As Confissões de Lúcio, de Fernando Monteiro

Minha amizade com Fernando Monteiro começou quando citei, há três anos e aqui neste blog, seu livro Aspades, ETs, etc. como uma obra-prima ignorada pelo grande público. Ele me escreveu uma mensagem de agradecimento e, desde então, começamos farta troca de e-mails, CDs, livros, jornais, revistas, recortes e sei lá mais o quê, comprovando mais uma vez a capacidade da rede em criar e manter grandes amizades de eleição. Paralelamente aos intensivos e cada vez mais bem humorados contatos por e-mail, eu acompanhava seu trabalho na Rascunho – onde ele atualmente publica um romance em capítulos -, na Bravo e na pernambucana Continente.

Anos depois, Fernando Monteiro convidou-me para escrever a “orelha” de seu último livro. Foi uma surpresa e uma honra para mim. Em vez de convidar um figurão como das outras vezes, Fernando apareceria em versão despojada e me daria, em sua 15ª obra, a oportunidade de colocar algumas palavras em seu livro. Ele supôs que eu fosse um leitor capaz de apreender o que há de sério, de mordaz e de cômico em As Confissões de Lúcio. Após a leitura, eu apenas podia garantir que era o melhor de seus livros, um notável romance, como já o foram O Grau Graumann e o Aspades. É uma coisa que me persegue – as pessoas sempre acham que sou um leitor atento e sagaz, enquanto eu respondo “pff”, pois só eu sei o quanto divago.

Os romances de Fernando são desafiadores, sutis e surpreendentes, são biscoitos finos a serem saboreados em nossa rota de fuga do óbvio e do fácil. Mas não vejo melhor forma de apresentar As Confissões de Lúcio a meus 7 leitores do que transcrevendo a versão original da “orelha” enviada à editora. Digo “versão original” porque o primeiro parágrafo sofreu alguns cortes por razões de espaço. Alguns cortes? Não, muitos cortes! Não sei porque não me pediram para reduzir um pouco o texto.

São esperadas duas coisas de quem é convidado a escrever a orelha de um livro: um agradecimento pessoal ao autor pela honra concedida e a imediata produção de um cerrado discurso laudatório. Não creio que vá decepcioná-lo, caro leitor, que tem As Confissões de Lúcio em suas mãos, mas permita-me antes dar-lhe uma noção da obra. O livro tem início com uma notícia que certamente o deixará orgulhoso e um tanto escandalizado por seu desconhecimento sobre um fato fundamental para a cultura nacional: em 2001, o obscuro e difícil escritor gaúcho Lúcio Graumann recebeu o Prêmio Nobel de Literatura – o primeiro Nobel brasileiro! -, porém, tal qual aquele presidente, não pôde tomar posse da cobiçada láurea, tendo falecido onze dias antes da cerimônia. Narrado principalmente pelo jornalista e escritor Mauro Portela, grande amigo de Graumann, o livro poderia tornar-se uma comédia simplória sobre um país culpado e ignorante, sem conhecer ou saber o que fazer com seu recém-ilustre morto; contudo, As Confissões de Lúcio está longe, bem longe disso. Fernando Monteiro, valendo-se de um delicioso e ousado humor mozartiano que perpassa toda a obra, transita sua narrativa pelas risíveis reações oficiais da Academia Brasileira de Letras ao novo e autêntico imortal (ainda que morto), pelo trabalho de Mauro Portela como revisor do espólio literário de Graumann e pela vida pessoal e intelectual de ambos. Apesar de todos os segmentos que compõem o romance fotografarem microscopicamente cada detalhe, a vida cultural brasileira não é posta à margem e podemos ver Graumann – este escritor para escritores – e sua obra interagindo com personagens reais de nossa literatura, os quais são citados, sem maiores pudores, por seus nomes. A incompreensão e o desconcerto da intelectualidade brasileira poderiam ser resumidos por esta observação retirada quase ipsis litteris do romance: “Nossa cultura no vácuo compreende a outra, mas não se compreende. E Lúcio é o emblema de um pequeno mistério reluzente como um espelho em que qualquer um pode enxergar o que quer na superfície polida”.

Mauro começa a cuidar da memória de seu amigo fazendo publicar, na Folha de São Paulo, uma entrevista apócrifa… Depois, a namorada de Lúcio – pessoa desinteressada em assuntos tais como literatura e arte – envia-lhe uma caixa de papelão com anotações e fragmentos da produção graumanniana a fim de serem analisados. O espólio do escritor é estudado por um alguém deprimido e ressentido, pois Mauro, além de protagonizar complicada vida pessoal, julga-se plagiado em uma das principais obras do grande escritor… “Uma história é de quem melhor a conta?”.

Tais argumentos servem de arcabouço para As Confissões de Lúcio – a semelhança do título para com o do pequeno livro de Sá-Carneiro não é casual -, um fascinante mosaico que satisfaz plenamente as condições dos teoremas propostos nas obras de Graumann e que acrescenta a elas sinceridade e exposição raramente encontráveis.

