e o exército francês. A primeira parte do filme mostra a campanha de terror desencadeada pela FLN contra o domínio colonial francês em torno do personagem Ali La Pointe, mostrando sua gradual conversão à guerrilha urbana. Já a segunda metade focaliza a reação do exército francês, que consiste principalmente em uma campanha de tortura e assassinatos comandados pelo coronel Mathieu. As ações terroristas vão se intensificando e ampliando seus alvos à medida que a repressão se torna mais eficiente, passando dos assassinatos de policiais às bombas em restaurantes, bares e clubes frequentados por jovens franceses. Mas igualmente ilustrativas são as imagens da repressão colonial, do racismo francês e do desprezo pelos árabes isolados na Casbah (bairro popular da capital argelina).

O filme não idealiza terroristas, não demoniza os franceses, nem exalta a violência em nome de algum tipo de revolução ou justificativa de qualquer ordem; em vez disso, o diretor examina a fundo os motivos, justificativas e contradições de todos os beligerantes. Os combatentes não escolhem seus alvos, ambos os lados se atacam indiscriminadamente e fornecem argumentos racionais para provar que estão no lado justo. Não há heróis nem vítimas inocentes. As crianças são cúmplices dos atentados, as mulheres plantam bombas em bares, os franceses atiram nas multidões, soldados brutalizam seus prisioneiros e o exército arrasa edifícios, matando civis inocentes.

Ali La Pointe encarna a figura do oponente irascível, ladrão e cafetão. É recrutado pela FLN e torna-se um guerrilheiro profissional, um líder revolucionário. Seu olhar ameaçador revela o próprio sofrimento e cólera dos árabes oprimidos diariamente pelos pieds-noirs (que, em francês, significa, literalmente, “pés-negros” e é um termo usado para descrever a população francesa que vivia na Argélia e que se repatriou na França depois de 1962, ano em que a Argélia se tornou independente).

O personagem procura expulsar a ocupação a todo custo, disposto a matar ou mesmo morrer pela causa. É isso que faz com que o seu destino seja trágico, culminando com sua morte (suicídio?), diferentemente do militante marxista El-hadi Jaffar, que negocia a rendição preservando sua vida.

Já a figura do coronel Mathieu foi inspirada na vida do general Massu, considerado pelos soldados franceses a personificação da tradição militar francesa. Herói militar da Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial, que também esteve presente na derrota da França na Indochina, Massu, em 1971, publica o livro A Batalha de Argel, que ficou proibido durante muitos anos na França. Nele, justificava a tortura como “uma cruel necessidade”. Dizia Massu: “Penso que, na maioria dos casos, os militares franceses foram obrigados a usá-la para vencer o terrorismo”.

3. Blow-up, de Michelangelo Antonioni — O Rato Cinéfilo

Único e surpreendente sucesso comercial de Antonioni, e o primeiro realizado fora de Itália, Blow-Up é um dos filmes que melhor retratam a Swinging London dos anos 60. Muito embora pudesse ter sido rodado em Paris ou Nova Iorque, a capital inglesa teve a preferência do realizador italiano devido à nova mentalidade instalada e que revolucionou todo um comportamento e estilo de vida. Antonioni deixou-se imergir voluntariamente na cena londrina, com as suas cores pop, música e liberdade sexual. No entanto, e apesar da modernidade que envolvia Blow-Up, toda a ambiguidade do universo de Antonioni se encontrava presente até ao mais ínfimo dos pormenores – a incomunicabilidade e impossibilidade de relações entre as pessoas ou a alienação no seio de uma sociedade de consumo prolongavam as ideias que o mestre italiano já nos dera a conhecer nos seus filmes precedentes.

Thomas (David Hemmings) é um jovem fotógrafo que trabalha no universo da moda. Ele capta casualmente algumas imagens num parque londrino. Mais tarde, durante o processo de revelação do rolo e espicaçado pela insistência da mulher retratada que quer a todo o custo reaver os originais da película, Thomas percebe que testemunhou, sem querer, um assassinato. Este fio de intriga, vagamente policial, poderia conduzir facilmente a um thriller como tantos outros. Mas não nas mãos de Antonioni.

De início não se vê na fotografia mais que uma mancha difusa e amorfa; aumentando-a, distingue-se uma figura que bem poderia ser humana; um aumento maior apresentará uma tonalidade diversa. Isto é tudo. Quanto mais nos aproximamos do mistério que tínhamos impressão de dominar, mais nos desviamos e começamos a recusar compreendê-lo. E assim por diante, até chegarmos a duvidar da própria realidade das coisas e dos seres.

4. Fahrenheit 451, de François Truffaut — De Mattar

O filme é baseado no mau romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, publicado em 1953. Montag (Oskar Werner) é um bombeiro cuja função é queimar livros, proibidos na sociedade do futuro. Sua esposa, Linda, é fútil e superficial, e presta mais atenção na televisão “interativa” do que no marido. Influenciado por sua vizinha Clarisse (o oposto de Linda, mas representada pela mesma atriz, Julie Christie), ele começa a guardar e ler alguns livros.

Uma cena marcante do filme: uma mulher recusa-se a sair de sua casa e é queimada junto com seus livros, sendo que ela mesma acende um fósforo e inicia a fogueira. Ao se apaixonar pela leitura, Montag decide sair da corporação, mas seu último serviço é em sua própria casa, pois fora denunciado por sua esposa Linda. Durante o serviço, ele queima seu chefe, Capitão Beatty, e foge. Refugia-se no local onde outras pessoas que leem se refugiam, representando personagens e decorando os livros, antes de queimá-los. O livro que ele começa a memorizar: Contos de mistério e imaginação, de Edgar Alan Poe.

Terezinha Elisabeth da Silva escreve:

O clima lúgubre e opressivo daquela sociedade é pintado com cores frias e pálidas, contrastadas com a única cor quente do filme: o vermelho do fogo e das viaturas dos bombeiros. Ritmo lento, cenários áridos e sem charme e diálogos escassos completam o panorama melancólico da obra. Com esses elementos, Truffaut impõe uma atmosfera pesada ao tempo de Fahrenheit, um tempo sem alternativas e, por isso mesmo, deprimente.

