O Novo Papa – A Opinião do L`Osservatore Ateo

Eu publiquei o texto abaixo em meu ex-blog. Era o dia 7 de abril de 2005 e o mundo só falava na complicada eleição do novo Papa. Foi uma época insuportável, só se falava em santidades, mudanças, etc. Não sei por quê, fui atacado por um bando de católicos furiosos que reclamavam que… Bem, melhor reproduzir parte do mais tranquilo comentário da época, feito por um sujeito habitualmente fascista:

Caro Milton, o que me tem fascinado ultimamente é a enorme preocupação dos não-católicos com o que se passa na Igreja Católica. Infelizmente o que acontece é que o Vaticano é considerado simplesmente como uma super-estrutura política, o que é, mas sem levar em conta a sua dimensão espiritual e moral, quando é essa dimensão lhe dá a relevância única que ela tem no mundo crente e não-crente. Se lhe interessar o que filosoficamente penso do assunto, passe no meu blogue…

E lá no “blogue” dele o que havia era uma louvação sem fim ao Wojtila. Ele devia saber, pois veio o Ratzinger e tudo seguiu exatamente igual. Mas achei divertido reler sobre as esperanças de mudanças que até os católicos tinham na época. Tolinhos… Foram mais de 100 comentários, a metade me ofendendo. Hoje, passados 4 anos e fora do período de campanha eleitoral às claras, não vejo nada de extraordinário no post.

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Há algo estranho em minha conformação cerebral que impede a instalação de noções como Deus, milagres, religiões, etc. Porém, reconheço a importância que tais fés têm para a humanidade e sei ser impossível um mundo formado por pessoas sem Deus, apesar de pensar que é assim que sempre estivemos. É com este espírito cético (louco para tirar em sarro) e respeitoso (sabendo que, infelizmente a religião é inerradicável) que escrevo o post abaixo.

Minha formação religiosa é inexistente. Nunca frequentei igrejas, nunca me senti tentado a recorrer a algo superior quando as coisas foram mal ou bem, não li a Bíblia e não conheço nem aqueles movimentos que devemos fazer com a mão direita quando entramos numa igreja. Minha proximidade com o Espírito Santo limitou-se aos torneios de pingue-pongue que jogava, ainda criança, na Igreja Metodista Central de Porto Alegre.

Para mim, é desconfortável ver e ouvir a mídia nestes dias. Além da nauseante super-oferta de Vaticano, penso que a ignorância dos comentaristas esteja muito próxima à minha. As descrições incompletas dos rituais que cercam a morte do Papa e a futura eleição causam-me frouxos de riso. A simbologia parece impermeável a eles e os abandonaria se não soubesse da importância política que tem a escolha do chefe da Igreja Católica.

Ouço e leio todas as notícias que me passam por perto e não posso evitar mal estar e irritação com as longas digressões acerca da santidade de Wojtyla. Quando começam tais delírios, desligo o rádio ou mudo de artigo. Os vaticanólogos reais, os entendidos nestas questões políticas, dão-me clara impressão de que João Paulo II teve um prelado mais longo do que desejaria o Colégio de Cardeais. Ele era o Papa que deveria empurrar pela linha de fundo o comunismo polonês e, se possível, fazer o mesmo com os vizinhos. Ajudou a fazer o serviço, mas viveu demais. Neste ínterim, revelou-se um marqueteiro de primeira e um conservador que impediu avanços que estavam maduros até mesmo em seu meio. Dizem os especialistas que a maioria dos Cardeais desejariam finalmente “dar continuidade aos milimétricos passos em direção ao mundo” – expressão minha – e que, para tanto, seria melhor haver papados de aproximadamente dez anos, ao invés de um super-papado conservador de 26. Além disto, dizem eles que a tendência histórica é da alternâcia entre papas conservadores e “liberais”.

Se estes caras têm razão, o novo Papa será um septuagenário bom de conversa e que saiba jogar no ataque. Não seria eleito novamente um volante brucutu de 58 anos. Mais: seria alguém que, finalmente, daria os tais passinhos em perseguição ao mundo. Abro o jornal e leio Dom Claudio Hummes, arcebispo de São Paulo, dizer vagamente: “O próximo Papa será diferente”. Esperamos que sim, Dom Claudio.

Os passinhos seriam (1) a permissão para os padres casarem. Cá para nós, isto é uma maldade prima-irmã da autoflagelação. A igreja está atrasadíssima na liberação destes seres humanos para que eles possam ter prazer sexual, filhos e — grandes problemas — futuras viúvas, pensões e herdeiros que não sejam a oniparente Santa Madre. Na mesma linha está (2) a liberação da pílula para as mulheres e (3) dos preservativos para os homens. Somos os únicos seres vivos que mantêm relações sexuais por puro prazer — por que é tão difícil reconhecer isto? — e sabemos quão positivo para um casal é ter uma vida sexual saudável e prazerosa. A igreja poderia dar uma forcinha a seus fiéis, não? Outro item necessário seria a eliminação de um machismo que nem os CTGs (Centros de Tradições Gaúchas) mantêm mais, ou seja, (4) o da exclusão feminina nos postos de importância do clero. Hoje, se não há uma impossibilidade de direito, é factualmente impossível a ascensão de uma Papisa. Não é um absurdo?

Aborto, eutanásia e tudo aquilo que acompanha o progresso científico (pesquisas com células-tronco, etc.) ficariam para depois. Calma, a atualização far-se-á passo a passo, bem devagarinho.

Espero que um dia, provavelmente quando este blogueiro já estiver morto, a igreja torne-se a verdadeira reserva moral da humanidade. Neste dia, ela aceitará que muçulmanos, judeus, budistas e gente como eu (ético até a medula quando não se trata de roubar livros, não-cristão, bom e mansinho) mereçam viver tranquilamente no Céu, talvez em local privé, convivendo com um monte de ateus e cristãos legais.