9 comments / Add your comment below

  1. Comentários no blog anterior:

    Está na lista. O próximo brasileiro que venha ver-me o trará, tenha certeza. Se eu fosse escritora queria uma orelha como essa, funda, inteira, hipnótica, para o comprador já ir entrando na fila do caixa… Quando você quer, Milton, dá show!

    nora borges Mar 30 2006

    Ôops! Parabéns ao Lúcio e sucesso ao FERNANDO… Um abraçuu.

    Leila Eme Mar 30 2006

    ‘De orelhada em orelhada, a visão clareja’. Parabéns a vc pela minha próxima aquisição.

    gugala Mar 30 2006

    Prezado Mílton. Somos “conviventes” aqui deste universo blogueiro, mas nunca visitei seu recanto. Leio seus comentários por aí e veio-me a curiosidade. Nem preciso lhe dizer da agradável surpresa ao me deparar com o assunto postado sobre um livro(que deve ser excelente!), sobre um autor, sobre novidades de prêmio Nobel desconhecido, enfim… Enriqueceu-me sobremaneira minha leitura, a qual foi feita rapidamente, de um fôlego só. Lerei de novo, com vagar… Mas, antes, quero deixar-lhe meu abraço e minhas felicitações. Dora

    Dora Mar 30 2006

    fiquei morrendo de vontade de ler o livro. e agora?

    Dira Mar 30 2006

    Escritor Fernando Monteiro: não me passou pela cabeça que, ao comentar o “post” do Milton Ribeiro, eu viria me dirigir a quem eu considero um dos melhores escritores revelados nos últimos anos (e não estou querendo puxar teu saco, Monteiro). Embora muito se fale de certas nulidades literárias completas, neste país, leio raramente quem refira a tua obra com os elogios que ela merece. O Milton Ribeiro é um dos raros que fazem isso, e estou muito satisfeito de estar trocando estas palavras com o autor de “O Grau Gramann” e “Aspades Ets Etc”. Agora, “As Confissões de Lúcio” se junta aos demais títulos na minha (acredites) muito seletiva estante, onde não fica nada de que eu não goste. Não precisas de agradecer por nada. EU é que agradeço por segurares um lado da “peteca” da literatura contemporânea que vale a pena ser lida, neste país de tantos enganos e empulhações artísticas que (muitas delas) embrulham-me o estômago… Grande prazer! Segue escrevendo em paz, pernambucano.

    Donato Assis Mar 29 2006

    Milton, As pessoas qdo compram um livro, observam a capa, lêem a “orelha”e folheiam… A orelha ( maravilhosa) já está lida, a capa é linda e agora lerei o livro. Parabéns, suas palavras são dignas do autor, tenho certeza. Beijão

    Mônica Mar 29 2006

    milton, acredito em você e acredito no fernando monteiro, então tenho certeza de ótima literatura a caminho. este eu nao vou perder… um grande abraço!!

    theo Mar 29 2006

    Donato e amigos. Serve de bom contra-exemplo a trajetória de Lya Luft. Sou gaúcho e a acompanho há anos. Boa tradutora, bom início como romancista – dizia-se influenciada por Virgínia Woolf -, foi ficando conhecida e acabou por entrar de cabeça na produção de livros de auto-ajuda, o que a tornou célebre. Porém, se alguém a acusar disto, terá um chilique e sonhará dez dias com a Via Campesina… A super-exposição proporcionada pela Veja revelou uma pessoa despreparada, uma arrivista, uma raquítica mental. Ainda bem que há pessoas de outra inteireza neste mundo. Abraços.

    Milton Ribeiro Mar 29 2006

    Grande apresentação! Fez jus ao convite do escritor, como certamente o livro faz jus à apresentação.

    Manoel Carlos Mar 29 2006

    Mas na Germina, estou (estamos) também em poucos. São poemas bem mais antigos, mas… Espie. Beijo grande.

    Márcia Mar 29 2006

    PS: Agradeço ao Donato Assis o que acabo de ler no comentário anterior ao que eu postei. E digo-lhe: havia aqui no Recife, um escritor, infelizmente já falecido, chamado Renato Carneiro Campos, para quem certas opiniões é que representariam o verdadeiro salário (moral) de qualquer escritor. Portanto, pelo “post” teu, Milton, e pelo comentário do Donato Assis, digamos que hoje me vieram com o 13° e o 14° salários antecipados, tchê.

    fernando monteiro Mar 29 2006

    Milton velho: você deveria ter demorado mais com aquilo dos meninos e das fotos no primeiro posto, lá em cima no blog. Como Bárbara está linda! – e teu garoto parece um adolescente de Rafael Sanzio (nesta hora agônica, quando o clima humanista do Renascimento infelizmente já foi varrido da terra há muito tempo). Seja como for, Lúcio Graumann agradece, lá do além-túmulo falso onde ele não dorme. Eu também digo “obrigado”, pela parte que (mal) me toca. E mandei, acabo de mandar, o teu blog para a Francis, a fim de que ela veja – mesmo tardiamente – que deveria ter aberto uma orelha do tamanho da de Júlia Roberts (maior do que a boca?) de modo a oferecer, ao leitor, todas as nuances auriculares que preparaste para o “Lúcio”… Fernando