O título: na escala Fahrenheit, 451 graus (233 Celsius) é a temperatura a partir da qual o fogo queima o papel.

5. Persona (Quando duas mulheres pecam), de Ingmar Bergman — Clube do Filme

“Tudo o que se disser sobre Persona pode ser contradito, o oposto também será verdade”, palavras do escritor inglês Peter Cowie. Para o crítico americano John Simon, Persona “é o filme mais difícil de todos os tempos”. A crítica de arte Susan Sontag, por sua vez, foi categórica ao afirmar que Persona era o melhor filme da história do cinema. Há quase cinco décadas, a cultuada obra-prima de Ingmar Bergman vem exercendo um verdadeiro fascínio em gerações e gerações de cinéfilos e especialistas. Presente em inúmeras listas de melhores filmes do cinema (Sight and Sound, Empire, British Film Institute, New York Times, para citar algumas), Persona é constantemente apontado como a mais primorosa realização de Bergman no cinema, algo considerável se levarmos em conta a brilhante filmografia do diretor.

Persona conta a história de Elizabet (Liv Ullmann), uma atriz que para de falar repentinamente em meio a uma apresentação da tragédia Electra, entrando num estado de próximo ao catatônico. Nenhuma explicação física ou neurológica é encontrada para a crise de Elizabet. Internada em um hospital, ela é posta sob os cuidados da jovem enfermeira Alma (Bibi Andersson). Após algum tempo de internação, a médica de Elizabet sugere que esta passe uma temporada em sua casa de praia, ainda sob os cuidados de Alma. Isoladas do resto do mundo, as duas mulheres vão se tornando cada vez mais próximas. Alma encontra na emudecida Elizabet uma perfeita ouvinte e lhe conta os seus mais íntimos segredos, como uma orgia praticada com dois jovens adolescentes e uma amiga numa praia deserta e um subsequente aborto. Após ler uma carta comprometedora de Elizabet, Alma começa a perder o controle sobre si mesma, sentindo-se extremamente ligada à atriz e, ao mesmo tempo, oprimida pelo seu silêncio. Gradualmente, a persona de Elizabet toma conta da enfermeira e as identidades das mulheres parecem se fundir em uma só.

O filme se inicia por um intrigante prelúdio em que vemos uma série de imagens de duração variável (algumas que duram o tempo de um piscar de olhos, como aquela que mostra um pênis ereto). Essa sequência inicial consiste em uma justaposição de imagens heterogêneas, que lembra o experimentalismo das vanguardas modernistas e o surrealismo. Bergman faz diversas alusões ao próprio cinema, aos equipamentos, às suas primeiras formas, aos filmes mudos. A imagem da fita em movimento, dos aparelhos cinematográficos ou da fita que se deteriora intervém diversas vezes ao longo dessa primeira sequência e de maneira pontual no resto do filme. Existe algo de hipnótico na sequência de abertura que se deve muito ao atrevimento da montagem e a utilização poética de imagens impactantes. Ao final do filme, Bergman introduz novamente a imagem de uma câmera (manuseadas por Nykvist e o diretor), o que confere uma forma cíclica ao filme.

Persona é uma coleção de momentos antológicos. Uma das sequências inesquecíveis do filme é aquela em que Alma relata sua aventura sexual com um garoto, o momento de maior felicidade e gozo da vida da personagem. Certamente, o monólogo de Alma corresponde a um dos momentos mais eróticos da história do cinema. O diretor se dispensa de representar o ato sexual visualmente, o que poderia ser feito através de um flashback. O erotismo da cena é fruto do poder de evocação do ousado texto de Bergman e da maneira envolvente com que Bibi Anderson o declama. Para Pauline Kael, essa sequência corresponde a “um dos raros momentos verdadeiramente eróticos do cinema”. Outra cena brilhante do filme é aquela em que Elizabet entra no quarto de Alma no meio da noite. A lindíssima fotografia do genial Sven Nykvist confere uma atmosfera fantasmagórica à cena (sonho? realidade?). O instante em que as duas mulheres olham para si mesmas, como se estivessem diante de um espelho, enquanto trocam carícias, é uma das imagens mais marcantes da filmografia de Bergman.

Por fim, é inevitável não mencionar a escolha de Bergman de repetir o monólogo de Alma sobre o filho de Elizabet, uma vez com a câmera focalizando o rosto de uma, depois o da outra. O texto é exatamente o mesmo, assim como a montagem. Bergman parece querer mostrar a mesma história contada pelas duas mulheres, ainda que a voz seja só a de Alma (já que Elizabet não fala). Essa sequência mostra a união das duas mulheres e não por acaso ela termina pela colagem do rosto das duas atrizes, uma imagem impressionante que revela o quanto as identidades das duas se tornaram uma só.

6. Três Homens em Conflito (O Bom, o Mau e o Feio), de Sergio Leone — Cine Indiscreto

O filme focaliza três personagens: Blondie (Clint Eastwood) é o bom, Olhos de Anjo (Lee Van Cleef) é o mau e Tuco (Eli Wallach) é o feio (do nome original, The good, the bad and the ugly). A história dos três se junta porque estão atrás de duzentos mil dólares em ouro, uma fortuna na época.

Em Três Homens em Conflito, Leone constrói cuidadosamente cada imagem, como se estivesse pintando um grande quadro. Leone se mostra excepcionalmente criativo para construir longas tomadas sem cortes, criando tensão e atmosfera a partir da contraposição de tomadas panorâmicas de beleza tensa e dramática, na maioria das vezes paisagens com personagens minúsculos e close-ups de rostos rígidos e queimados pelo sol que revelam muito mais do que os olhos dos personagens. Esse talento transforma o filme em uma verdadeira experiência de imagens e sons inesquecíveis.

Ao contrário da maioria do gênero, os personagens de Leone são sujos, feios e parecem sangrar de verdade. Os protagonistas falam pouco, mas seus gestos e olhares dizem tudo.