36 comments / Add your comment below

  1. Passados esses anos e com o Ratzinger de papa, juro que não entendi a razão das agressões ao post. Super tranquilo, com ponderações que muitos católicos também fazem — e a maioria pratica. O tempo passa, o tempo voa… e como é bom soar certeiro, especialmente ao ser aparente minoria, não?

  2. “ético até a medula quando não se trata de roubar livros”. Isso aí tinha no post original ou foi em consideração ao preço de nossa recente intimidade?

    O tema “ateísmo” já me cansou. aliás, nunca tive muito saco para ele. Cheira-me a elitismo pseudocientífico, rancores secretos, e obtusidade de visão que só me instrui na compreensão do porque dos conflitos de fundo religioso na faixa de Gaza e no Oriente Médio. Não sou ateu, nem procuro uma dessas denominações de butique para me justificar, como “agnóstico”. Tenho um ótimo julgamento crítico quanto a minha capacidade intelectual, e não abaixo a cabeça para nenhum sultão flutuador em alturas inalcançáveis sobre o tapete mágico de seu título de doutorado. Já passei por três cursos universitários para comprovar a sempre certeza de inocuidade e labor contra o vento desses catedráticos feitores de teses burocráticas. Li o Dawkins, o John Gray, o Sagan, e tirei proveito o máximo possível de seus escritos, assim como admiro profundamente um volume das cartas de João Paulo I ( um surpreendente grande escritor!) que um padre amigo me presenteou. Sei dos perigos de descrédito numa discussão intelectual admitir em público e por escrito que sou cristão, e por isso esse ressabiamento em expor sem modéstia minhas credenciais cerebrais. Vou falar o que acho: todos os sistemas morais da antiguidade, os testamentos precursores indianos, mesopotâmicos, chineses, não conseguiram codensar de forma tão fulminante, o que se é preciso para uma boa convivência social, do que o “Sermão da Montanha” , e de quebra dá os preceitos de como acabar com a profissão dos psicólogos. Não estou, por todos os demônios, pregando! Não sigo nenhuma igreja. E, cerebralmente, não concebo a ideia de deus. Cerebralmente, sou o que essa prostituição de um conceito diz ser ateu. Quando meu pai reapareceu, numa ligação telefõnica, depois de 15 anos de ausência, em outubro do ano passado, disfarçando o propósito de sua despedida com o que ele lembrava da ternura que empregava na voz para me confortar de minhas dores da infância, eu sabia que não haveria nenhum deus a que eu pudesse pedir algo mínimo em favor dele, não a cura portentosa que desestabelizaria as leis do universo, mas só que o câncer não o fizesse sofrer e se desfigurar tanto. Não havia deus nenhum que o poupou de perder os cabelos do topete de jovem guarda que ele tanto orgulhava, que o resguardou de pesar 25 quilos, e que tivesse misericórdia para não deixá-lo cair no estágio de demência em que não reconhecia os filhos, nos últimos dias. O deus que meu cérebro poderia aceitar deveria, sob todos os privilégios de desaforamento dos sentidos, ser APANHÁVEL, para que toda a humanidade lhe esfregasse na cara toda a dor, a injustiça, a fome, a morte, que o Onisciente havia esquecido de verificar ao não calibrar de maneira adequada a merda da máquina criada. Como num desenho do Millõr, aceitaria participar de um S.O.S. feito por toda a humanidade de mãos dadas, para ver se deus via.

    Mas há uma intuição de algo que não se explica, e essa intuição me mantem na dúvida. Sou um ateu que duvida. A mais nova tese levantada sobre a evolução humana é que, por sermos os únicos animais que cozinham, o tempo poupado na mastigação e uma maior absorção de nutrientes, fez com que nos tornássemos os únicos seres com cérebros grandes,capazes de saber que ao final dessa festa toda morreremos. E a cocção também nos fez sociáveis, casamenteiros, urdidores de prole. Mas aí tem sempre um idiotazinho inxerido que vem com os urubus. Urubus? É, mr. Gray. Os urubus vivem em sociedade, e são tão rigorosos com esse negócio de culinária que desde tempos imemoriais só comem a carcaça cozida pela natureza: desidratada e já parcialmente digerida para um maior aproveitamento. E, por mais que os efeitos do aquecimento global estejam danosos, nunca vi uma ave destas com dúvidas existenciais suficientes para um suicidio de não-bater de asas dramático; e nas fotos, o cara por detrás da mesa de autógrafos assinando um exemplar d “O Alquimista”,não tem penugens marciais de urubu-rei em torno do pescoço, mas a santimônia de uma rabicho de cabelo atrás da nuca.

    Então, esse hiato entre vários hiatos, comporta absurdos ao gosto do observador. O ateísmo não passa de um movimento amador, com forçados ares de sofisticação, que não discute a ideia de deus, mas bombardeia com a mesma gana do Hamas, as formas sincréticas de igreja e expressão religiosa, como se não há, em quantidade suficiente, a mesma idiotia, corrupção e hipocrisia nas vertentes científicas.

    (E eu que havia ensaiado meu comparecimento por aqui hoje só com o lamento profundo de não escrever como o Mia Couto).

    1. pois foi um belo ensaio, charlles. belíssimo.
      sou quase um leigo em dostoiévski (só li notas do subsolo), e outro dia fui ao Teatro São Pedro, cá em porto alegre, assistir a um monólogo, O Inquisitor, texto retirado de um capítulo dos Irmãos Karamazov, se não me engano. Um texto estupendo, me pareceu. Fiz a relação pq me parece q tuas linhas, tal o russo, respeitaram bastante o q outros (por motivos diversos) rejeitam às vezes demasiado cedo: o pensamento cristão. Já leste? Imagino q sim. algo a dizer sobre? (esqueça o mia couto, por ora)

      1. Arbo, pois dizem as más línguas que as falas de Ivan, inclusive aquela na qual ele conversa com o Canhoto sobre o Grande Inquisidor, fluiam com facilidade da pena do Dostô, e que os diálogos de Alieksei (não lembro se é essa a grafia correta), por sua vez, doíam-lhe para serem escritos: Dostô queria demonstrar fé, mas o niilismo de Ivan era muito mais atraente que as palavras de Zósima.