    Fernando Monteiro (por e-… Mar 29 2006

    Fico feliz de ver esse livro divulgado no seu site, Milton Ribeiro. Gosto dele (do site) e gosto muito do livro novo do Monteiro, estou dizendo a todo mundo que conheço (e respeito) que é o melhor romance brasileiro de safra recente (calcule aí uns dois anos, pelo menos). O Brasil letrado pode escolher: nas primeiras estantes das livrarias gigantescas, está, por exemplo, a Lya Luft com o seu “tatibitate” recordianesco para gaúcho (e brasileiro) idiota ler. Do outro lado, mais ou menos escondidos, estão os romances de um Fernando Monteiro, de alta fatura literária e inteligência. O país, graças a Deus, é livre e democrático (embora a nossa Luft tenha chamado duas mil mulheres sem terra de “nazistas” etc) para qualquer um escolher entre GARAPA mal disfarçada e VINHO de boa safra e qualidade…

    Donato Assis Mar 29 2006

    Querido Milton Talvez, como diz uma Poeta, eu esteja com os hormônios desaforados e desarmônicos, mas ao ler agora teu post, deu-me uma comoção violenta. Cuidado. Perigo! Acredito, e digo não sem um certo receio de ferir suscetibilidades, que só mesmo de ti, eu poderia esperar a respeito das “Confissões de Lúcio ” – este que é um dos dos melhores pequenos textos – uma pérola – dos mais competentes, brilhantes e virtuosos, que já li. (virtuoso, de virtuose) Agora, eu nada mais poderia dizer, a não ser que vou repousar dessa emoção. Voltarei depois, mais calma, talvez, mais silenciosa. Um beijo de Parabéns, Milton. Ou seria de agradecimento. Obrigada Meg P.S Hefestus (Lúcio) está sorrindo!

    Meg (subrosa) Mar 29 2006

  2. Ainda não li este livro, mas li o primeiro da trilogia, “O grau Graumann”, sobre o qual escrevi uma resenha no jornal Gazeta do Sul de Santa Cruz do Sul (reproduzida no meu blog: http://cassionei.blogspot.com/2008/12/artigos-e-resenhas-sobre-livros.html#links). Infelizmente não repercutiu como merecia, porque ele coloca um escritor santa-cruzense como ganhador do Nobel de Literatura. (Seria a Lya Luft, Milton? hehe.) Fernando Monteiro é um dos nossos grandes escritores e merece mais reconhecimento.
    O terceiro livro seria lançado com os dois anteriores em uma caixa, sabes como anda esse projeto?

    1. Cassionei, obrigado pela notícia na Gazeta do Sul — e pelo elogio. Milton, obrigado por repercutir a mensagem do Cassionei, e gentilmente enviá-la para o Recife.
      Sobre a pergunta de Cassionei (“O terceiro livro — da trilogia Graumann — seria lançado com os dois anteriores em uma caixa, sabes como anda esse projeto?”), eu esclareço a respeito do terceiro e último “Graumann”:
      O livro iria ser lançado em 2008, dentro de “box” com o primeiro e o segundo volumes, porém a editora engajada nesse projeto (a Francis, que editou o Graumann 2, “As Confissões de Lúcio”) fechou as portas, no final do ano passado.
      A Francis foi criada — com o maior zelo — pela Sônia Nolasco (jornalista, viúva do Paulo Francis) e pelo Wagner Carellli, uma das grandes cabeças “deste país”, jornalista que criou a BRAVO e a REPÙBLICA, duas das melhores revistas brasileiras de cultura (em tempo: a BRAVO está irreconhecível hoje, nas mãos da Abril), e que resistiu como pôde, em sua luta, até 2005. Nesse ano, parece que Carelli resolveu entregar os pontos, jogar a toalha, desistir. A Francis continuou (tocada pelo Roberto Nolasco, irmão da Sônia), sempre “mal das pernas” — porque era uma editora bem intencionada e empenhada etc — até o final de 2008, quando foi absorvida pela Landscape, uma editora sem história até agora.
      Eu não gostaria de lançar por ela a Trilogia, e (para dizer a verdade) essa Landscape também não se mostrou muito interessada, principalmente pelo fato de serem TRÊS livros colocados no mercado de uma só vez etc. Aliás, esse “mercado” está bem mudado, e vem dando sinais alarmantes — culturalmente — nos últimos anos.
      EM TEMPO: Sobre esse assunto, eu iniciei uma série de três artigos, o primeiro dos quais acaba de ser publicado na edição de fevereiro do jornal literário RASCUNHO, de Curitiba. A segunda e a terceria partes do texto (“A Cabeça no Fundo do Entulho da Leitura”) sairão nas edições de março e abril, e acho que, neles, os leitores do Cassionei, do Milton — e de outros –, poderão encontrar os dados da desoladora situação que escolhi enfrentar como tema de palestra (“A Morte do Leitor”) na recente Feira do Livro de Porto Alegre, realizada em novembro último.
      Abraço a todos,

      FERNANDO MONTEIRO

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