Nos faroestes de Leone, os personagens não costumam atirar pra tudo quanto é lado. O diretor construía um duelo longo e sua grande preparação consiste em minutos de espera pelo primeiro disparo. Antes do revólver disparar, os personagens se analisam por inteiro e o silêncio só não toma conta do filme graças à fenomenal trilha sonora de Ennio Morricone, que ganha intensidade na medida em que começam cortes rápidos de um rosto para outro, capturando cada olhar tenso e cada mão buscando o revólver.

No começo do filme é revelado quem é o bom, o mau e o feio, mas com o desenrolar da trama percebemos que todos são bons, maus e feios… Descobrimos que, apesar de trambiqueiro e assassino, o homem sem nome guarda alguma bondade dentro de seu coração, como na cena em que o mesmo mostra uma certa compaixão por um combatente que está morrendo. A ganância pelo ouro revela o pior de cada um, mas comparados ao horror da Guerra Civil, os três são mocinhos.

Da abertura ao primeiro diálogo, temos cerca de 10 minutos de silêncio. Nenhuma palavra é ouvida. É a criatividade de Leone construindo uma narrativa baseada apenas em imagem, som e música. Outra cena que destaca o talento de Leone é quando o feio corre pelas lápides ao som de The Ecstasy of Gold, de Ennio Morricone. É simplesmente fantástico o efeito provocado. Uma viagem ofegante dos limites do oeste ao ápice da violência.

O filme é dispensa palavras, muitas vezes um pequeno desvio de câmera revela uma nova e surpreendente perspectiva. Outra técnica usada no filme é que os personagens não vêem (assim como nós) o que está fora do enquadramento. Assim a todo momento eles são surpreendidos por tiros ou balas de canhões que, normalmente, seriam vistas ao lado.

Uma obra prima revolucionária, que é, com grande estilo, homenageada por grandes cineastas da atualidade principalmente por Tarantino. Nesse filme testemunhamos o bom gosto, a inventividade e o controle de Leone sobre a narrativa.

 

Os 100 anos do mestre Michelangelo Antonioni

Michelangelo Antonioni (1912-2007)

Publicado em 29 de setembro de 2012 no Sul21

No Brasil, poucos cineclubes, cadernos de cultura, telecines cult e congêneres se deram conta de que este sábado, 29 de setembro de 2012, marca os 100 anos de nascimento de Michelangelo Antonioni. Na verdade, nada é mais Antonioni do que ser ignorado ou esquecido num primeiro momento. Tudo o que se relaciona com ele parece vir atrasado. Mesmo o cinema entrou tarde sua vida, tanto que o diretor formou-se primeiro em economia na Universidade de Bolonha, só estudando cinema quando chegou a Roma, aos 28 anos, em 1940, no Centro Sperimentale di Cinematografia da Cinecittà. Também a lapidação de seu estilo e sucesso artístico custaram a chegar. Vieram apenas com o 17º filme, A Aventura, o primeiro da fundamental Trilogia da Incomunicabilidade — os outros são A Noite e O Eclipse. Depois, Antonioni fez vários outros bons filmes, mas os três citados e outros três realizados após são indiscutíveis obras-primas e figuram em caixas de DVDs com extras e com a devoção de depoimentos de críticos e diretores. Então, completamos a pequena lista com Blow-up — depois daquele beijo, Zabriskie PointO Passageiro – Profissão Repórter.

Hoje, os filmes de Antonioni estão entre os mais retirados das gôndolas de clássicos das videolocadoras. Quando os DVDs destes filmes foram relançados, saíram notícias nos jornais, dando chance a que os críticos destilem todo o seu amor por estas obras… realmente tristes, até raivosas, mas reveladoras de um grande artista. O esteta Antonioni definia-se como um intelectual marxista. Nada mais verdadeiro. A rigorosa dissecação que a Trilogia da Incomunicabilidade faz da burguesia, denuncia inequivocamente a ideologia do mestre. Porém, na época em que foram lançados, seus filmes — que passavam ao largo da classe trabalhadora num país que vinha da tradição neo-realista de Rosselini e de de Sica — eram tidos por elitistas. Certo, seus personagens moravam em mansões, não tinham problemas de ordem material, mas eram de tal forma vazios e sem objetivos que não eram dignos de nenhuma admiração. Após a trilogia, nos outros três que citamos, todos realizados fora da Itália e em língua inglesa, Antonioni acompanhou pessoas desgarradas, que desafiam o senso comum, sob a moldura do rock´n roll.

ZP

Em sua maturidade artística Antonioni se distanciaria dos filmes de cunho claramente social, direcionando suas narrativas para os dilemas e angústias pessoais enfrentados por cada indivíduo. A contestação em sua obra se manifesta não pela luta de classes, mas pela postura desafiadora dos indivíduos face à sociedade, onde eram normalmente derrotados, com exceção, talvez, da imaginativa Daria de Zabriskie Point.

Antonioni não aprovava o nome Trilogia da Incomunicabilidade. Mal humorado, dizia que seus personagens esforçavam-se por entrar em contato uns com os outros, sem conseguir. Isso não muda muito, mas Antonioni desejava sublinhar a inconformidade, pois efetivamente há um esforço de contato que raramente se completa. Todos estão sós. Especialmente os casais.

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Monica Vitti em A Aventura

Em A Aventura (1960), Anna (Lea Massari) é uma moça entediada que viaja com o namorado e um grupo de amigos para uma ilha na Sicília e desaparece. Até o final do filme ela não é encontrada e não se sabe se houve um crime ou não. Pior, a forma como o fato é tratado sugere uma incapacidade dos personagens de preocuparem-se. Antonioni falava de A Aventura como um falso filme de mistério, referindo-se ao fato de não haver vítima nem criminosos. Anna acaba por desaparecer também das mentes de seus amigos e de seu amante (Sandro), que se interessa por Claudia, a personagem de Monica Vitti, na época esposa de Antonioni. Este “filme de Hollywood” ao inverso recebeu péssima recepção no Festival de Cannes de 1960. Nem a alta temperatura erótica o salvou. Apupado em cena aberta numa sessão onde se conversava e ria, A Aventura obteve um célebre desagravo no dia seguinte: um manifesto assinado por cineastas e críticos. Tal manifesto, que tinha a lista de assinaturas encabeçada por Roberto Rossellini, repudiava a reação do público e afirmava que aquele era o filme mais belo já apresentado no festival até aquela data.