        A fofoca não é minha, é um tal de Camus (em O Mito de Sísifo), então não me comprometam…

        Charlles, você é o que outrora costumavam chamavar de “alma naturalmente cristã”, para aludir a certos romanos pagãos que, mesmo antes de surgir o cristianismo, adotavam um discurso da não-violência como aquele do Sermão da Montanha. Acho que eu também, embora esteja criando uma versão quase literalmente sacana do dito Sermão aqui nos meus rabiscos. O mala do Nietzsche nos chamaria de “últimos cristãos”: não cremos na existência de um Deus pessoal, seja ele qual for, e abominamos as instituições religiosas, mas as palavras do cristianismo primitivo, metafísicas a parte, tem algo de comovente.

        Ricardo, por falar em Camus, esse aí nunca foi ateu, mas niilista, na minha modesta opinião. E há que se fazer uma distinção, entre o ateísmo e o niilismo. O ateísmo parece-me meio aborrecido, meio seco. É impossível ser “revoltado” brandindo a bandeira do ateísmo – perde-se a paixão adolescente necessária para qualquer rebelião. Por outro lado, eu vejo genuína “força espiritual” no niilismo: sempre houve santos e bodisatvas niilistas, e a visão de um Ivan Karamazov da vida nunca deixa de ser um pouco religiosa.

        O ateísmo é uma concepção do intelecto e, como tal, exige quase nada de libido para ser concebida – portanto, pode estar correta, mas não deixa de ser pouco atraente e duvido que Dawkins tenha conseguido comer alguém passando um papo sobre o ateísmo. No niilismo, porém, há algo de mais visceral, e tenho certeza de que o Ivan teria levado umas deliciosas russinhas, do estilo Silvia Saint, para sua cama, comovendo-lhes com suas agonizantes dúvidas niilistas devidamentes regadas com um samovar de vodka.

        O que há de gigante em Camus, o que torna quase “sacras” obras como “O Estrangeiro” e “Os Justos” é exatamente a potência visceral do niilismo subjacente. Alguém que conhece a tradição budista no que ela tem de essencial (e de não-teísta: o budismo em sua essência é absolutamente não-teísta e “irreligioso”, frise-se) pode enxergar algo de natural Dharma na obra de Camus, e também nas exortações de Ivan Karamazov sobre um futuro mundo onde todos fluíssem a vida plena do aqui e agora, livres de qualquer crença. Se o Charlles é uma alma naturalmente cristã, Camus seria uma alma naturalmente zen-budista: ele e Bodidharma teriam muito o que prosear.

        Vejam: quando o ateísmo está parado em uma visão cerebral da negação, divertindo-se em chocar esses crentes que ainda vivem no jardim da infância com Papai-do-Céu, o niilismo vai adiante, dobra o Cabo da Boa Esperança, e encontra uma espiritualidade fundamentada justo na descrença absoluta. Mas, percebam, já estou viajando demais…

        1. e, olha, li o mito de sísifo. e nem faz tanto tempo. mas é claro, não tendo lido o “dostô”, não me pus a inferir sobre traços…
          mas q bom q tbm pensaram em Camus. Aliás, “Os justos” nem conhecia de nome. Sobre Justiça pensei ter lido o bastante no ótimo A queda. e eu não tinha pensado nessa ideia, superficialmente contraditória, q relaciona o zen com a revolta, de camus. mas justamente o argelino já me fez inverter conceitos, ou dar outros valores às contradições. a pensar.

        2. Òtimo Victor! Incrível como nossa leitura de Camus se aproxima. Em “A Peste”, tanto o fotógrafo, quanto o mèdico, que ficam confinados no cerco da cidade condenada, professam uma espécie de santidade e abnegação niilista, mas íntimamente religiosa.

          Novamente sem tempo. Mas, se numa condição de dar uma sugestão de leitura neste sentido, leia o “Dia de Finados”, do grande escritor holandês Cees Nooteebom. Um dos melhores e mais bonitos romances que li na vida. O Personagem perde a esposa e o filho num acidente de avião, e se entrega a um vaguidão de alma em que viaja pela europa, principalmentte pela Alemanha, se dedicando a filmar os rastros dos passos deixados pelas pessoas na neve. Conversa com vários amigos intelectuais. Nas páginas finais, algo de arrepiar os cabelos. Do alto de minha inefável macheza e dureza de caráter, me entreguei a um choro discreto (tá bom, teve uma puxada de nariz) diante a estranha revelação do final. Leia, cara, leia. Depois, quando estiver desesperado para repetir a dose, leia o outro grande romance do cara: “Ritual”.

        3. Do ponto de vista literário, gostei demais do que o Charlles escreveu, mas eu só acredito enquanto leio. Levanto a cabeça e penso que sou um ateu que não duvida. Acho que vi o suficiente para poder chutar que não há mágica nenhuma e que o vazio é o que nos espera. O resto é medo.

          Agora, fico pensando o que tem a ver a libido com concepções religiosas (Victor). Acho que um ateu até se sente mais liberto… Ou a ameaça do pacado é tão sedutora assim? Confesso que a presença de Sylvia Saint no papel de Grushenka seria algo de se ver… Mas o personagem é Ivan

        4. Do Lars? Cara, não recomendo para menores de dezesseis anos, gente que se compadece com animais sofrendo ou tem medo de tesouras.

