Duas Vezes Junho, de Martín Kohan

Como primeira observação, declaro o mais fundamental, ou seja, minha impressão ao fechar o livro: é excelente e muito bem traduzido – aleluia! – por Marcelo Barbão. (Eu ia comprar o livro em espanhol, mas recuei após saber do preço. Não me arrependi de ler a versão em português, da Amauta Editorial, com a bela e estimulante capa acima.)

Gostaria de delimitar algumas coisas relativas ao livro. Seu título refere-se a dois junhos de Copa do Mundo, o de 1978 (dias 10, 11 e 12 de junho) e o de 1982 (dia 29 de junho, penso eu). São dias – e isto não é casual – de derrotas do futebol argentino, porém, isto apenas serve para reforçar uma metáfora, pois Duas Vezes Junho fala é da Grande Derrota Moral da Argentina daquele período. E não, não é um livro apenas para futebolistas, é um livro que usa o futebol na sua mais gloriosa função periférica, a de servir como representação de nossas vidas. O futebol fica sempre no fundo do cenário, como a lembrar que, ali ou na vida, as coisas podem não sair confome o previsto.

Martín Kohan começa o livro com uma curiosa indagação presente numa espécie de diário de bordo de uma das prisões argentinas: A partir de que idade se pode começar a torturar uma criança? Esta pergunta, de um absurdo quase cômico para quem está fora do contexto, vai tomando proporções e significados diferentes à medida em que o relato avança. E o relato avança em dezenas de pequenos capítulos contrapontísticos, onde várias vozes vão contando e completando seus temas para estabelecer o todo. Raramente uma destas vozes exalta-se ou é confrontada; cada uma delas tem sua lógica, sua razão e a função de formar o mosaico de Kohan. O resultado deste mosaico é estarrecedor e a inconclusão do momento dramático mais importante do livro – a cena entre o soldado e a mulher torturada na prisão, ocorrida no mesmo momento em que os “médicos” discordam e que é o único capítulo em que o contraditório comparece plenamente – nos dá a medida de uma história que repetiu-se tantas vezes a ponto de tornar-se pedra de um outro mosaico ainda maior, o da verdadeira tragédia que representaram os governos militares daquele país.

Ao ler o som dessas vozes, algumas contando fatos que ficam inacabados, ao ler a forma como Kohan finaliza as duas seções de sua novela, ao perceber que não há excessos em Duas Vezes Junho não consigo deixar de pensar no Tchekhov dramaturgo. Isto é um dos maiores elogios que este modesto escriba pode fazer a alguém.

Todos nós sabemos que a posição do Brasil em relação à literatura argentina é o inverso de sua posição futebolística… Acho lamentável que o Brasil, que também sofreu uma ditadura duríssima – casualmente com um de seus piores períodos ocorrendo durante a Copa de 70 -, tenha tão poucos romances dedicados ao assunto. Os que li são da época dos “Romances de Resistência dos Anos 70”. Há bons romances – Quarup, Incidente em Antares, Bar Don Juan, a obra-prima esquecida Quatro-Olhos, de Renato Pompeu, e outros -, mas os poucos que atualmente dedicam-se àquele periodo preferem utilizar um tom emocionado muito próximo da indignação e do discurso político. A opção de Kohan por uma narrativa fria, distanciada e paradoxalmente nostálgica, causa um impacto muito maior. Vejam bem, escrevi distanciada, não escrevi cínica. Não se precisa descrever as entranhas e cada atitude de um monstro para sentir-se quão terrível ele é. Se espreitarmos algumas atitudes dele, nossa imaginação faz o resto de modo muito mais eficaz.

Final futebolístico: o que não assustava muito era aquela seleção argentina de 78, cujos zagueiros centrais eram dois pigmeus – Galván e Passarella – e cujo inexistente ponta-esquerda – Ortiz – fora dispensado do Grêmio por deficiência técnica. Lembro de Grenais em que Ortiz era vaiado pelos próprios torcedores bananas. Como os argentinos venceram aquela Copa? Ah, não sei; havia o Peru, havia Videla, havia a hinchada argentina e havia Claudio Coutinho preferindo Chicão a Falcão. É melhor nem pensar a respeito.

7 comments / Add your comment below

  1. Esta semana (ou semana passada, mais provavelmente) vi um Sportv Repórter que tratava justamente do futebol e literatura. Não o futebol documental, aquele que conta uma determinada história, mas o futebol como pano de fundo de uma obra, seja para contar que história seja.

    Interessante este texto neste momento. Sei que não é o mote dele, mas me lembrei daquele programa quando li o teu texto, Milton. E concordo contigo quanto ao que dizes em relação a nossa literatura do período da ditadura: ela é muito mais calcada em discurso político do que qualquer outra coisa.

    Ainda, Falcão no auge em 78 fora da Seleção Brasileira…algo inadmissível. No ano seguinte ele provou que deveria ter estado na Seleção e conquistou um título pelo Internacional que ninguém mais tem: Campeão Brasileiro Invicto.

    Forte abraço!

    1. Acho que nossa ditadura nunca foi bem explorada pelos ficcionistas e roteiristas, Fábio. Os argentinos nos dão um banho neste aspecto.

      Não há histórias ontológicas escritas sobre os anos de exceção. Uma pena.

  2. O Vargas llosa tentou tapar o caixão dos “romances da ditadura” com A Festa do Bode. Só conseguiu por mais um tijolinho sobre sua própria tampa, coitado. Este livro do Kohan, mais uma vez, pode ser encontrado no Rio de Janeiro?

  3. Mestre Milton, estava com o Kohan aqui na minha alça de mira e seu post me fez antecipar o disparo. Comprei a versao portenha mesmo, 1 real mais barata que a nacional, na Cultura. O livro e simplesmente maravilhoso, o melhor do meu ano até agora. Cruel, ironico e sutil como os portenhos sabem ser.

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