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Jeanne Moreau e Marcello Mastroianni em A Noite

O segundo filme da trilogia, A Noite (1961), é igualmente estupendo, mas poderia chamar-se O Tédio. Tédio não para o espectador, mas sim em função do casal protagonista. Lidia (Jeanne Moreau) e Giovanni (Marcello Mastroianni) estão em um casamento que se mantém por pura inércia. Visitam um amigo à morte no hospital, vão a uma festa de arromba que nada mais é do que uma longa noite de desencontros e terminam o filme ao amanhecer, no jardim. Uma reconciliação? Um final feliz? Mas como conversar a respeito se o cansaço toma conta da relação? Como decidir a respeito de algo se parece não haver capacidade nem disposição de ambos para produzirem sentido? Tal como em A Aventura, Antonioni esmera-se na montagem de uma notável sequência de belas cenas. A atuação do trio principal de atores — Moreau, Mastroianni e Monica Vitti — , que têm como aliados um rigoroso cinismo, garante um dos mais perfeitos momentos do cinema.

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Monica Vitti caminha pela cidade em O Eclipse

Apesar de Antonioni não ter concebido os três filmes como uma trilogia, seus temas se completam. O Eclipse fecha o ciclo tendo também em seu centro uma mulher. Claudia em A Aventura, Lidia em A Noite e Vittoria em O Eclipse, são as protagonistas dos três filmes. Em O Eclipse (1962), o tema da incomunicabilidade aparece expandido, transposto a uma perspectiva social. Monica Vitti (Vittoria) termina um relacionamento e envolve-se com um jovem operador da Bolsa de Valores, Piero (Alain Delon). As cenas na Bolsa são pura loucura acompanhada por uma câmera imperturbável. Delon apenasconsegue desarmar-se, tornando-se amoroso, depois de um momento de queda e frustração na Bolsa de Valores. Ele é absolutamente vazio de espírito. No ambiente da Guerra Fria, a angústia é generalizada e Antonioni nos submete a um dos finais de filme mais desconcertantes, com a câmera passeando longamente pela cidade e cenários. E nenhum ser humano aparece. Fim. Pouco antes, há uma insistente cena onde, ao fundo, está uma caixa d`água no formato de cogumelo nuclear. É a maior pista.

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Blow-up, a cena com Veruschka

Blow-up (1966), vencedor do Festival de Cannes em 1967, recebeu o discutível complemento “Depois daquele beijo” no Brasil. O filme descreve, na Swinging London dos anos 60, o mundo superficial do fotógrafo de moda Thomas (David Hemmings). Numa manhã, após passar a noite fazendo fotografias para um livro de arte, ele chega atrasado para uma sessão de fotos com a supermodelo Veruschka (em seu próprio papel) — em cena considerada à época como a “mais sexy do cinema” — , passa por um parque da cidade e fotografa um casal. A mulher, Jane (Vanessa Redgrave), indignada por ter sido fotografada, segue-o até seu estúdio e exige os negativos. Ele lhe entrega um filme virgem. Depois, ao fazer ampliações (blow-ups) das fotos do parque, ele acredita ver um corpo sobre a grama e uma mão apontando uma arma entre os arbustos do parque. Ao cair da noite, ele volta ao parque e efetivamente descobre um corpo entre os arbustos. Abandona o local e retorna, encontrando seu estúdio revirado e as fotos roubadas, à exceção de uma grande ampliação na câmara de revelação que mostra o corpo tombado. Thomas se mostra indiferente quanto a denunciar um possível crime. A música é de Herbie Hancock e dos Yadbirds, grupo do futuro Led Zeppelin Jimmy Page, que aparece no filme tocando com Jeff Beck. O roteiro foi escrito por Michelangelo Antonioni, Tonino Guerra e Edward Bond, baseado num conto de Julio Cortázar.

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Cena de Zabriskie Point

Assim como A Aventura, Zabriskie Point (1970) não foi nada bem recebido quando de seu lançamento. É um filme raivoso sobre o qual Antonioni tinha alertado em 1968: “Zabriskie Point representará um engajamento moral e político mais evidente que o de meus filmes anteriores. Quero dizer que não deixarei o público livre para tirar suas conclusões, mas que procurarei comunicar-lhe as minhas. Acredito que chegou o momento de dizer abertamente as coisas”. Era 1968, repetimos. Como locações na Califórnia, Zabriskie foi taxado por boa parte da crítica americana de cruel, estúpido, insultuoso e vulgar. O filme é uma violenta crítica irritada ao consumismo crasso. O comentário sobre o american way of life é claro. O filme é desesperado, com Antonioni criando alguns recursos visuais memoráveis e traz uma enorme simpatia pelos hippies e seu desejo de fuga. Mark (Mark Frechette) acompanha as discussões de uma reunião política de universitários norte-americanos em 1968. O grupo chega à conclusão de que todos devem levar seus atos políticos às últimas consequências, mas o radicalismo de todos os participantes, na opinião de Mark, é apenas verbal. Ninguém quer assumir riscos. Mark abandona a reunião, reclamando de quem fica apenas teorizando. Dias depois, durante uma manifestação, Mark vê um policial matar um negro e saca seu revolver. O policial cai mas o tiro não foi disparado por Mark, que é acusado pela morte e foge para o deserto. Ele encontra Daria (Daria Halprin) que está viajando para a mansão de seu patrão no deserto. Eles passam juntos alguns dias e se separam. Daria fica sabendo pelo rádio da morte de Mark. Ela chega à casa do patrão, mas não quer permanecer lá. Na cena final, imagina a casa explodindo. Depois sorri, entra no carro e vai embora.