          Eu gostei muito do filme, mas tenho um senso de humor pra lá de distorcido. O Lars é escroto até não mais poder.

        5. Sim, do Lars. Ela gosta de terror e até de senso de humor distorcido, mas não de animais sofrendo, isso nunca!

          Acho que temos que repensar.

        6. Como subsídio: apesar do título, não tem nada de filme de terror, e nem há “anticristo” nenhum, longe disso; o clima opressivo é de uma densidade ‘psicanalítica’, que um público mais amadurecido, principalmente em questões afetivas, pode aproveitar melhor; e tem umas duas cenas escatológicas, envolvendo sexualidade, meio barra pesadas, até exageradas.

      2. Arbo, na tribo onde moro faltou luz das 17 h até às 2 da manhâ, ontem. Hoje estou atolado de trabalho, e não vai dar para te responder. Li sim o Dostô, os Irmãos Karamazov, e adoro o personagem Aliocha Karamazóv. Dostô é cheio de personagens de um cristianismo puro e ao mesmo tempos conturbado, como a figura do príncipe em “O Idiota”. Mas meu romance preferido do Dostô é o monumental “Os demônios”, o que já é outra história. Convido ao Milton para, futuramente, tratar destes temas do russo, o que vai dar muito pano para manga. Obrigado e, pegando emprestado o caloroso cumprimentio do Victor: um forte abraço!

        1. Não é meu dia de concordar com o Charlles. Eu adoro Ivan Karamazov — acho chatinho o Aliócha — e os maiores livros de Dostô são Os Irmãos K. e O Idiota.

          Charlles, onde moras? Sei que já me disseste mas esqueci. (Até pq quero poder imaginar para onde minha filha quererá ir!).

        2. Milton, não quero dizer que os ateus tem menos libido que os niilistas ou os macumbeiros. E, claro, muito menos que os ateus estão “errados”. Eu tentei falar sobre o processo de elaboração do ateísmo ou, mas exatamente, o processo pelo qual alguém adota o ateísmo como concepção de mundo. Independentemente de uma concepção de mundo estar certa ou não no campo da objetividade, é claro que o processo pelo qual ela é adotada por um indivíduo tem muito pouco, no fundo, de racional, sendo mais influentes os fatores subjetivos, emocionais (taí o António Damasio para literalmente provar). E, nesse aspecto, em relação à adoção do ateísmo, eu quis dizer que me parece ser um processo onde a libido teve, no máximo, uma participação marginal, quase inexistente. Claro que um ateu, assim como um agnóstico ou um niilista, tem uma vida sexual muito mais livre e tranquila. Mas não é à vida sexual ostensiva, “concreta”, que me refiro, e sim à libido que subjaz nossa escolha de concepção de mundo e nossas preferências. Você nota que meu discurso tem algo de pscanalítico, e isso é um tanto inevitável.

          E que bom que você gostou mais do texto do Charlles, pois nisso concordamos.

          Abç

        3. Victor,

          eu estou com um problema durante o dia: muito trabalho e correria. Então, venho aqui a toda velocidade e muitas vezes fico de fora do melhor do blog. Porém, se aprendi alguma coisa nesta vida, talvez tenha sido a disposição e um pequeno talento para provocar. Meus amigos dizem que sempre fui de botar fogo e sair rindo, mas acho que tenho piorado ultimamente.

          Isto não funciona contigo, né? Para provocar é bom dar uma nem tão leve descontextualizada no outro e a primeira atitude que tomas é a de recontextualizar o que escreveste. Acho que tens mais é que fazer isso mesmo. Porém…

          É claro que me invoquei com aquele negócio de que o ateísmo é uma concepção do intelecto, algo pouco visceral e que a religiosidade e o niilismo seriam humanos, mais defensáveis como bandeiras e que todos no fim comeriam a Sylvia Saint menos eu (OK, descontextualizei, deixe essa passar, tá?). Até os anglicanos comeriam a Sylvia Saint, menos os ateus. Isso foi sacanagem porque eu, como ateu, também sou filho de Deus e mereço comer a Sylvia Saint. Além do mais, sou um ateu que põe paixão até quando passo a menteiga no pão, sou um ateu visceral, um visceral realista apaixonado que vai ter de escolher entre a Maria da Conceição Tavares e o Nestor Kirchner enquanto te lambuzas com a sensualidade da checa Saint, santa checa. Sacanagem, sacanagem.

          Acho que o Sr. poderia desenvolver melhor sua tese sobre a frieza, impotência dos ateus e a dificuldade das atéias de chegarem ao orgasmo antes dos 35 anos. Fale-nos a respeito.

          :¬)))

          É de sua autoria aquela frase que ensina que “goleiros são como ateias, só têm orgasmo depois dos 30”?

        4. ahahah, essa dos goleiros e atéias é hilária. O que seria das carolas, então? Só gozariam como a diretoria do inter, quando as contas da casa fecham no fim do mês, independentemente de alguma bola ter entrado no “surubão 2009”?

          Milton, não se trata de uma técnica para evadir-me de toda provocação, não, mas apenas um dos efeitos colaterais de minhas limitações intelectuais/cognitivas (efeito esse correlato àquele que, na foto cara de bunda, fez-me dizer o óbvio bundudante): a incapacidade de perceber as ironias e provocações alheias, principalmente as mais evidentes, ao menos por um lapso de tempo vexatório.

          Mas, complementando o que eu disse sobre nossa opinião a respeito do texto do Charlles, por outro lado fico feliz que foi o meu texto que conseguiu “incomodar”, ainda que de leve, você, pois é um sinal de que eu ainda tenho certo instinto para saber onde fica o nervo exposto daqueles que não se perturbam com as exortações mais literárias para além do próprio texto. Em suma, não adianta falar para um ateu que ele não sabe coisa alguma e que todo o panteão xintoísta realmente existe: o segredo é dizer que ele não vai comer tanta gente quanto os outros, embora possa ter razão.