Daria imagina a destruição na cena final de Zabriskie Point. A música é Come In Number 51, Your Time Is Up, uma versão de Careful With That Axe, Eugene, de e com o Pink Floyd.

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O Passageiro

O apuro técnico de O Passageiro — Profissão Repórter (1975) é de deixar qualquer cinéfilo boquiaberto. Para comprová-lo talvez baste apresentar a sequência abaixo:

David Locke (Jack Nicholson) é jornalista e está no deserto africano preparando um documentário sobre as guerrilhas da região. Depois de ser abandonado por seu guia e ter seu veículo atolado na areia, entra em crise. Está cansado do trabalho, do casamento, da vida. Ele consegue voltar ao hotel e procura por Robertson, um hóspede inglês que ali se encontrava. Quando entra no quarto, David encontra Robertson morto. Ambos têm alguma semelhança física e David resolve trocar de identidade com o morto, passando a seguir a agenda que encontrou com ele, indo aos vários locais anotados. Locke parece mais interessado em fugir de sua vida do que em transformá-la. A mulher que acompanha Locke (Maria Schneider) questiona sobre as razões de seu radical rompimento com o passado.

— Do que você está fugindo?
— Fujo de tudo. Da minha mulher. Da casa. De um filho adotivo. De um emprego de sucesso. De tudo, exceto de alguns maus hábitos dos quais não consigo me livrar -– explicando sua tendência a desistir das coisas, o que fica mais evidente quando é descoberto pela polícia.

Como o personagem de Pirandello, Mattia Pascal, Locke tenta aproveitar-se de Robertson para se livrar de sua patética vida anterior, mas como o habitual no cinema de Antonioni, nada dá certo.

Curiosamente, Antonioni, que desde 1985 viveu parcialmente paralítico e quase impossibilitado de falar em razão um acidente vascular-cerebral, veio a falecer em 30 de julho de 2007, no exato dia em que Ingmar Bergman morria da Suécia. Isto é, o cineasta da incomunicabilidade morreu no mesmo dia do autor de Persona e de O Silêncio.

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* Com o inestimável auxílio do blog Cinema Italiano, de Roberto Acioli de Oliveira.

Julio Cortázar: o incrível escritor que encolheu

Publicado em 28 de agosto de 2012 no Sul21

Cena de “O Incrível Homem que Encolheu” (1957), filme B de Jack Arnold

Até meados da década de 80, Julio Cortázar (26 de agosto de 1914 – Paris, 12 de fevereiro de 1984), um gigante de quase dois metros de altura, era um escritor lido no mundo inteiro, era quase popular. O tempo e a reavaliação por parte da crítica e dos leitores, tratou de afastá-lo do lugar que ocupava naquela época, mas ainda é um escritor respeitado, principalmente em nosso país. Já fora do Brasil, principalmente na Argentina, Cortázar foi desconstruído primeiramente pela crítica, que jogou seu ácido sobre vários pedaços da ficção do autor, e depois passou a um segundo plano no gosto dos leitores. Hoje, é personagem secundário nas livrarias de Buenos Aires e Montevidéu, fato que não ocorreu com a maioria de seus pares.

Tal recuo não chegou a ser fatal para a memória do escritor, apesar da agressividade de alguns críticos hispano-americanos, mas o retirou da posição de escritor vanguardista para recolocá-lo mais atrás, num posto de autor de alguns grandes livros. O encolhimento de Cortázar deu-se principalmente no âmbito de que ele deixou de ser considerado um escritor revolucionário para acomodar-se numa poltrona mais conformista do ponto de vista estético. A internacionalmente respeitada Beatriz Sarlo foi uma das ensaístas que desmistificou a obra-magna de Cortázar, O Jogo da Amarelinha. Chamou-a de obra precocemente carcomida pelo tempo. Verdade. Sarlo diz que a possibilidade de ser lido em qualquer ordem de capítulos é um fato menor, até porque o sentido do livro não se altera se for adotada outra ordem, o que torna o expediente um acessório meramente pirotécnico.

Cortázar: autor popular apenas para uma ou duas gerações?

Cortázar está longe de ser um embuste, mas boa parte da obra do autor passou a ser considerada sob uma luz menos indulgente, na verdade sob a luz das repetições que afetariam seus romances e livros de contos escritos após de Todos os fogos o fogo. Com pouca margem de erro, pode-se projetar que o escritor argentino vá em futuro próximo fazer companhia a Hermann Hesse como autor de uma ou duas gerações.

Sue, a escolha francesa na época de Balzac. Quem entende?

As reavaliações artísticas não são novidade. Os contemporâneos de Balzac consideravam Eugène Sue o maior escritor francês de sua época. Quando comparamos os autores e ficamos sabemos que um dos principais intentos da vida de Balzac era o de desafiar a supremacia de Sue, passamos a desconfiar daquela contemporaneidade parisiense. O que pensavam? Sue é um escritor paupérrimo, certamente, mas sabia falar aos leitores europeus do século XIX. Balzac não está sozinho em sua luta contra a incompreensão da sociedade onde estava inserido. Quem era o maior compositor da época daquele que é hoje considerado o maior compositor de todos os tempos? Telemann. Sim, os contemporâneos de Bach não o reconheciam, mas amavam o hoje periférico Telemann. De alguma forma, Telemann, como Sue, sabiam o que o contexto onde estavam inseridos exigia. Não é pecado saber agradar a seus leitores imediatos.

Cortázar: Che Guevara como personagem

A “queda” de Cortázar — um escritor considerado vanguardista em sua época —  é um fenômeno. Ele não deve ser comparado a Sue em qualidade. Seu requinte formal, seu charme e suas histórias o colocaram na linha de frente dos ficcionistas mundiais de sua época. Basta dizer que seu conto A Autoestrada do Sul (de Todos os fogos o fogo) inspirou o filme Weekend (1967), de Jean-Luc Godard, e As Babas do Diabo (de As Armas Secretas)o clássico Blow-up (1966) de Michelangelo Antonioni. Ou seja, era um escritor que gozava de reconhecimento mundial. Na política, também era de vanguarda. Cortázar apoiou a revolução cubana, combateu as ditaduras argentinas, defendeu o Governo sandinista. Poucas vezes um escritor ousou entronizar um revolucionário como personagem de uma de suas narrativas como fez Cortázar com Che Guevara, o narrador asmático do conto Reunião, também de Todos os fogos o fogo.

Citamos três vezes Todos os fogos o fogo. Neste livro — que é uma espécie de súmula do Cortázar contista e é uma das últimas seleções de contos seus realmente boas — , já se nota sinais de repetição e cansaço. O clássico A Autoestrada do Sul, por exemplo, narra a história fantástica de um extraordinário engarrafamento numa rodovia que vai dar em Paris. Todos os carros parados. Por horas, dias, semanas, muda a estação e eles ali. Os gregos inventaram a “hipérbole”, que é a intensificação de um fato até o inconcebível, um superexagero que transforma os fatos em outra coisa. Os carros passam um ano inteiro parados na estrada. São criadas novas relações, um novo comércio, outra vida, outras disputas, outras formas de sobrevivência. Quando os carros voltam a andar, o leitor lamenta. Parece uma brilhante variação do também excelente A casa tomada, de 1951. Era 1966 e — pensa-se atualmente – a hora de Cortázar repensar sua literatura. Não foi o que aconteceu. Ele seguiu repetindo-se e publicando seus livros e uma velocidade cada vez maior.

Em sua casa, em Paris.

O professor de literatura latino-americana da Universidade de Tulane (EUA), Idelber Avelar, provocou a ira de muitos leitores brasileiros com uma crítica talvez demasiadamente acerba ao escritor argentino, mas que continha uma análise do esquema — ou fórmula — dos contos de Julio Cortázar que é difícil de rebater. Segundo Idelber, há uma:

(…) tediosa previsibilidade. Essa fórmula pode ser resumida em três ou quatro movimentos: 1) um personagem, sempre homem, topa-se com um lá-fora, um estrangeiro, um desconhecido: o réptil no zoológico em “Axolotl”, o acidente de moto em “La noche boca arriba”, a queda do avião em “La isla al mediodía”, a artista de cinema em “Queremos tanto a Brenda”, a Revolução Sandinista em “Apocalipsis en Solentiname” etc. 2) O choque produz no sujeito um desassossego que o descoloca, e instala uma esfera “fantástica” diferente da que estava presente na ordem anterior: o visitante do zoológico começa a transformar-se em réptil em “Axolotl”, o acidentado de “La noche boca arriba” começa a ter alucinações de que é um prisioneiro azteca, o passageiro do avião em “La isla al mediodía” passa a ter a visão perfeita da ilha, o fã começa a se fundir com a atriz em “Queremos tanto a Brenda”, as fotografias tiradas na Nicarágua começam a revelar uma realidade terrível que o protagonista não havia visto etc. 3) O conto conclui com a esfera “fantástica” coexistindo com ou substituindo a realidade anterior, enquanto o leitor sente que, catarticamente, passou por uma purgação, uma aventura através da qual a ficção lhe deu o vislumbre de uma outra dimensão. A execução desses passos é intercalada com pitadas de humor piegas à la María Elena Walsh, algumas piadas machistas e um ou outro comentário supostamente high-brow sobre alguma esfera da cultura de massas, em geral o jazz.

A previsibilidade é tal que basta ler sete ou oito contos de Cortázar – falo dos textos posteriores a Bestiário – para que se adivinhe, sem muitos problemas, como terminarão os outros relatos. Leia Todos os fogos, o fogo, e depois faça o exercício com As armas secretas. É muito mais fácil que adivinhar final de telenovela ou bang-bang.

Amor ao jazz, o cult repetidamente citado | Foto: Alberto Jonquieres

Mas a época de Cortázar aprovava. Quando Idelber fala em comentários intelectuais sobre o jazz, lembramos que o aval de Cortázar era importante para muitos ouvintes iniciantes do gênero. O jazz foi tema e fonte em grande parte de sua obra literária de forma tão insistente que hoje o autor nos deixa a impressão de abraçar uma espécie de pedagogia jazzística. Tal postura sobre este e outros assuntos empurra-lhe um fardo que, há 30 anos, ninguém esperaria que Cortázar recebesse: o de escritor para adolescentes, a de um autor para pessoas em formação. É o que diz, por exemplo, o excelente ficcionista César Aira, que afirma que o que ficará de Julio Cortázar serão os livros de contos Bestiário e Todos os fogos o fogo.

Neste sentido, ocupa uma posição singular o livro Histórias de Cronópios e de Famas. Publicado em 1962, o livro oferece narrativas hilariantes dentro de um mundo dividido entre “cronópios”, “famas” e “esperanças”. Os cronópios são distraídos e poéticos. São indiferentes ao secular, sofrem acidentes, choram, perdem seus pertences, atrasam-se, viajam levando coisas inúteis. As narrativas dedicadas a eles torna-os irresistivelmente simpáticos e sedutores. Os famas são o inverso. Objetivos, são organizados, práticos e cuidadosos. Quando viajam, por exemplo, pesquisam preços e a qualidade dos lençóis de cada local onde ficarão. Na volta, fazem álbuns de fotografias. Suas histórias são as mais engraçadas por suas compulsões. Já as esperanças são a maioria silenciosa. Deixam-se levar. Este pequeno volume é hoje indicado em escolas hispano-americanas como uma hilariante introdução de jovens ao mundo da literatura. Ou seja, é encarado efetivamente de outra forma daquela com que era lido anos atrás.

Zweig, famoso nos anos 20, hoje é pouco lembrado, mesmo no Brasil, para onde veio.