          E, sobre esse tema, recuso-me a proferir uma só argumentação ou esclarecimento adicional. Sim, porque se você, no que eu escrevi, acabou abstraindo uma teoria de que eu teria, em tese, mais chances do que certa parcela da humanidade, mesmo que reduzida, de comer a Silvia Saint, então me deixe aqui quieto no meu canto com essa proposição tão agradável, na qual me agarro como consolação por minhas deficiências cognitivas, e vá aborrecer algum carola comedor de hóstia por aí com essas suas provocações e perguntas capciosas.

          (mas veja que esse pouco tempo de reflexão já me encheu de dúvidas: pô, pra comer a Silvia é preciso ter dinheiro, e não concepção de mundo; e a Scarllet olhou ‘daquele jeito’ justo para o Woody Allen – um cara que, ao que tudo indica, é ateu convicto – merda, lá se foi minha teoria…).

  3. Conheço o escritório de contabilidade responsável pelas contas do setor administrativo da Igreja no Brasil (tem um nome esquisito para “a empresa”, não sei se é Núncio Apostólico ou outra coisa qualquer, mas f-se), e um contador que me mostrou, por mera curiosidade, uma folha (a última) onde sestão somados todos os ativos da sagrada instituição; eles, acredite, não cabem numa só linha (os números na coluna da soma, é claro, não duma folha inteira). Isso explica e justifica todo resto: a Igreja tem pelo que zelar, possui poder real fundado em matéria sonante; toda a discursada deriva do sagrado princípio do poder, e nada melhor do que juntar a isso uma pentescolhada metafísica onde alhos são bugalhos que não tem olhos para ver a enrascada em que se meteriam caso não possuíssem as armas que tem às mãos.

    Daí porque não se deveriam pensar em “democratizar” a Igreja, casar padres, eleger papisas e outras providências administrativas afins. Afinal, vocês no RGS tem uma governadora que nada deve a qualquer governador e, sintetizando, o mal tá na constituinte da coisa: no RGS, as leis permissivas ao assalto do Erário via controle do Estado; no Vaticano, as leis de um deus que eles sabem não existir, mas que devem ser mantidas inalteradas e inalteráveis, tal qual constituição de Honduras (coisa absurda, os caras forjam a cristalização de um domínio de classe e a gente tem que considerar a trolha legítima!).

    Estrutura de poder, não cabe na Igreja nenhuma democracia, só uma hierarquia rígida, cujo exemplo se espalha construindo anticorpos contra qualquer mudança que nos lance diante das responsabilidades humanas face ao nosso próprio destino.

    Por isso seria necessário o engajamento dos ateus na causa comum de suprimir todo e qualquer discurso religioso, pois não se trata somente de uma causa ideológica sem maiores consequências, como um debate acerca de teorias literárias e suas ordens constitutivas e epistemes e sei lá mais ausi bobagens, mas um combate contra um estrutura de poder perigosa, dotada de enormes fundos e capaz de quase tudo (já foi capaz de tudo quando era, além de religião, o próprio Estado).

      1. Pois é,
        ontem eu ouvi na Rádio Universidade sobre este prêmio. QUem escolhe?
        Branco

        Sobre o post original concordo em uma parte muito grande que o Charles disse.
        Acho que agnóstico não é um termo de butique, mas um denominação de quem considera , como Alberto Caeiro (não lembro se este heteronimo, mas deve ser), que “a metafísica é consequência de estar mal disposto”. Aliás um agnóstico é um ateu que duvida. Duvida tanto da religião, como do não-Deus e se deixar da Ciência. A Verdade é incognoscível e tudo o que temos são meios para “salvar as aparências”. No caso a Ciência é o mais eficaz.

        Há pouco li “O Homem Revoltado” do Camus e ele versa em parte sobre esta revolta contra Deus. Em sua fase inicial o revoltado seria não um ateu, mas um blasfemo, daí esta diatribe com os religiosos e com a Igreja dominante (no nosso caso a católica). Deus ainda está embutido nele. Daí esta reação contra padres, mas não evangélicos, budistas, mulçumanos, etc.

        Lembro-me desta eleição e duma discussão com o Milton, onde ele estranhou meu pouco interesse e até conhecimento a ponto de perguntar em que mundo eu vivia.

        Abraços

        Branco

  4. de uma coisa eu tenho certeza, milton. catolicismo nada tem a ver com cristianismo, pelo menos não com o cristianismo bíblico. daquilo que eu sei:
    a) a igreja romana mudou o tradicional dia de descanso (o sábado bíblico) para domingo. eu sei, eu sei, tá cheio de protestantes que vão na corda do domingo santificado.
    b) a igreja romana diz que maria, mãe de jesus, é a intercessora no céu pelos tantos pecadores. mas a bíblia não diz que maria ressuscitou e foi pro céu. antes, diz que cristo é que é o intercessor e perdoa os tantos pecadores e não o padre.
    c) a igreja romana cansou de perseguir cristãos.
    d) diz que o papa é o infalível representante de deus na terra.
    e) diz que existe inferno e purgatório. a bíblia não descreve um inferno literal em lugar nenhum, muito menos um purgatório, que fica bem melhor na poesia de dante.
    f) diz que as pessoas boas que morrem vão para o céu. isto também não é do cristianismo bíblico que fala somente que o homem morre e volta ao pó e assim estaria até o dia do juízo/retorno de cristo à terra.
    g) diz que há uma transubstanciação da hóstia, que vira o próprio corpo de cristo. o que levou o dráuzio varela a dizer que abandonou a igreja porque mordeu a hóstia e ela continuava hóstia.
    etc, etc

    não estou falando dos católicos nem pondo em dúvida a sinceridade espiritual de ninguém. mas com tanta alteração, outros diriam desvio hermenêutico da bíblia, e considerando a sua (agora é a sua, milton) pouca anuência pessoal para conhecer o cristianismo, então lhe digo que é melhor você ficar com seu caráter, meu caro. vai te fazer melhor.