Porém, no Brasil, o prestígio de Cortázar segue estranhamente inabalado. Espécie de novo Stefan Zweig, Cortázar segue com uma legião de entusiastas em nosso país. É um fenômeno brasileiro. Vindo de uma literatura cujo prestígio mundial iniciou com a descoberta de Jorge Luis Borges nos anos 60, principalmente pela França, que na época era um país capaz de consagrar um escritor, Cortázar, segundo Beatriz Sarlo, viu-se na ponta de lança da internacionalização da literatura latino-americana por duas razões: o primeira é o desenvolvimento da própria literatura da região e a segunda é a propaganda da Revolução Cubana. Autores que se identificavam com Cuba ganharam rápida repercussão internacional. Esse é exatamente o caso de Cortázar e do colombiano Gabriel García Márquez, mas não de Borges, de Juan José Saer, do mexicano Juan Rulfo ou do uruguaio Juan Carlos Onetti, que seriam, sem dúvida alguma, escritores muito maiores.

A América espanhola parece concordar com estas palavras. O Brasil é que não.

Os anos 60  e 70, décadas de grande sucesso de Cortázar, eram muito estranhos.

Porque hoje é sábado, algumas grandes damas inglesas

O PHES chega diferente em razão desta foto, enviada ontem a mim por uma amiga.


Tinha pronto o conjunto habitual de imagens de uma beldade quando a vi. Mudei de idéia. Quatro grandes atrizes inglesas e ao menos três Dames de passado insurgente.




Vanessa Redgrave foi a presença mais espetacular de Blow-up, de Antonioni, um dos filmes que nunca sairão da minha lista de dez mais.


Aos 73 anos e menos comuna do que na juventude, é uma tremenda atriz.


Judi Dench é outra imensa intérprete. Como nunca foi bela, só viu seu talento reconhecido na idade madura.


Hoje, tem 76 anos e é requisitadíssima. Trabalha muito, seu jeito de durona esperta agrada os americanos.


Aos 74 anos, a duplamente oscarizada Glenda Jackson hoje faz política, vá entender por quê.


Com jeito de vovozinha legal, está no Parlamento inglês. Brigou muito com o famigerado Blair e sua guerra imbecil, apesar de ser de pertencer ao mesmo partido.


Helen Mirren, acima com Glenda Jackson, é o bebê da foto. Tem 65 anos.



Talvez vocês não lembrem: ela participou de O Lucky Man, grande e irreverente filme de Lindsay Anderson e de Calígula, escandalosa — na época — película de Tinto Brass.


Por tudo isto, esta grande dama de passado contestador, merece inteiramente a montagem acima. A propósito, sua participação em O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e seu Amante é inadjetizável (?).


Sua imagem agora mudou: ela tornou-se Dame Helen Mirren, a quase-rainha do Reino Unido. Quem diria… God save the Queen, Helen, mas por favor, volte logo aos bons filmes.


Ah, uma fotinho extra de Mirren que achei divertida.

Três grandes amigos: Luís Frederico Antunes, Fernando Monteiro e Marcelo Backes

1. Estou obtendo minha cidadania portuguesa. É um processo que parece fácil quando lido no papel, mas que se complica numa burocracia inteiramente diferente da nossa. Todos os documentos têm prazo de validade, todos têm de ser reemitidos, inclusive a certidão do nascimento de meu avô, ocorrido no ano de 1900, e o óbito de meu pai. É como se fatos novos pudessem alterar seus conteúdos. A parte chata é esta, a da fria papelada. A parte interessante é a comprovação dos vínculos com Portugal. Valem quaisquer comprovações lusófonas, desde fotografias tiradas em Portugal, associações a entidades portuguesas, interesses sobre a cultura e até depoimentos abonatórios de portugueses. Mostrei as minhas, que penso serem suficientes. Para tanto, é necessário escrever uma carta de próprio punho ao Ministro da Justiça português. Agreguei à minhas justificativas algumas curiosidades, como a árvore genealógica que gerou este desfrutável rebento, o notável e infelizmente falecido blog Cidades Crónicas, do qual fui prefeito por uma época, e o esplêndido depoimento abonatório do professor e doutor em História Luís Frederico Antunes. Conheci-o através da Internet. Fizemos uma bela amizade por e-mail logo após a vitória do Inter no Campeonato Mundial Interclubes sobre o Barcelona. A rede é maravilhosa para se fazer amizades em que os laços advém não da proximidade física, mas das afinidades e das eleições pessoais e ideológicas. Pedi então ao amigo — que antes já me conseguira a certidão de nascimento do meu avô por duas vezes! — que dissesse que não sou Hannibal Lecter, que sou apenas um bom e real português com quatro gerações de ascendentes nas proximidades de Aveiro e de seus ovos moles. A carta abonatória é uma obra de arte.

A quem possa interessar

Atesto por minha honra que Milton Ribeiro, brasileiro de nascimento, é de origem genética e cultural profundamente português. Na realidade, fui o signatário responsável pela pesquisa efectuada no Arquivo Distrital de Aveiro sobre as raizes familiares de Milton. Lembro-me que o seu avô Manuel Martins Ribeiro nasceu em 21 de Fevereiro de 1900, na aldeia do Pinheiro, freguesia de S. João de Loure, do concelho de Albergaria a Velha, distrito de Aveiro.

Mais, ele era sapateiro de profissão e os seus pais (logo bisavós de Milton) eram igualmente gente da terra lusitana. Declaro que sou leitor assíduo do seu caderno digital ( http://opensadorselvagem.org/blog/miltonribeiro ). Os artigos e opiniões aí editados comprovam na perfeição que Milton domina com esmero a língua de Camões e que tem ideias – o que é agradável -, especialmente quando, o que é o caso, são interessantes. Este facto reputo de muito importante na medida em que, nos dias que correm, já vai sendo raro, mesmo para os nados em Portugal.

Finalmente, o facto que melhor indica a sua origem portuguesa é ter um coração vermelho, adepto do glorioso SPORT LISBOA E BENFICA. Aqui, por terras lusas, se diz que quem não é do Benfica não é nem bom chefe de família, nem bom português.