    isso pode nem lhe interessar. mas é que aquela frase do tal “sujeito habitualmente fascista”, sobre a dimensão moral e espiritual que dá relevância à igreja de roma, não pra engolir calado.
    renato ortiz escreveu sobre o parlamento das religiões, realizado há 15 anos, no qual a igreja católica elabora um singelo discurso: como “reserva” ética e moral e religiosa, ela pode “auxiliar” nas decisões políticas mundiais. hummm…

  5. ERRO SINCERO
    by Ramiro Conceicão

    Não sou ateu. Não pertenço a nenhuma instituição religiosa, porém sou místico pelo encantamento do Mundo(!) que não compreendo. Sou cristão, talvez, por herança cultural. A partir do momento em que pude pensar – por mim! – desacreditei na virgindade de Maria, apesar de ter a compaixão do seu infinito sofrimento…; e seu culto, creio, é um instrumento à dominação, elaborado nas entranhas sadomasoquistas da Igreja Católica. Li, praticamente, a Bíblia inteira. Tenho apreço, em especial, por dois livros do Antigo Testamento: Jó e Eclesiastes: duas obras-primas da cultura humana. Do Novo Testamento, aprecio principalmente as parábolas. Considero o “Sermão da Montanha” e o “Pai Nosso” dois apogeus:

    i) no primeiro, a comparação ética-política-estética entre a Beleza de um lírio do campo e a do rei Salomão, com o seu pequeno-pseudo-esplendor na sua pequena-pseudo-riqueza, perdurará, para mim, até os últimos dias dessa gotícula azul que habitamos;

    ii) no segundo, o movimento de translação, rotação e vibração cósmica entre o “Pai Nosso”… e o “Pão nosso”, que se dá com pouquíssimas palavras (!!!!), no Poema ensinado a nós por Jesus – para mim que sou poeta – não tem comparação em qualquer tempo da literatura universal: é uma síntese absoluta!; é o que denomino de Sagrado. Por isso – penso-sinto!

    Por isso sou místico. Não um mistificador! Por isso creio, sinceramente, no erro sincero!; isto é, no erro com o qual se apreende que nunca se saberá tudo; mas, aos poucos, se saberá muito com o passar da linha do tempo a costurar a vestimenta da Vida, que é Sagrada!

    Escrever sobre Deus e Jesus, aqui, é muitíssimo difícil: porque me causa escrúpulos! Apreendi poucas coisas com a Vida. Mas das pouquíssimas: aprendi mesmo! Apesar do dificílimo processo contínuo do apreender. Por exemplo:

    i) A análise de Marx sobre o Trabalho humano como força motriz da História é o que denomino de mudança de paradigma do conhecimento. Ah, como ser uma práxis!; e não um jogo de palavras estéreis e hábeis em fazer de homens e mulheres uma massa de manobra à insensatez. Ah, pobres prostitutas abandonadas por seus amantes nos becos escuros e sujos da História. Ah, pobres revoluções prostituídas pela traição e ambição humanas;

    ii) A segunda lei da termodinâmica é outro exemplo do nosso extraordinário inventar, isto é, a modelagem matemática que prevê para qualquer processo da natureza se o mesmo é irreversível, ou em outras palavras, a tentativa competente de explicar, por exemplo, o por que duma pedra, quando abandonada, mas com energia potencial no interior de um campo gravitacional, cair; e, por outro lado, o por que da mesma pedra não subir espontaneamente, por si mesma, se o balanço de energia, nos dois processos, é idêntico. Ou seja, por que as coisas da natureza acontecem dum jeito mas não de outro: o segundo princípio da termodinâmica é a colossal teoria sobre a própria experiência do compreender humano;

    iii) A teoria de Einstein que prevê, por exemplo, que num “jogo da amarelinha” à velocidade da luz nem Deus poderia jogá-lo, pois a “casquinha de banana” teria de viajar com velocidade superior a da luz; porém, nada ou “Ninguém” voa além da luz… a não ser – é claro!- Ulisses e Homero no espaço-tempo da Poesia!!!; e

    iv) A mecânica quântica – meu Deus! – que diz, em seu princípio da incerteza, que a massa ou a luz não são contínuas, isto é, nas constelações microscópicas do átomo tudo são “pacotes” denominados de “quantas”, que tudo é uma questão de probabilidade, que é impossível ao mesmo tempo conhecer a posição e descrever o movimento de partículas inferiores em tamanho ao átomo; quero dizer, o observador tem de ser levado em conta!!! Mas o observar é um verbo criado por seres culturais !!! E, aí, como fica tudo?

    Por isso, por não saber tanto e tudo, me calo diante do que denomino de Deus! Por isso, do alto dos meus grisalhos e com um filho de oito meses ao colo, choro quase todas as manhãs pela dádiva de estar vivo, pela dádiva de Amar minha Mulher, apesar do maligno de cada dia…

    Sim… meus Amigos,
    é o Amor que nos faz
    semelhantes,
    apesar de diferentes!
    Sim… meus Amigos,
    é o Amor que restará
    quando tudo for nada!

  6. Não sei o q é mais interessante: os temas escolhidos por ti,Milton ou os comentários q terminam por enriquecer nossa leitura de muito prazer.
    Qt mais leio , mais gosto da variedade.
    Beijinhos
    Glória

  7. O Desabafo do Diabo
    (algo sobre Dostoiévski)

    Como Borges disse, o conhecimento de Dostoievski é tão inesquecível quanto o primeiro beijo e a visão do mar. Os grandes escritores se tornam mais próximos quando temos o privilégio de os encontrarmos ainda bem cedo, no começo da adolescência, seja porque assim os amamos com a falta de reservas e a capacidade desabnegada do amor que tem o inocente e despreparado aprendiz, seja porque eles acabam por nos oferecer uma paternidade diante a crueza, e uma comunhão na verdade de que o motivo real do mundo se compõe dos fatores que a paternidade que temos em casa tem por obrigação nos salvaguardar: a injustiça, a violência, as aflições, o medo, a dor, o desprezo, o abandono, a apequenização, a anulação, a morte, o descompromisso omissivo, a indiferença. Como os exercícios de piano que uma criança prodígio desenvolve até se tornar um ás da música, o grande escritor transforma o leitor numa réplica bastante proficiente de suas angústias; contamina aquele que ainda não o entende, por falta da idade adequada, com sua ótica exclusiva, inconformista, que mais parece prejudicar do que beneficiar, até que a pessoa se torna expert na desilusão e desafeto com a vida. O grande escritor deixa aquele anel escuro e fundo no leitor, que eu vejo todo dia circundando meus olhos, e confere uma nova forma de andar, mais desguarnecida e auto-vigiada, como se a nos dizer ao pé do ouvido: “não te aprumes tanto, afinal tu és igual aos outros, falível diante a oportunidade certa”. Nada que favoreça a espécie, portanto. Por isso que a literatura apareceu bem tarde na história humana, depois que conseguimos colocar a família, a agropecuária e a moradia fixa nas bases da existência_ e estas, à custa de muito sangue, como não deveria deixar de ser. Um precursor neandertal de Dostoievski, mesmo circunstancialmente entendível, teria sido uma ameaça a nossa espécie. No começo de nossas rodas em torno da fogueira, poderíamos pressentir, sem entender, com uma funda angústia, o grito da queda cortando o céu, mas ainda não poderíamos ouvir o desabafo do Diabo. A alta literatura não dá muita bola para Darwin e a lei do mais forte; a depender dela, o mais elogiável para nós é a extinção, e seu único constituinte benéfico é que a ministra aos poucos, terapeuticamente: a extinção de nossos orgulhos, de nossa pretensão de certeza, de nossos diplomas, da nossa centralidade no mundo, de nosso deus. (Deleitando-se sempre de nossa incapacidade em aprender com essa fugaz chance oferecida de recuperação.) Sua técnica é contrária a de algumas primitivas tribos africanas que deportavam para o asilo os velhos e os aleijados, para que as tribos inimigas não lhes atribuíssem fraqueza: apetece-lhe os velhos e os aleijões, principalmente os que levam as distorções na alma.
    Aprendi com outro escritor_ o imenso Montaigne_ a escrever falando de mim, me colocando no meio do texto onde melhor pareça adequado. Por isso: conheci Dostoievski aos quinze anos, namorando as lombadas douradas do volume duplo de Crime e Castigo, que via na estante do quarto de um amigo de escola. O Q.I. deste amigo_ que ele gostava sempre de deixar mal escondido sob uma soberba mal disfarçada_ era altíssimo, provado na obtenção do premio máximo no programa Flávio Cavalcanti. Era ruivo, com uma voz que não passava da garganta e só saía como um sopro rouco; e sua inteligência lhe servia desde já a procurar a sobrevivência no academicismo ou na política, porque qualquer outra opção seria desastrosa. Eu tinha ganhado um prêmio de redação, num concurso do qual não sabia que participava_ uma comissão de corregedores interrompera a aula de biologia e, diante toda a turma, tentou de todos os artifícios para que eu confessasse que havia copiado o texto. Diante minha cara estupefata de quem não sabia se ficava elogiado ou se os mandava para a puta que os pariu, conformaram-se, e como o bobo da vez, voltei para as carteiras do fundo com uma medalha barata no pescoço. Daí esse amigo, que sempre me avaliava como um estúpido inofensivo, um dos protegidos por certo tempo pela misericórdia divina, se aproximou de mim, e me tuteou. Pedi-lhe emprestado os dois inacessíveis volumes de Crime e Castigo, e cabulei uma semana inteira de aula lendo-os numa biblioteca. Foi uma das semanas mais felizes da minha vida. Como um trabalhador que batia o ponto de manhazinha, me fechava na carteira mais reservada da biblioteca do campus universitário, e ia para a Rússia, sentia o frio, dividia a cama com aqueles miseráveis e ofendidos em seus quartos escuros e atulhados (ninguém descreve com tanto peso quartos escuros e atulhados, como Dostoievski), estive naquele apartamento nefasto e segurei a mão que golpeou a velha locatária, senti a umidade e o degredo da cela siberiana; apertei nas mãos, como se fosse uma tábua de náufrago, a bíblia me oferecida pela mulher por entre o arame farpado; saí para a liberdade tardia com aquela mesma nostalgia de que deixava algo de inexplicavelmente acolhedor para trás, junto àqueles seres de ninguém, àqueles homens que eram cada um menos que um, e fui tomado por uma felicidade conformada, terna e sobre-humana, na companhia da última mulher que me aceitava, ela também deformada e envelhecida por suas próprias dores intensas para me ver sem a máscara que o desespero havia me confeccionado.
    Ao contrário do homem de Rousseau, o homem de Dostoievski morria bom, por ter desgastado todo o rancor e a maldade, mesmo sem tempo para se aperceber disto.
    Eu já não queria me parecer com o Morten Harket. Olhava aquela foto do Dostoievski, que acabava de se recobrar de um ataque epiléptico, sentado de mãos cruzadas nos joelhos, e queria ficar eu também com aquele aristocrático ar de degradação, aquele ar de que o corpo já não lhe resistia à força do espírito, como se o espírito fosse mortalmente radioativo e a carne fosse se cancerizando por dentro diante tanta energia.
    Passei a não usar o dinheiro para o lanche na escola, investindo nas edições de bolso da ediouro do mestre. Li em seguida “Notas do Subsolo”, e aquilo me deixou estarrecido. Aquele narrador tinha uma negrura apenas aparente: uma leitura atenta veria que era um buraco negro indevassável muito mais intenso, que, ou se auto-engolia até que ressurgisse no ralo criado de uma avessa existência, ou desaparecia soltando um imenso grito de não aceitação no vácuo. Um inaudível, de tão absolutamente estridente, berro contra o nada. Aquele narrador é tudo, menos niilista. Aquele narrador não se prestaria a se decretar ateu, mesmo que o fosse, por ter a lucidez do despropósito de um órfão ufanar-se de sua orfandade. Aquele narrador preferiria o suicídio, para aferir o limite de sua falta de sentido, sendo esta a sua única criação possível (a autodestruição), para zombar daquele deus inexistente, partindo para o nada mais cedo, como quem repudia a falta de delicadeza de não haver uma opção melhor. Sem esse narrador, Camus teria sido abortado no útero de sua mãe, e Kafka jamais teria o sangue resfriado até a linfa de uma barata.
    Marshall Berman (em “Tudo que é sólido desmancha no ar”) explica a famosa cena de “Notas do Subsolo”, em que o narrador se impõe o confronto com um militar que mal se dá por sua presença, sendo ao narrador uma vitória apenas o sofrível não abaixar a cabeça ao passar ao lado deste homem imponente, seguro de si, cheio de infalibilidade e respeito_ Berman explica como o confronto silencioso e tenso entre o homem oitocentista (o militar) e o moderno (o narrador), contrapondo a certeza de valores que estufava de segurança o primeiro, com a perturbação, incertezas, e experiência com o horror da história, que atiraria o segundo no fundo buraco da desesperança.
    Eu vejo essa batalha_ que só é uma batalha para o narrador, pois o militar está satisfeito demais consigo para sequer notar seu confrontador_, como uma batalha espiritual. O narrador é o homem_ ou antes, a entidade_, cuja miséria da existência o destituiu de qualquer galardão. Suas roupas estão em frangalhos, seus sapatos furados, deixando seus pés em contato com a lama do caminho. Se houve atrativos em sua figura, sua amargura transformou a juventude em rugas secas pelo rosto, em dentes devastados. Ninguém imaginaria que possui um intelecto potente, um conhecimento primoroso. É perigosamente demoníaco; sua atitude em não abaixar a cabeça é, porém, intimamente religiosa; refaz numa rua movimentada de Moscou a insuspeita encarnação cristã do Louco de Deus; traz para o meio da multidão composta de famílias felizes, a sua invisibilidade de hastear a meio mastro a bandeira do Absurdo. Em algum momento infinitamente distante, a parte de seu espírito que anteriormente acreditava e ouvia _ a criança!_ aceitou com júbilo o preceito cristão de deixar tudo para trás e seguir a Verdade. Só que_ como naqueles cortes cinematográficos súbitos_ já não acredita, já nem se lembra do menor fiapo de algodão do sonho. As palavras deixaram de ser sagradas, perderam a inicial maiúscula distintiva. As palavras, como sua voz, como seu olhar, estão em caixa baixa.
    O narrador pretende manter a cabeça alta diante o conformismo cego e feliz, a explicação fácil e doce, ao determinismo, a diferença elitista entre o bem posicionado e o ninguém. Quando mantém a cabeça altiva diante essas certezas e boa digestão, que tanto reduziriam o homem no século que despontava, ele se faz merecedor de um deus, o único entre todos os condenados daquele domingo festivo que no efêmero instante antes do provável desaparecimento, alcançou a plenitude que o distinguia, tornou-se sobrenatural… mais: o único homem. O raivoso, soberbo, livre, indomável homem, que poderia comportar o primeiro instante da criação.