Por tudo isso, EU POSSO ATESTAR QUE MILTON RIBEIRO PREENCHE TODOS OS REQUISITOS PARA SER UM BOM CIDADÃO PORTUGUÊS.

Luís Frederico Dias Antunes
Natural em 1954, em Goa, (antigo Estado da Índia).
Bilhete de Identidade emitido pelo Arquivo de Lisboa xxxxx63
Sócio cativo do Glorioso 39286

Luís, muito obrigado. Novamente.

2. Leiam que bela crônica Fernando Monteiro publicou no último sábado, no JORNAL DO COMMERCIO. Ele estará hospedado em minha casa no início de novembro. Se bem lembro, vem aqui entre os dias 3 e 8 de novembro para a Feira do livro. No dia 7, palestrará na Feira sobre o tema QUEM MATOU O LEITOR?, segundo ele uma espécie de palestra policial. Fernando é outro amigo que nunca vi e que chegou através da rede. Este ateu jura que adora a Internet.

Lembrança de Antonioni

Li, recentemente, o autobiográfico Comincio a capire – de um dos autênticos gênios do cinema, o italiano (de Ferrara) Michelangelo Antonioni. O título do livro revela bem a surpreendente modéstia do artista que achava que “o passado e a vida estavam por se fazer mais entendidos (por ele) somente na velhice”.

Num ano já longínquo, visitei Ferrara – e não me lembro de ter feito associações da cidade senão com a literatura. Para mim, em 1969, Ferrara e suas fumaças se mapeavam, na moderna cultura italiana, muito mais pela família Finzi-Contini – do romance de Bassani – do que pela certidão de nascimento do autor de Blow-up.

Isso foi há quase 40 anos. Teria sido uma boa oportunidade para tentar ver Ferrara com os olhos do grande diretor… mas os meus – e outros olhos inquietos, no pós 68 – estavam então “enevoados”, à sua maneira, pela arrogância da juventude que nunca quer ver nada pelos olhos alheios. Terminada a leitura da autobiografia, tentei rever a imagem do diretor naquela Roma da primavera de 1970: ágil e elegante, aos 58 anos, num restaurante francês da Via Mangili, muito longe da sua cidade e morada agora definitiva.

O restaurante era francês porque G. o escolhera para a nossa piccola extravagância. Minha colega de turma no Centro Sperimentale era filha de um romano e de uma francesa de Montpellier. No final do almoço no La Piscine, a nossa atenção se distraía com a mesa logo ao lado, onde havíamos assistido o diretor Michelangelo Antonioni ser o tempo todo servido com grande solicitude (extensiva às duas senhoras que o acompanhavam e que riam mais do que a minha lisa paciência podia suportar).

O que querem? Era 1970, eu tinha 21 anos – e a minha geração tinha raiva de tudo. Hoje, a pasmaceira não permite que se compreenda jovens como nós fomos, no Rio, no Recife ou em Roma.

O cineasta parecia um homem calmo, sereno. Apenas esboçava um sorriso quando as mulheres riam, talvez mais atento ao jogo da luz enviesada iluminando trutas e outras iguarias nos pratos. “Todos comem pouco quando fumam” – dizia a minha amiga. “Por isso é que ele é tão magro?”

Na dúvida – e antes de pagarmos a conta bem examinada – G. se levantou e, com o largo menu na mão, se dirigiu a Antonioni, para… pedir um autógrafo?! Não acreditei nos meus olhos enevoados, ou não, pelo monte de liras gastas (e não com trutas delicadas). Fiquei “na minha”, mal acompanhando, pelo canto do olho, a acolhida por parte de Michelangelo, o meio sorriso mais uma vez esboçado e o rápido sacar de uma caneta muito grossa – uma espécie de “pincel atômico” – retirada do bolso a fim de assinar, com segurança, na carta do La Piscine. Quando G. voltou, eu perguntei porque lhe interessava o autógrafo daquele “solene amontoador de caixas vazias” (usando de uma definição meio invejosa que nem sequer era minha, mas de Orson Welles, que só admitia o gênio próprio). Ela sabia tanto da minha admiração pelo diretor de Cidadão Kane (e por Godard e Straub), quanto da minha antipatia, naqueles anos, pelo “cineasta da incomunicabilidade”. Talvez porque esse tema me parecesse um luxo no mínimo dispensável, debaixo das botas de 64.

Com o autógrafo de vinte centímetros (e “quilométrica vaidade”, denunciei) na mão, a minha amiga apenas sorriu – ainda mais serenamente do que o Signore que acenaria de volta, para ela, ao sairmos… jovens e imortais na primavera romana.

Faz muito tempo. Eu mudei. E o mundo também mudou, entre cores e cinzas, filmes memoráveis e discursos sinceros sobre a transformação – ainda possível – dos mundos que portamos todos, incomunicáveis.

Eu, pouca coisa mais moço que Fernando, também custei a ser dobrado por Antonioni.

3. Adriana Falcão não tem culpa de nada. Ela enfrentou Marcelo Backes no Jogo 6 da Copa de Literatura Brasileira. Numa boa, levou um vareio. E eu, ocupadíssimo em toda semana passada, também. Marcelo esteve — de quarta-feira à sábado — com a Nina em Porto Alegre e eu os perdi. Mau amigo, liguei para ele só às 15h de sábado, quando o casal já estava mais para avião de volta do que para nós enquanto bar. Lamentável, ainda mais que Marcelo mandou dois e-mails com todos seus telefones, direções e saudades. Todas perderam a validade, menos o número do celular e as saudades, que ficou em mim recrudescida depois de conversamos, alemão. Merda de vida.

Voltando à Copa, Marcelo já está nas semifinais, pois enfrenta o apenas simpático Na multidão, de Luiz Alfredo Garcia-Roza. Dedicamos todo o respeito a nosso adversário teoricamente mais fraco e acreditamos que ele VIRÁ BEM ARMADO. Apesar disso, sabemos da obrigação de ganhar os três pontos para deixar satisfeita a grande massa torcedora aqui presente.

Não conheci o Marcelo Backes através da Internet, mas de um memorável churrasco.