  8. “…alcançou a plenitude que o distinguia, tornou-se sobrenatural… mais: o único homem. O raivoso, soberbo, livre, indomável homem, que poderia comportar o primeiro instante da criação.”

    EXISTIR
    by Ramiro Conceição

    A minha prisão é estranha
    porque expande e encolhe
    conforme o jeito que eu olhe.
    A minha prisão é de antanho,
    um jardim de seres castanhos
    numa caverna de Platão onde, certa vez,
    um animal olhou a Lua pela primeira vez
    e murmurou: “Por que estou aqui?”

    Diante do desamparo e despreparo,
    com esmero, inventei algo raro:
    um mimo!, um sonho ao Mundo,
    um conjunto de cantos inconjuntos
    à questão fundamental: por que estar aqui?

    Fui aquilo que sou e aquele que não sei.
    Agora estou com o melhor de mim.
    A essência do meu canto não é a dor que vi,
    apesar de vir daí.
    A minha essência é o processo de existir!

    Venho de distâncias distantes…
    Vou para distâncias distantes…
    “Sou do tamanho do que vejo”
    qual dizia o Poeta do Ribatejo!

    1. a tua caixa baixa é de se espantar também, charlles. se um linha do teu comentário foi por mim instigada já ganhei o dia.
      q estou dizendo? já ganhei a semana tendo instigado ninguém!

      e talvez eu esteja perdendo algo fazendo o caminho inverso, camus-sabato-kafka-nietzsche-dostoievski? (ora eu – perguntando caminhos quando só o q tenho feito é espreitá-los à distância segura, buscando homens altos q me façam esquecer o chão, talvez o meu chão)

  9. Maravilhoso ensaio, Charlles Campos! Às vezes_ raras elas_, acho uma pérola destas pela rede. Graças à sua análise poética, honesta e profunda, vou reler as notas do subsolo, e vou indicar essa página do blog para meus alunos do curso de filosofia.

    Abrçs

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